Capítulo 2
Os gritos dos nativos ensurdeciam-lhe os ouvidos, misturados com os das crianças, que corriam de um lado pra o outro como se a sua vida dependesse disso. Provavelmente, até dependia. Aqueles não eram meninos como os outros e Uma sabia muito bem disso.
A capitã torceu o nariz, tapando os ouvidos. Os pés afundavam na terra à medida que caminhava, os olhos vasculhando o território em busca do que procurava. Estalou a língua, fitando o casebre de madeira à sua frente. Mesmo estando na rua, conseguia ouvir a algazarra existente naquele sítio, entre gritos, cantorias e ameaças rebuscadas e sem sentido.
O típico bar de piratas.
Revirando os olhos, a filha de Úrsula adentrou o espaço. A sua reputação precedia-a, percebeu. Ao verem-na, os piratas calaram-se... Exceto um.
Sentado ao piano, um pirata mais novo cantava, a voz saindo-lhe estranhamente firme para quem agia como um bêbado. Os dedos tocavam uma melodia antiga, melancólica e alegre ao mesmo tempo. Uma soltou um suspiro, notando o olhar de lado que ele lhe lançou ao vê-la, ignorando-a mesmo reconhecendo-a. Aquilo irritou a pirata, que detestava ser ignorada. Com um movimento brusco, puxou-o pelo colarinho, os olhos faiscando de irritação ao questioná-lo:
- Não me estás a ver bem, é?!
- Perfeitamente. É difícil não ver tamanha beleza. - retorquiu o pirata, unindo os lábios - Um beijinho ao teu primeiro-imediato?
- Nojo. - Uma soltou-o, vendo-o cair no banco com uma gargalhada - O que estás a fazer?
- Não se vê? Cantar! - o rapaz tombou para cima do piano, esticando-se em direção à caneca pousada em cima das teclas - E a beber. Este rum é o melhor rum do mundo! - estendeu-lhe a caneca, um sorriso matreiro no rosto - Queres provar?
- Não. - respondeu Uma, sucinta - E ao que parece tu também não. Não estás bebedo, Harry, por isso pára de agir como se estivesses.
Harry Hook encolheu os ombros, dando um gole na sua bebida. O olhar esgazeado fixou-se na carranca da sua capitã, cujos braços se tinham cruzado no peito, claramente desaprovando a sua atitude.
- Também senti a tua falta, Uma. - retorquiu, soltando uma risada esganiçada - Agora, se não te importas... Vou voltar a minha cantoria. Se quiseres uma bebida, diz ao empregado que vais da minha parte.
Lançando um beijo na sua direção, o filho do Capitão Gancho virou-lhe as costas, os dedos dedilhando habilmente o piano. Uma prensou os lábios, observando-o com atenção. Mesmo de costas, conseguia ver de perfil o seu rosto, sujo de pó. As olheiras escuras rodeavam-lhe os olhos, o azul-marinho escurecido pelo vazio e pela amargura presente na expressão de um verdadeiro pirata. Os ossos das bochechas estavam vincados, a roupa demasiado larga para o seu corpo magro, a pele suja de quem se desleixara. Ainda assim, continuava bonito, o sorriso galã e a falsa loucura mascarando ligeiramente a sua decadência.
- Harry. - chamou-o, rangendo os dentes ao vê-lo ignorá-la - Harry!
- Estás a interromper-me de novo! - cantarolou o pirata, continuando a dedilhar - Estou ocupado, minha querida capitã!
- O que fazes aqui, Harry? - questionou Uma, puxando-lhe o braço e forçando-o a olhá-la- O que raio fazes num bar decadente de piratas, em plena Terra do Nunca, a quilómetros de casa?
Harry esboçou um sorriso, inclinando a cabeça para o lado, os olhos semicerrados ao responder-lhe baixinho:
- Eu... - fez uma pausa, desfrutando do suspense - Estou a beber.
Uma soltou-o bruscamente, vendo-o rir, indiferente. A pirata abanou a cabeça, tão confusa quanto entristecida. Cruzou os braços em frente ao peito, tentando analisá-lo. Harry claramente não estava bem e Uma não iria desistir enquanto não percebesse o que acontecera... e iria levá-lo para casa, custasse o que custasse.
- Não sabia que gostavas assim tanto do teu pai. - comentou, encarando as unhas com uma falsa atenção.
Uma pausa fez-se sentir, pesada. Pelo canto do olho, viu Harry endireitar-se, a provocação acertando exatamente o ponto que a filha de Úrsula queria. O pirata cerrou os punhos, a maçã de Adão movendo-se de cima para baixo à medida que ele engolia em seco, encolhendo os ombros.
- Não estou aqui por gostar dele. - respondeu, secamente - Estou a trabalhar para ele e a tentar aproveitar a minha folga, posso ou vais continuar a chatear-me?
- Trabalhar? Ele paga-te para lhe lavares o chão do convés? Servires o rum aos seus camaradas? Ou gritar contigo quando está frustrado porque o Peter Pan venceu outra vez?
- Não me chateies. - resmungou o pirata, rangendo os dentes.
- O Capitão Gancho não mudou mas tu sim. De todos os vilões, o teu pai é o que pior te trata. Então o que raio estás aqui fazer?
Ele não respondeu. A capitã ergueu uma sobrancelha, os olhos castanhos incisivos sobre o seu primeiro-imediato. Para sua surpresa, Harry pôs-se de pé, pegou na caneca e sorveu o seu conteúdo de um trago, limpando a boca com a manga da sua camisola.
- Até à vista, capitã!
E virou-lhe as costas, deixando-a sozinha de boca aberta.
Uma não era propriamente a pessoa mais sensível do mundo. Era amiga do seu amigo, fiel até aos ossos, fazia o que for preciso para defender os seus princípios e a sua família. Harry e Gil estavam incluídos nessa equação; por mais que adorasse a mãe, Úrsula, ela estava demasiado ocupada com o seu restaurante, os seus clientes e em contar a história de como um dia tivera nas suas mãos o tridente do Rei Tritão. Era uma mulher ambiciosa, dedicada aos negócios, que inspirara Uma a querer ser mais do que era. Ainda assim, fora nas ruas que Uma crescera, acompanhada de Harry e Gil. Juntos, inspiravam o terror na Ilha dos Perdidos, disputando o pódio de piores descendentes com Mal e companhia.
Por isso, ver Harry naquele estado deixava-a fora de si. Depois dele fugir de si no bar, encontrara-o no Lago das Sereias, flertando e rindo com as criaturas marinhas mais belas de todos os reinos. O seu sorriso galã nunca lhe alcançava os olhos, algo que assustava Uma. Havia sempre um brilho malicioso nos olhos cor de mãe de Harry...
Um brilho que Uma sabia exatamente onde ficara.
- Já podes parar com a palhaçada e vir comigo? - questionou a capitã, aproximando-se dele a passos largos - Anda lá, Romeu. A tua Julieta não está aqui.
Puxou-o pelo braço, arrastando-o facilmente para longe da lagoa, em direção à floresta. Harry resmungava, tropeçando nos próprios pés, como se a bebida finalmente lhe tivesse atingido o sangue. Uma revirou os olhos, entediada. Era por isso que não bebia; não tinha paciência para a bebedeira, muito menos para a ressaca.
- Onde vamos? - perguntou Harry, parando subitamente.
- Para casa. Vamos para casa.
- Não.
O pirata soltou-se, dando um passo atrás. A jovem olhou para trás, a sobrancelha erguida, questionando-o em silêncio. Harry engoliu em seco.
- Eu não vou voltar. Não posso voltar.
- Porquê? - Uma deu um passo à frente, confusa - O que aconteceu? Como é que pudeste fugir da Rhiara desta maneira?
- Eu não fugi da Rhiara. - disse ele, baixinho.
Uma franziu o sobrolho.
- O quê?
- Eu não fugi da Rhiara.
- Ela acredita que sim. Ela acredita que tu fugiste como um cobarde porque não te achavas à altura de ser o companheiro da futura rainha. - a jovem abanou a cabeça, encarando-o - Sorte para ti, conheço-te melhor do que isso e essa ideia não me fez qualquer sentido. És muita coisa mas cobarde? Relacionado com a Rhiara? Tu és doido por aquela miúda! Tu...
- Uma, chega.
Harry virou-lhe as costas, os braços cruzados em frente ao peito, o olhar vazio fixo no horizonte. Uma calou-se, sentindo o sangue ferver-lhe nas veias.
Meses antes, quando um navio estranho atracara na doca de Auradon e a princesa de Corona de lá saíra sozinha, Uma estranhara. Rhiara e Harry tinham ido fazer uma das suas viagens marítimas sozinhos, mais felizes do que nunca. Quando a pirata fora ao seu encontro, o rosto transfigurado de Rhiara deixara-a preocupada. O pior: Harry não estava. Questionada, tudo o que a filha da Rapunzel dissera fora apenas um simples...
"Ele fugiu"
O luto de Rhiara durara um bom tempo, talvez até a princesa se conformar de que Harry desaparecera a meio da noite sem intenções de regressar. Uma assistira à tristeza da princesa ao longe, nunca acreditando que Harry realmente fugisse de Rhiara por ela estar prestes a tornar-se rainha. Aos poucos, a princesa voltara a sair do quarto, confraternizar e embrenhar-se no seu mais recente papel: herdeira do reino de Corona. Trabalhava dia e noite, conversava apenas com Audrey e com os pais, abandonara por completo a sua paixão pelo mar e pelas viagens. Em pouco tempo, deixara a jovem e ingénua Rhiara para trás, crescendo e amadurecendo para se tornar uma mulher séria e concentrada no seu trabalho.
Muito diferente da genuína Rhiara que Uma conhecera e que aprendera a gostar.
Antes que pudesse passar um sermão a Harry pelo que fizera a Rhiara, o seu telemóvel tocou, interrompendo-a. Ao abri-lo, deparou-se com o nome de Audrey, algo que não acontecia há um bom tempo. Deitando um olhar sério a Harry, atendeu, levando o aparelho ao ouvido com rapidez:
- Audrey? Está tudo bem?
- Uma! Não, não está nada bem!
- O que aconteceu? - questionou, franzindo o sobrolho.
- É a Rhiara!
Mesmo de longe, a voz esganiçada de Audrey ouvira-se. Os olhos marinhos de Harry fixaram-se em Uma, aproximando-se dela, todo o seu corpo alerta ao ouvir o nome da rapariga de quem tanto gostava. A bebedeira passara-lhe, a loucura esvaíra-se, restando apenas o verdadeiro Harry, como sempre acontecera quando Rhiara estava por perto.
- Audrey... O que aconteceu?
O silêncio pairou por breves instantes de ambos os lados da linha. A voz de Audrey saiu-lhe fina e preocupada ao dizer:
- Uma... A Rhiara desapareceu. Ela desapareceu. Precisamos da tua ajuda.
Uma engoliu em seco.
- Estou a caminho.
Sem esperar resposta, desligou a chamada, encarando o pirata à sua frente. O sangue fugira-lhe do rosto, tornando-o mais pálido que o costume. O corpo tremia-lhe, os olhos azuis fitando o chão, os lábios prensados numa linha fina.
- Já queres voltar para casa? - questionou Uma, erguendo uma sobrancelha incisiva.
Harry não lhe respondeu.
- Vamos. Temos um navio para roubar. - Uma encolheu os ombros, vendo-o encará-la, confuso - O quê? Eu vim no mar, transformei-me e vim a nadar. Não é como se tu conseguisses virar um polvo gigante, pois não?
O pirata voltou a não responder. Parecia atordoado, mumificado pelo que acabara de ouvir, demasiado preocupado para pensar. Uma revirou os olhos, aborrecida.
- Anda lá, Romeu. Vamos roubar o navio do Capitão Gancho e salvar a tua Julieta.
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