Capítulo 14
Quando fez seis anos, Gwen recebeu da sua mãe um presente. Era um livro com uma capa em couro avermelhado e uma estrela de cinco pontas no centro da mesma. Tinha muitas páginas e parecia velho, pesado e cheio de segredos.
A mãe dissera-lhe que tinha de o ler todo e perceber o que lá estava escrito. E Gwen iria cumprir porque Gwen amava a mãe e queria muito deixá-la orgulhosa. Mesmo que a mãe só gostasse da rapariga dos cabelos dourados que vivia na torre, mesmo que Gwen tivesse que viver fechada no sótão e visse a mãe muito poucas vezes. Ela queria fazer a mãe feliz. Talvez ela a deixasse sair um dia e pudesse conhecer a irmãzinha.
Quando se sentia muito sozinha, Gwen fazia de conta que Rapunzel estava a falar com ela. A sua voz fina e doce era ouvida cá em baixo, já que a menina falava muito sozinha quando Gothel ia fazer as suas compras e as suas viagens. Gostava de ouvir Rapunzel falar sobre o seu maior sonho: ver as luzes que surgiam no céu no seu aniversário. Gwen dizia-lhe sempre que iria com ela, mesmo que ela não fosse capaz de a ouvir. Tinha a certeza que, se Rapunzel a conhecesse, ela iria gostar de ter a sua companhia. Tinham muita coisa em comum: gostavam as duas de cantar, dançar, pintar, ler, cozinhar... e faziam essas mesmas coisas todos os dias. A única diferença é que Rapunzel tinha um cabelo brilhante muito bonito que deixava a mãe feliz e deixava Gwen a sentir-se muito mais forte quando lhe tocava. Já Gwen... bom, ela não tinha um cabelo brilhante mas tinha o seu livro especial e estava a aprender todas as magias que ele tinha.
Quando fez dezasseis anos, Gwen já chorava todos os dias porque se sentia muito sozinha. Tentara falar com a mãe sobre o assunto mas ela sempre desconversava, dizendo que não era seguro, que o mundo la fora não era seguro para uma menina especial como ela... Mas Gwen não queria ver o mundo. Ela queria ir ter com Rapunzel e as duas fariam companhia uma à outra.
Por vezes, a solidão e a tristeza eram muito grandes e Gwen achava que não aguentava mais... Era aí que ela a ouvia. Melodiosa, cheia de esperança e sonhos. A voz de Rapunzel inundava a torre como se soubesse que Gwen precisava, enchendo o seu coração de luz.
E por anos Gwen agarrara-se a essa luz. Até Rapunzel se ir embora e Gothel morrer. Até os vilões e seus filhos serem aprisionados na Ilha dos Perdidos. Aí, Gwen já não tinha luz. Não tinha sonhos nem esperança. Só tinha ela, a sua magia e o seu desejo de saber se a mãe algum dia a amara. Por isso, raptara Rapunzel e atraíra Rhiara para que ela trouxesse Gothel de volta. Se havia alguém que seria capaz de o fazer, era a dona do poder da Flor Dourada. A princesa que amava vilões, que ganhara o afeto de Hades, o Rei do Submundo. Ela arranjaria uma forma.
Então Rapunzel entrara novamente na sua vida e o coração escurecido de Gwen batera novamente. Havia vida, esperança, amor. Depois de tantos anos, talvez ainda pudesse ser o que sempre quisera. Ter o que sempre desejara.
A sua irmã.
- Rhiara, vai.
A ordem de Gwen era clara e Rhiara realmente queria segui-la. Queria ignorar os seus princípios e correr para salvar a mãe, deixar que a mulher responsável por estarem naquela situação sofresse as consequências dos seus atos. A princesa fechou os olhos por brevíssimos segundos, engolindo o choro e lançando um último olhar breve na direção da cama onde a mãe se encontrava estendida.
Rapunzel sempre a ensinara a fazer o que estava certo. De alguma forma, fora graças à mãe que se tornara corajosa, arriscada, determinada a lutar pelo que acreditava. Quando fugira da Torre no ano anterior, não pudera deixar de reparar quão parecia era com a mãe quando ela era mais nova. A infância e o medo tinham deixado a Rainha de Corona mais assustada, temendo pela vida da filha ao ponto de a prender dezassete anos dentro de um castelo, mas Rapunzel fugira da sua própria prisão para realizar o seu maior sonho e para isso era preciso coragem.
- Flor de Luz reluz...
Era preciso arriscar.
Naquele instante, Rhiara decidiu arriscar. Por muito que não quisesse, Gwen ainda era uma pessoa, apesar de lhe ter feito a vida negra, e estava em perigo. Ela não era capaz de lhe virar as costas, mesmo que o contrário provavelmente acontecesse. Não, Rhiara não era assim. Ela era a Princesa de Corona, futura Rainha, a jovem que acreditava em segundas oportunidades, em vilões, em corações e não apenas em ações.
Os olhos verdes-escuro de Gothel arregalaram-se, fascinados pelo brilho dourado que tomou conta do cabelo de Rhiara. A princesa inspirou fundo, invocando todo o seu poder até que a pele também brilhasse. Como um inseto atraído para a luz, Gothel fez menção de caminhar na direção dela, deixando Gwendolyn cair ao chão, esquecida do que estava a fazer. A adaga, no entanto, permanecia na sua mão e Rhiara pressionou o cabo da sua espada com mais força, pronta para atacar. A vilã não parecia ter intenções de a atacar, percebeu. Estava vidrada, como num transe, a mão livre estendida prestes a tocar nos fios de cabelo da princesa.
Esta desviou-se rapidamente, batendo com o punho da espada na nuca de Gothel com toda a força, empurrando-a ao chão. Tinha sido uma jogada arriscada. Se Gothel tivesse usufruído do seu poder, estaria mais forte. Rhiara esboçou um sorriso de lado, orgulhosa de si mesma pelo que fizera.
- Sua...
O sorriso de Rhiara desmanchou-se ao ver um objeto voar na sua direção, algo que Gothel atirara, desviando-se rapidamente antes que a acertasse. A Com o movimento, a espada caiu-lhe da mão e ela não se apercebeu da mulher que se levantara que agora se atirava ao seu pescoço, enraivecida. A princesa fechou o punho e acertou um soco bem dado no rosto de Gothel, empurrando-a para longe de si com os pés. A vilã cambaleou para trás, os olhos faiscando ao limpar o sangue que lhe escorria pelo nariz abaixo.
- Tu vais ser mais difícil de domar que a tua mãe.
Algo voou na direção de Gothel. Uma cadeira, que embateu ruidosamente no corpo da mesma, atirando-a ao chão. Rhiara olhou para trás de si, vendo Gwen ainda no chão, a mão estendida e a pele branca brilhante da magia que usava.
- Sai daqui. - ordenou Gwendolyn, apoiando-se na parede e tentando erguer-se com dificuldade.
Rhiara apressou-se a ir ter com ela, apoiando-a e ignorando os resmungar da mesma. Gwen estava pálida, o ferimento na sua cintura jorrando sangue sem parar, o corpo já por si doente ainda mais fraco.
- Eu não vou a lado nenhum. Nós vamos. Temos de sair daqui e pedir ajuda...
A princesa soltou um grito ao sentir uma dor absurda no seu flanco esquerdo. Uma mão puxou-a pelos cabelos com brusquidão e Rhiara largou o corpo de Gwen, tentando agarrar o pulso de Gothel firmemente agarrado aos seus cabelos. A mulher torceu a adaga e Rhiara soltou outro grito, os olhos revirando-se nas órbitas pela dor.
- Vamos embora, princesinha. - murmurou Gothel ao seu ouvido - Tu e eu vamos sair daqui, vamos para bem longe daqui e irás servir-me para o resto da tua vida. O teu poder é meu. Sempre foi. Sempre será.
- Eu... não vou... a lado nenhum...
- Não tens escolha, queridinha.
- Deixa-a ir! - gritou Gwen, tossindo - Por favor, mãe...
Gothel puxou a filha de Rapunzel bruscamente, arrastando-a consigo pela assoalhada. O covil de Gwen era na verdade uma pequena barraca. Lanternas acendiam-se à medida que passavam e os contornos da mesma começavam a ficar mais claros: uma pequena cozinha, um roupeiro... e a porta. Rhiara gritava a plenos pulmões, na esperança de que alguém do lado de for a ouvisse, mas Gothel não era parva e depressa se apercebeu das suas intenções. Com um grunhido, cortou um pedaço do seu vestido e amarrou-o à volta da boca de Rhiara, abafando-lhe a voz.
- Nós vamos ser muito felizes, meu amor. - sussurrou Gothel, acariciando os cabelos de Rhiara - Muito felizes.
A princesa grunhiu em resposta, amaldiçoando a vilã internamente. Pelo canto do olho, algo captou a sua atenção. Um objeto longo, branco, mágico. Rhiara arregalou os olhos, lançando as mãos para a frente e tentando segurar-se no pilar mais próximo, os pés firmemente prensados ao chão para que Gothel não continuasse a arrastá-la. Apesar da dor excruciante de ter os seus cabelos a serem puxados, a sua mente tentava raciocinar o mais rapidamente possível.
- Gwen! - gritou, o som abafado pela mordaça - A Varinha!
A filha de Gothel ergueu o rosto. Ela respirava com dificuldade, uma das mãos tentando esticar a hemorragia, a outra tentando impedir que ela ficasse minimamente sentada no chão. Os olhos verde-musgo acompanharam o olhar de Rhiara, notando a Varinha a vários metros de distância. Silvando de dor, tentou arrastar-se até lá, o corpo cedendo, batendo com a cara no chão.
- Não consigo! - gritou de volta, cerrando os punhos - Eu não consigo.
Rhiara prensou os lábios. Sem saber exatamente onde arranjou forças para tal, ela puxou-se a si e a Gothel para a frente, o suficiente para afrouxar o aperto dos dedos de Gothel nos seus cabelos, o suficiente para alcançar a adaga na mão esquerda da vilã. Por impulso, a princesa afincou-lhe os dentes no pulso, sorrindo ao vê-la gritar de dor e largar a adaga. Num movimento rápido, Rhiara apanhou-a, empunhando-a e erguendo-a no ar...
Cortando os fios de cabelo e libertando-se do aperto de Gothel.
- Não! O que fizeste?! - urrou a vilã, olhando-a com uma expressão horrorizada.
- O meu poder não vem do meu cabelo, criatura. - disse Rhiara, esmurrando a vilã com toda a força- Vem de mim. - os olhos esmeralda fitaram Gwendolyn, pesarosos - Desculpa mas eu tenho de dizer isto.
- O que... Não! Rhiara!
- Apanha a Varinha! Flor de Luz reluz...
A pele de Rhiara encheu-se de luz quase que de imediato, respondendo ao apelo da princesa. O poder da Flor Dourada evoluíra e ela estava consciente disso. Já não era apenas a filha de Rapunzel, cujo poder de cura apenas acontecia quando o cabelo entrava em contacto com a pessoa. Não, isso não acontecia com Rhiara. A mera presença da princesa era capaz de curar quem estava à sua volta... se houvesse uma ligação emocional. Ela fizera-o com a mãe, segurando a sua vida antes que a inconsciência a levasse. Ela fizera-o com Audrey para impedir que ela morresse até Hades chegar para a salvar. E não lhe tocara. Não precisava.
Fitou a mulher estirada no chão, a sua única esperança. Gwendolyn era a razão porque estavam naquela situação. Gwendolyn raptara a sua mãe, metera-a sobre uma poção mortal e fizera da sua vida um inferno.
- Aquela poção... É falsa, não é? - questionou Rhiara, aumentando o brilho da sua pele, encadeando Gothel para que a vilã não a atacasse.
- O quê?
- A poção, Gwendolyn. Não é uma poção letal.... pois não?
Um silêncio pesado instalou-se entre elas. Como se o tempo tivesse parado. Esperando.
- Não. - respondeu Gwen, baixando a cabeça- Eu não poria a Rapunzel em risco. Sinto muito, Rhiara...
A princesa de Corona sorriu. Aquilo era o suficiente. Com um suspiro, permitiu que o seu poder irradiasse, direcionando-o... para Gwendolyn. Esta susteve a respiração, observando a ferida fechar-se, a pele regenerando, as forças regressando ao seu corpo. Inspirou profundamente, sentindo a sua magia fervilhar, os ossos já escondidos por um corpo belo, um rosto belo, uma jovem saudável.
Rhiara curara a filha de Gothel... contra a sua vontade.
- Vou matar-te, Rhiara de Corona. - rosnou Gwen, pondo-se de pé.
- Por mim tudo bem. Mas primeiro salva-nos, está bem?
Assim que Rhiara se distraiu por breves segundos, algo a atingiu na nuca, atirando-a ao chão. Pontos escuros taparam-lhe a visão, sentindo-se à beira da inconsciência. Levou os dedos à nuca, de onde sangue escorria.
- Isto não está a correr bem. - murmurou, tossindo.
Estava fraca. Cansada. Arfou ao sentir o corpo pesado de Gothel pressioná-la contra o chão, as mãos atrás das costas sendo firmemente amarradas pela velha maluca. Iria ser levada por ela, trancada numa torre e nunca mais veria a família. Os pais. Harry. Audrey. Ben. Os piratas. Evie. Soluçou, tentando sacudir-se, tentando soltar-se...
- Mãe!
Gothel ergueu a cabeça, fitando a filha. Esta encontrava-se de pé, a Varinha numa mão, a outra apontada à mulher à sua frente. A vilã foi jogada contra a parede, o olhar surpreendido e aterrorizado encarando a jovem como se não a reconhecesse.
- Como podes virar-te contra mim, sua ingrata? - questionou, ultrajada - Foste tu que me trouxeste de volta!
- Foi um erro.
- Eu dei-te tudo! Beleza, juventude... e poder! Sem mim, não serias esta bruxa incrível que és hoje!
- Tu não me deste nada! Um vício com a Flor Dourada e nada mais! Nunca me amaste. Nunca quiseste proteger-me. Nunca quiseste cuidar de mim. Só me querias para usar a teu favor. És sempre tu, tu, tu e tu!
- Solta-me! Solta-me agora mesmo, Gwendolyn! - guinchou Gothel, prensada contra a parede pela magia invisível da filha - Solta-me já!
A bruxa da Lua encarou a mãe. Uma lágrima solitária escorreu pelo seu rosto, a qual ela limpou de imediato. Fora um erro trazer Gothel de volta. Fora um erro pensar que a mãe a amava... ou poderia algum dia amar. Observara por anos os filhos de outros vilões na Ilha dos Perdidos. Por muito piores que fossem, os vilões amavam os filhos, queriam o melhor para eles e muitos tentavam arranjar maneira de sair da Ilha para proporcionar aos filhos uma vida maior. Sozinha naquela Ilha, tudo o que Gwen quisera era dar à mãe a chance de também ela amar a filha como não amara quando estavam livres.
Infelizmente, alguns vilões não têm emenda.
- Bibidi... - Gwen sorriu, apontando a Varinha Mágica na direção de Gothel - Bobidi... Boo, sua cabra.
- NÃO!
O grito de Gothel ecoou pela Ilha antes que o raio branco que vinha da Varinha a atingisse e a levasse de volta de onde ela viera.... O Submundo. Num minuto, a mulher estava lá... no segundo seguinte, não estava.
E tudo ficou quieto por brevíssimos segundos.
As duas jovens arfavam, exaustas. Gwen dobrou-se sobre si mesma, apoiando-se nos joelhos para não cair, enquanto Rhiara pousara a testa no chão e respirava o menos possível, o corpo dorido de toda a pancada que levara. O pigarrear de Gwendolyn fê-la erguer a cabeça, vendo o ar comprometido da vila ao dizer:
- Mesmo assim... a tua mãe precisa do antídoto. Dei-lhe uma poção para dormir mas se não lhe der o antídoto...
- Deixa-me adivinhar: fica a dormir para sempre? - Rhiara revirou os olhos, fitando Gwen com um ar de poucos amigos - Subtil, bruxa. Tira-me daqui e vamos salvar a minha mãe... das tuas invenções idiotas, está bem?
Gwen estalou a língua.
- Não te estiques criatura ou deixo-te aí atada e no chão.
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