Capítulo 10
Rhiara sentia o coração palpitar desenfreado, as emoções a borbulharem dentro de si como se estivesse prestes a explodir. Lágrimas escorriam pelo seu rosto de forma involuntária. Como pudera ser tão injusta? Como pudera acreditar nas suas próprias inseguranças e achar que Harry não gostava dela? Porque nunca questionara o que o levara a fugir naquela noite, em vez de acreditar que ele não queria estar ao seu lado nem enfrentar a realidade com ela?
O Capitão Gancho observava a jovem silenciosa à sua frente com uma curiosidade quase científica. Esperava que a moça esperneasse, que protestasse, que desatasse aos gritos como uma donzela em perigo... Mas não. Ela simplesmente ficara ali, pensativa, quieta, perdida na sua mente e no seu coração.
- És uma jovem peculiar, princesa. - comentou o pirata, estalando a língua.
- O que quer? - questionou Rhiara, erguendo os olhos, inexpressivos.
- Várias coisas. Ouro, jóias, a tua coroa... Quero isso mas não só. Neste momento, quero dar uma lição ao meu filho. Ninguém atraiçoa o Capitão Gancho, nem o próprio filho...
- CAPITÃO GANCHO!
O som da voz de Uma fez o coração de Rhiara acelerar. De todos os lados, eles começaram a surgir: Uma, Harry e Gil tinham trepado o navio, uma faca em cada mão para fincar na parede e assim escalar a superfície do mesmo. A capitã cuspiu para o chão, os olhos castanhos faiscando de fúria dirigidos ao vilão, pouco intimidada com a tripulação dele, que começara a aproximar-se.
Os olhos de Harry, por sua vez, voaram de imediato para o ponto onde Rhiara se encontrava. Esta contorceu-se, querendo soltar-se e ir ao seu encontro, as palavras querendo sair de dentro de si numa rajada. A expressão rapaz alterou-se, abanando o gancho com veemência enquanto desdenhava:
- Pai, pai, pai... Nunca ninguém te ensinou boas maneiras? Não se deve explodir o navio dos outros nem raptar pessoas.
- Harry. - James Hook estalou a língua, rindo - Finalmente ponho-te a vista em cima. O que te aconteceu rapaz? Perdeste-te? Ou esqueceste-te do nosso acordo?
- Deixa-a ir. - respondeu Harry, dando um passo em frente- O nosso acordo está cancelado até porque já não ganhas nada com isso. Eu não estou com uma princesa. - a voz falhou-lhe, os lábios retorcendo-se no seu habitual sorriso de quem queria disfarçar o que sentia - Estou solteiro e falhado, como sempre, tal como tu sempre me disseste que seria. Por isso... - encolheu os ombros, inocente - Não tenho acesso a jóias, ouro, coroas... Nada. Sou apenas mais um pirata bebado como os teus comparsas.
- Não és nada disso. - murmurou Rhiara, sentindo-se à beira do choro - Harry...
- Nesse caso... - o Capitão Gancho desembainhou a espada, apontando-a à garganta de Rhiara - Não te importas que eu a mate, pois não?
A confusão instalara-se. Gil soltou um grito de guerra, atirando-se ao pirata mais próxima, enquanto Uma erguia a sua espada, manejando-a com destreza. Harry fizera o mesmo, lançando-se contra o pai, o sorriso enlouquecido no seu rosto enquanto dizia:
- Vamos lá dançar os dois, hein?!
O barulho de lâminas a chocarem ecoava pelo navio. Rhiara contorceu-se, tentando deixar as cordas mais soltas, furiosa por estar naquela situação. Ela queria estar no meio da ação! Ter a oportunidade de lutar contra piratas?! Uma figura rosa escondida atrás de uns baús chamou-a à atenção. Semicerrou os olhos, arregalando-os ao ver os contornos familiares de uma princesa que ela conhecia bem. A jovem dos cabelos longos morenos aproximara-se, ajoelhando-se atrás do mastro onde Rhiara estava amarrada.
- Audrey, o que estás aqui a fazer? - questionou Rhiara, os olhos esmeralda olhando em volta para garantir que ninguém se aproximava enquanto a melhor amiga cortava as cordas que lhe prendiam as mãos - Eu disse-te para ficares no castelo...
- Eu estava em Corona sossegada quando ouvi as notícias e soube que estavas em sarilhos. - respondeu Audrey, grunhindo - Malditas cordas... Ah! Feito.
As cordas caíram ao chão, cortadas com a faca que Uma emprestara a Audrey antes de irem em busca de Rhiara. A princesa de Corona esfregou os punhos, olhando em volta, por cima da confusão que se instalara. Com um sorriso, correu para a outra ponta do barco, escorregando para passar por baixo de uma espada que vinha na sua direção. Destemida, ergueu-se, a sua espada em punho embatendo contra a lâmina do pirata que a atacara. Ao longe, viu Audrey erguer algo escuro e redondo, batendo com força no pirata mais próximo de si. Rhiara soltou uma risada, aproximando-se dela enquanto se desviava dos ataques do homem furioso à sua frente.
- Uma frigideira? Estás a tentar imitar-me?
Audrey bufou, afastando os cabelos longos que lhe caíam para os olhos em meio aos movimentos.
- Estávamos num restaurante antes de vir para aqui. Foi a melhor arma que arranjei!
- E não é muito eficaz?
- Bastante!
Separaram-se, cada uma brandindo a sua arma da maneira que podia. Rhiara virou-se, a tempo de ver a espada de Harry voar da sua mão, o corpo do rapaz sendo empurrado para o chão pelo seu pai. Por impulso, a princesa lançou-se ao pirata, a sua espada chocando com a dele com um sonoro ruído.
- Deixe-nos ir! - exclamou Rhiara, desviando-se da lâmina de Gancho.
- Nem penses. - rosnou Gancho, furioso - Vocês invadiram o meu navio...
- Vocês explodiram o nosso!
- Ninguém... - Gancho atacou-a, apanhando-a desprevenida- Ataca... - a espada de Rhiara caiu ao chão, ao mesmo tempo que ela cambaleava para trás - O Capitão Gancho.
A filha da Rapunzel ergueu a cabeça. Caminhava na prancha, o mar aberto atrás de si, o vento a soprar brutalmente e deixando o oceano agitado em ondas fortes. À sua frente, o Capitão Gancho sorria, cruel.
Bruscamente, ele empurrou-a.
- HARRY! - gritou Rhiara, sentindo o corpo tombar para trás.
- RHIARA! - gritou Harry, correndo para alcançá-la.
Ele caiu de joelhos na prancha, esticando-se para a agarrar. Ela caía, demasiado depressa, demasiado pesada, os olhos esmeralda arregalados, o medo no seu rosto pela primeira vez desde que a conhecia.
Rhiara fechou os olhos, sentindo o choque da água fria contra o seu corpo quente enquanto afundava no mar gélido.
Estava frio, foi a primeira coisa que pensou.
Precisava de ar, foi a segunda coisa que lhe ocorreu.
Ofegou, buscando inspirar com toda a força, sentindo o pânico consumi-la. O profundo azul do oceano nunca a assustara mas, naquele momento, desesperava-a. Onde era a superfície? Estava tão escuro... Os pulmões começavam a doer do esforço que fazia para aguentar o fôlego.
Rhiara fechou os olhos. As palavras repetiam-se na sua cabeça, uma e outra vez, a melodia tão familiar.
"Flor de Luz reluz. Brilha, o tempo é teu. Volta tudo atrás. E traz o que foi meu...
Feridas vais sarar. Do que aconteceu. Salva o que eu perdi. E traz o que foi meu...
O que foi meu..."
Luz dourada inundou o oceano. A pele de Rhiara brilhava, o cabelo como ouro líquido espalhado pela água, a escuridão do mar inexistente. A princesa sorriu, satisfeita consigo mesma ao conseguir finalmente orientar-se. Com esforço, nadou até à superfície, sentindo o corpo cansado empurrar a massa de água à sua volta. O poder da Flor Dourada espalhava-se à sua volta, iluminando-lhe o caminho.
Um corpo mergulhou na sua direção. A filha da Rapunzel arregalou os olhos, esticando a mão para alcançar a mão estendida do pirata, que não hesitara em mergulhar para a salvar. Harry Hook envolveu-lhe o corpo com os braços, incentivando-a a apoiar-se nele enquanto ambos ascendiam. A inconsciência ameaçava tomar conta de Rhiara devido ao cansaço e à falta de ar mas ela não permitiria que isso acontecesse. Juntos, nadaram para cima, ofegando abruptamente quando atingiram a superfície.
- Desculpa. - balbuciou Harry, batendo os dentes do frio - Desculpa não te ter dito a verdade, desculpa ter fugido, desculpa ter-te roubado...
- Ei, ei! - Rhiara abanou a cabeça, os braços em redor do pescoço dele, os pés movimentando-se com dificuldade - Desculpa eu não ter tentando entender, não te ter procurado para saber o que tinha acontecido, eu só... Eu achei que não querias estar comigo. - confessou a morena, os olhos esmeralda marejados de lágrimas - Eu pensei...
- Nunca penses uma coisa dessas. - Harry beijou-lhe a têmpora, puxando-a na direção do barco, os olhos azuis brilhantes - Nunca, nunca, nunca... Entendido, minha dama?
Rhiara assentiu, esboçando um sorriso fraco.
- RHIA! HARRY! - gritou Gil, debruçado sobre o navio do Capitão Gancho- Agarrem!
O rapaz atirou algo na sua direção. Harry esticou-se, agarrando firmemente na corda, apertando Rhiara contra si. Lá em cima, Gil cortou a outra ponta, onde um peso a sustentava. Com um puxão, o pirata e a princesa foram puxados bruscamente. Quando iam a cair novamente, um tentáculo envolveu-os, o enorme rosto de Uma encarando os dois enquanto os pousava no convés.
- Desgraçados. - resmungou a filha de Úrsula, transformando-se novamente em pirata, sacudindo as roupas molhadas - Eu não queria molhar o cabelo hoje.
- Obrigada. - murmurou Rhiara, apoiada em Harry.
- Estão bem?! - perguntou Audrey, aproximando-se da melhor amiga em pânico.
- Sim... - a princesa cambaleou, trémula - Os piratas...
Uma apontou para um ponto em frente, com um sorriso de lado. Ao transformar-se para salvar Rhiara e Harry, aproveitara para bater com os seus tentáculos na tripulação de Gancho. Enquanto os restantes abordavam Rhiara, Gil entretinha-se a atar os piratas, certificando-se que eles não se mexeriam por um bom tempo quando acordassem. A filha de Rapunzel soltou uma risada, satisfeita.
- Vocês são excelentes. - elogiou, passando os olhos por cada um deles.
A princesa afastou-se de Harry, esboçando um sorriso confiante quando o viu encará-la com preocupação. Tinham muito para conversar mas ainda não seria naquele momento. Para já, Rhiara tinha uma última coisa a fazer antes de abandonar o navio.
A passos largos, aproximou-se da única figura acordada. O Capitão Gancho ergueu a cabeça, unindo as sobrancelhas numa expressão confusa ao ver a princesa aproximar-se dele.
- Vens obrigar-me a pedir desculpa? - ironizou o mais velho, soltando uma risada abafada - Só estarias a perder o teu tem...
O seu rosto foi atingido com um soco certeiro, a força e a velocidade do mesmo permitindo que o seu nariz fosse quebrado no processo. James Hook urrou de dor, os olhos lacrimejantes pela dor, o sangue escorrendo-lhe pelo nariz.
- Oh céus! - exclamou Rhiara, levando as mãos à boca - Eu não queria... Olhe, o senhor foi extremamente desagradável comigo e eu não tenho a culpa de estar furiosa consigo! Nunca mais se aproxime de mim e dos meus amigos, estamos entendidos?! - fez uma pausa, esfregando os nódulos dos dedos, doridos da pancada que desferira - A menos que seja para nos conhecermos melhor, já que vou tentar que o seu filho me perdoe e seremos familiar e...
- Rhia. - chamou Audrey, aproximando-se dela - Vamos embora, está bem?
E puxou-a, impedindo-a de continuar.
Algumas horas depois, os três piratas e as duas princesas acomodaram-se na Estalagem de Úrsula, o mais recente estabelecimento da mesma. Sozinha no seu quarto, Rhiara secava os cabelos, mais relaxada pelo banho quente. Estava cansada e ao mesmo tempo ainda assoberbada pelos acontecimentos das últimas horas, o sorriso bobo no seu rosto iluminando-lhe as feições tão sisudas ultimamente. Harry gostava dela. Talvez até a amasse, embora ainda não o tivesse dito. Ele não a abandonara, não fugira dela pela eminência de ser rainha, não era nada daquilo que pensara.
Harry fugira dela por ela.
- Já tiveste a tua diversão?
Rhiara virou-se, o estômago contorcendo-se de medo e de susto. Os olhos esmeralda analisaram as sombras, tentando discernir a figura de quem falara. Ergueu a vela que acendera momentos antes, levantando-se bruscamente ao reconhecer os contornos de quem a abordava. A sua boca secou, o coração acelerado, o punho livre cerrado junto ao corpo.
- Gwendolyn. - murmurou, prensando os lábios quando a mulher se aproximou, com um sorriso nos seus.
- Podes tratar-me por Gwen. Afinal de contas, já somos conhecidas, não achas?
A filha de Rapunzel não respondeu. A sua expressão suavizara, ligeiramente surpreendida com a jovem à sua frente. A beleza de Gwen parecia ter-se esbatido, como tinta que perdera a sua cor com o tempo. Os olhos verde-musgo estavam mais apáticos do que se recordava, a pele pálida quase transparente, os ossos do rosto mais salientes.
- O que se passa contigo? - perguntou Rhiara, analisando-a - Estás com um péssimo aspeto.
- Isso é suposto ser uma ofensa? - questionou Gwen, erguendo uma sobrancelha.
- Não. É um facto. - Rhiara pestanejou, aproximando-se dela com cautela - Eu tenho de perguntar: porquê Gothel é o que queres? Porque não queres que te cure... do que quer que tu padeças? Claramente estás doente...
- Eu não estou doente, boneca. - Gwendolyn estalou a língua, irritada - Eu estou a morrer. São duas coisas diferentes.
A princesa de Corona prendeu a respiração, abruptamente. A vilã esboçou um sorriso cruel, distorcendo as suas feições, outrora tão belas quanto letais.
- Não estavas à espera desta reviravolta? Isto não é um conto de fadas, filha da Rapunzel. Não quero a tua pena e certamente não quero a tua cura. O que eu quero é algo bem mais relevante do que isso. Agora... - a bruxa ergueu a mão - Onde está o meu prémio?
- Ainda falta...
Rhiara calou-se, ofegante. Levou a mão à garganta, sentindo um aperto sufocá-la. Gwendolyn aproximou-se, a mão erguida, esmagando a traqueia da rapariga à sua frente sem sequer lhe tocar. A filha de Gothel acariciou a bochecha da princesa, apreciando o sangue fugir do rosto dela, os olhos revirando-se nas órbitas enquanto ela lutava contra a inconsciência. Era mais forte do que parecia, pensava Gwen, sorrindo. Com um suspiro, soltou-a, virando-lhe as costas e ouvindo o seu corpo cair ao chão, demasiado fraco para se aguentar em pé. Rhiara rangeu os dentes, irritada.
- Para que foi isso?! - questionou, batendo com o punho no chão - Falta um dia! Achas que precisas de me ameaçar?! Tens a minha mãe! Se eu não fizer o que queres, ela morre. Achas que preciso de mais incentivos que esse?!
Gwendolyn virou-se, emudecida. A morena erguera-se, apoiada na parede, o queixo erguido em desafio, os olhos esmeralda faiscando com a fúria que sentia. A vilã humedeceu os lábios, pigarreando antes de dizer:
- Um empurraozinho costuma acelerar o processo...
- Processo?! Eu fui raptada! O barco dos meus amigos explodiu! Achas que não preferia estar a tratar do teu processo em vez disso?! Tenho que me curar a mim própria porque tu decidiste pôr a minha mãe num coma induzido sem pensar que isso me pudesse afetar porque o que raio isso interessa?! Oh nada, eu só fico mais cansada, mais lenta, mais fraca e lá se vai o teu processo! És, talvez, a pior vilã que já conheci! - Rhiara levou as mãos ao alto, exasperada - A minha melhor amiga foi uma vilã por poucos dias e até ela fez um melhor trabalho nisso do que tu!
- Mas tu és uma especialista em vilões para me estares a passar um sermão destes?!
- Olha talvez perceba melhor disto do que tu!
- Eu sou filha de uma vilã!
- AH! E OLHA SÓ COMO ELA ACABOU!
- POR CAUSA DA TUA MÃE!
- SE GOTHEL FOSSE UMA VILÃ MELHOR...
- Rhiara? - perguntou Uma, do outro lado da porta fechada - Está tudo bem?
- Sim! - guinchou a mesma, colocando as mãos na porta antes que a amiga a abrisse - Tudo certo!
- Pareceu-me ouvir-te falar...
- Ohhhh sabes que gosto de falar sozinha. - respondeu Rhiara, soltando uma risada nervosa - Está tudo bem, eu já saio para comer alguma coisa.
- Está bem. - retorquiu a pirata, com estranheza - Até já então.
- Até já!
Rhiara soltou um suspiro, encostando a testa na madeira da porta. Virou-se, franzindo o sobrolho ao ver que estava sozinha no quarto. No meio do chão, um papel fora deixado para trás, a caligrafia rápida desenhada a carvão.
"Um dia, princesa."
A filha da Rapunzel sentou-se na beira da cama, amachucando o papel com irritação.
O pesadelo continuava.
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