Capítulo 20
O jeep estava à uma distância de vinte metros. Se tivessem sorte, poderiam chegar até o veículo, entrar e arrancar, saindo em alta velocidade pela estrada.
Nicolas se encostou na parede da casa, olhou para os lados. Pôs a mão no peito de Giovanna, impedindo-a de dar um passo, e olhou ao redor. Ninguém. Mas não podiam se descuidar, nem considerar a hipótese de que alguns bandidos podiam estar posicionados em locais estratégicos, só aguardando eles saírem de onde estavam para apanhá-los novamente.
Giovanna já não chorava mais, porém estava emocionalmente destruída. Nicolas por várias vezes precisou ampará-la, olhando-a dentro dos olhos e lhe pedindo que fosse forte.
Mas como ela podia ser forte tendo perdido uma amiga a quem considerava mais que uma irmã? Como ser forte naquele pesadelo, sendo perseguida por loucos que queriam abrir seu corpo e tirar seus órgãos?
— Destrave a arma — ele pediu. — Assim. Pode ser que precise atirar.
— Eu não sei atirar.
— Vai ter que aprender. Ou somos nós ou eles.
Nicolas a segurou pelas mãos, tocou seu rosto.
— Não tenha medo. Eu estou com você até o fim. E não vão nos pegar.
A moça acenou em afirmação, os lábios trêmulos. Bem lá a frente, Fischer gesticulava, discutindo com a mulher e o rapaz que haviam chegado, e um rapaz de costas para eles. O grupo não percebeu o casal chegando ao jeep e entrando.
Nicolas pediu a Giovanna que se abaixasse e fechou a porta sem bater. Observou com atenção os lados, o maxilar duro e a atenção voltada ao grupo da frente. Bastava dar a partida, engatar marcha ré e sair em alta velocidade. Havia outros veículos com tração nas quatro rodas, e com certeza os bandidos sairiam em sua perseguição, mas ele teria uma boa dianteira.
O rapaz pôs a mão na chave. Os batimentos de seu coração se aceleraram. Ele avaliou o grupo à frente, e então o rapaz que estava de costas se virou de frente.
Tommy.
O homem odioso que havia se fingido passar por mochileiro, que desde sempre participara daquela engrenagem macabra. Nicolas estremeceu de ódio, suas mãos seguraram o volante como se quisesse quebrá-lo, e num movimento impulsivo, deu a partida, atingindo os olhos das quatro pessoas à frente com os faróis altos. Acelerou e deliberadamente atirou o veículo para cima deles, num rompante de puro ódio.
Tommy foi ágil e empurrou o pai para o lado e os salvou do atropelamento. Miranda e Martin, no entanto, foram atingidos violentamente e rolaram pelo capô e teto. Eles sofreram vários traumatismos com o impacto, seus ossos se quebraram e os dois caíram pesadamente no chão, imóveis.
Tommy e Fischer se levantaram. Viram, estupefatos, o carro ficar de novo de frente para si, a silhueta do veículo crescendo, se aproximando mais e mais, esmagando os corpos já ensanguentados de Miranda e de Martin. Mais uma vez eles escaparam do impacto fatal, ao se jogarem para os flancos.
— Filhos da puta! — Nicolas deu um murro no volante, se lamentando por não ter alcançado seu objetivo violento.
Giovanna olhou por sobre o encosto do banco, vendo os dois homens se colocando em pé num átimo. Alertados pelos gritos enfurecidos do médico e de seu filho, e também pelo barulho dos pneus cantando do jeep, os outros criminosos saíram das casas e se jogaram para dentro dos outros veículos.
— Eles vão vir atrás de nós! — a garota lançou um olhar aflito para o companheiro de fuga.
— Mas não vão nos alcançar — Nicolas balançou a cabeça em negação. Nada abalaria sua determinação de sobreviver e voltar ao seu país.
Giovanna olhou de novo por sobre o ombro. Os clarões dos faróis altos do veículo que estava em perseguição dos dois atingiu seu rosto. O motorista dirigia como se sua vida dependesse do sucesso da captura dos fugitivos, não poupando a suspensão do SUV e ignorando buracos.
— Se mantenha no meio da estrada — ela ordenou. — Não se aproxime da beira da estrada de jeito nenhum.
— O que vai fazer? — ele estava curioso.
— Só se mantém no centro.
Giovanna abaixou o vidro e abriu a mochila, tirando de dentro uma das pistolas que Nicolas havia lhe entregado. Estava tão agitada que sua primeira tentativa de carregar a arma com as balas falhou, e estas caíram aos seus pés. Conseguiu na terceira.
— Giovanna, se você estiver pensando em usar essa arma, a hora é essa. Só vai.
Ela assentiu. Olhou para trás. Esperou o SUV se aproximar, e quando pôde ver o rosto do motorista, pôs a parte de cima do corpo para fora e efetuou o primeiro disparo. Inexperiente com qualquer tipo de arma de fogo, ela falhou. Mas perdera o medo de atirar.
— Vai, Giovanna, você consegue.
Ela endureceu o maxilar. Outro disparo. Outra falha. Um terceiro disparo perfurou o parabrisa, atingindo o olho esquerdo do motorista. O SUV perdeu o controle e guinou violentamente para esquerda, saindo da estrada e capotando numa ribanceira junto com os cinco ocupantes. Não houve explosão, porém todos morreram por causa dos traumatismos e fraturas.
— Isso, garota — Nicolas balançou a mão esquerda da parceira, orgulhoso do disparo.
O esboço de sorriso morreu nos lábios da jovem enquanto olhava para a pistola fumegante em sua mão direita. Uma emoção terrível a acometera. Nem em pesadelo havia imaginado matar alguém, ela escolhera ser médica para salvar vidas, e no entanto, havia matado quatro ou cinco. Eram pessoas desprezíveis, indignas de viver, mas eram vidas, e toda vida pertencia a Deus.
Vitimada por uma súbita crise de valores, por um instante a jovem temeu perder a sanidade caso escapasse com vida e se tornar um monstro.
Não. Ela não havia matado a seu bel prazer. Ela não era uma assassina como um daqueles homens que a haviam sequestrado. Deus sabia que ela fora levada a cometer aqueles atos (injetando veneno no pescoço daquela prostituta e atirando no motorista do carro) e não iria se martirizar por isso.
— Está tudo bem com você? — Nicolas a subtraiu de suas deliberações.
A jovem o olhou, baixando o olhar por um instante, e acenando em afirmação em seguida.
— Tudo — limitou-se a uma resposta quase sussurrada.
O carro margeava perigosamente as ribanceiras, das quais mal se podia enxergar o fundo. Nicolas não aliviava por um segundo o pé do acelerador e à todo momento verificava pelo espelho retrovisor se outro veículo os perseguia. Mas tudo o que via eram apenas clarões dos faróis altos.
Como a estrada era cheia de curvas fechadas, mal ele tangenciava uma tudo o que ficava para trás desaparecia do campo de visão dos dois. O clarão das luzes, no entanto, não deixava pairar dúvidas de que os outros estavam logo atrás dos dois. Se Nicolas desacelerasse, estariam embutidos na traseira do jeep.
O coração saltava como louco no peito de Giovanna. Esta se sentia à beira de um precipício, muito mais alto, muito mais profundo que aquele que Nicolas desafiava com o carro. Ela sentia que a qualquer momento perderia o equilíbrio. Não queria morrer. Não queria ter previsões sombrias e derrotistas. A verdade é que seu desespero andava de mãos dadas com a esperança de escapar com vida, porém ao olhar por sobre o ombro, viu a silhueta apavorante de um carro negro encurtando a distância para o carro em que os dois estavam, com os dois faróis brilhando como os olhos de um demônio.
— Nicolas, eles nos alcançaram!
Nicolas apertou o volante com as mãos, deu tudo o que o carro tinha. Giovanna segurou novamente a arma, buscou coragem, pôs parte do corpo para fora. Disparou. O motorista ziguizagueou, escapando com destreza dos disparos da garota.
— Merda! — ela praguejou.
As balas acabaram e a estudante de Medicina se muniu de outra pistola, recomeçando com outra saraivada de tiros. Em vão.
Nicolas viu, estupefato, Tommy pôr a cabeça e a mão direita segurando uma arma, apontando para Giovanna.
— Abaixa! — o rapaz gritou.
A moça se encolheu. O tiro que saiu da arma de Tommy atingiu o espelho lateral do carro, estilhaçando o vidro. Por pouco ela não foi baleada.
— Você tá bem? — Nicolas se preocupou, temendo que um dos cacos a tivesse atingido.
— Não. Tá tudo bem — ela o tranquilizou.
No banco do carona do carro de trás, Tommy franziu o cenho e fez uma careta cheia de ferocidade e ódio. Sam, ao seu lado, rangia os dentes; seus olhos emitiam chispas furiosas, como os olhos de um lobo pronto para destroçar sua presa. Fischer estava no banco de trás, ao lado de Isaac e de um emudecido e perplexo Jeff. Este não demonstrava emoções, tão abalado estava pela morte da filha.
— Aqueles filhos da puta não vão escapar! — Sam prometeu. — Eles vão pagar caro por terem matado a Cassie, juro que vão!
— Então acelere a merda desse carro, porra! — Tommy se exasperou.
Fischer meneava a cabeça para os lados.
— Tudo perdido! — murmurou, furioso. — Tudo perdido! Merda! A Miranda é quem revendia os órgãos para os hospitais da região. Mas agora ela está morta. Morta! Que merda!
— Tô pouco me lixando pra isso agora! — Sam respondeu secamente. — Eles mataram a minha garota e eu vou matar aqueles dois!
Fischer soltou uma risada nasalada, nervosa. Em outra situação, desaprovaria as palavras de seu lacaio voluntarioso. Mas agora, a morte era a única possibilidade para o casal. Eles haviam visto os corpos de Laura e Pamela, sabiam que os makais o ajudavam a abrir corpos de turistas para lhes roubar os órgãos, e se fugissem, denunciariam a ele e as operações criminosas praticadas na reserva indígena.
Por seu rosto enrugado escorreu suor frio. Se afligiu. Eles não podem viver, decidiu. Arcaria com os prejuízos, demoraria meses para conseguir um novo atravessador, mas se reergueria. Tudo o que precisava era matar aqueles brasileiros desgraçados e desaparecer com seus corpos.
Indiferentes aos sentimentos e maquinações cheias de violência de seus perseguidores, Nicolas continuava acelerando e desviando dos galhos das árvores que em alguns trechos mergulhavam sobre a estrada como garras de monstros. Giovanna quis atirar novamente, porém ele a travou pelo punho, impedindo-a de assumir o risco de pôr a cabeça para fora.
— Deixe comigo — ele se forçou a parecer tranquilo.
Giovanna não manifestou contrariedade. Permaneceu em silêncio, confiando no companheiro.
Nicolas mantinha os olhos fixos na estrada à frente sem se descuidar de olhar no retrovisor a silhueta assustadora do carro. Tommy novamente apontou a arma, mas desta vez num ângulo baixo. O pneu traseiro esquerdo.
O brasileiro franziu o cenho. Não podia correr mais do que já estava correndo; o ponteiro já não se mexia no velocímetro.
Tommy engatilhou a arma, fez mira, e apesar de Nicolas tentar driblá-lo com ziguezagues pela estrada, o americano atingiu o pneu do jeep. Sem controle, o carro rodopiou e capotou uma vez antes de descer por uma ladeira, derrubando arbustos, escapando por pouco de atingir uma árvore grossa e parando a poucos metros de cair num rio de águas caudalosas.
Nicolas destravou o cinto após seu cérebro parar de mexer em sua cabeça. Estava tonto, mas fisicamente íntegro. Olhou para a moça ao seu lado.
— Giovanna — a chamou.
Ela gemeu baixinho, abrindo os olhos depois de quase um minuto. Sua expressão era de susto.
— Ainda estamos vivos?
— Não foi desta vez que a gente partiu — ele ainda conseguia ser engraçado. — Graças a Deus o carro desceu por um trecho não muito íngreme e não tinha nenhuma árvore na nossa frente. Mas agora vamos ter que correr a pé.
A porta ao lado do rapaz tinha amassado e ele precisou quebrar o vidro com uma pancada para sair. Giovanna cambaleou ao sair, tonta por causa da desaceleração e da capotagem, e Nicolas a segurou pela mão ao se pôr diante dela.
— Até o fim. Juntos — ele a encorajou com um tom firme e decidido.
Giovanna assentiu, de lábios semicerrados. Um pequeno filete de sangue escorria do lado direito de sua testa, causado pela capotagem. Se não tivesse afivelado o cinto após Nicolas impedi-la de atirar, talvez tivesse sido arremessada para fora do carro e esmagada.
— Você pode correr? — Nicolas se preocupou com a moça.
— Pra escapar daqueles assassinos, corro até com muletas.
— Então vamos — acendendo a lanterna, ele a segurou pela mão e a conduziu por uma trilha sem muitos arbustos.
Dois minutos depois, os cinco homens que os haviam perseguido desceram ao local onde o carro estava parado.
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