Capítulo 16
Ao verem o corpo inerte de seu companheiro de viagem, um grito se formou nas gargantas dos dois. Eles se aproximaram, vendo horrorizados moscas varejeiras se banqueteando no peito aberto à bala do rapaz.
Giovanna quase sofreu um desmaio. O próprio horror da cena, no entanto, a impediu de perder os sentidos. Suas pernas bambearam por um momento, o sangue parou de circular em suas veias.
— Que horrível…! Mataram o Roberto! — suas palavras saíram espremidas por causa do choque.
Os olhos de Nicolas lhe pararam nas órbitas. Não sabia o que conjecturar, nem o que dizer. Não tinha palavras.
Os braços de Roberto estavam abertos, em cruz. Sua perna direita estava esticada, e a esquerda, levemente dobrada. Sua boca estava escancarada, seus olhos voltados para o alto, num semblante de desespero.
— Quem fez isso com ele? Quem? — Giovanna perguntou, lágrimas brotando de seus olhos.
— Não sei — Nicolas a segurou pelos ombros —, mas não podemos ficar aqui. O assassino deve estar por perto.
— Eu quero ir embora desse lugar, Nicolas… Vamos chamar a Pamela e o Tommy, vamos voltar para a aldeia… vamos… Meu Deus, por quê? Será que aqueles bandidos voltaram?
— Temo que sim, Gi. Você está certa, precisamos cair fora. Não podemos fazer nada pelo Roberto.
— Mas não podemos deixar o corpo dele aqui — Giovanna fez menção de se abaixar para tocar o corpo, mas o rapaz a segurou pelo braço. — O que foi?
— Você não pode tocar nele. Aconteceu um assassinato aqui, Giovanna.
— E o que fazemos então? Deixamos o corpo do Roberto aqui, para os abutres o comerem?
Nicolas estava em completo estado de estupor, sem saber o que conjecturar. Havia brigado com Roberto há poucas horas e ficado em alerta, a espera de um ato traiçoeiro dele. Não gostou de seu gênio forte desde que travaram a primeira conversa ao subirem no ônibus. Achava-o prepotente demais, presunçoso. Mas nunca o quis mal.
Nenhum ser humano merecia ter um fim horrível e triste como aquele: ser assassinado numa floresta, como caça, como um animal que se mata por esporte. Aquele podia ter sido o destino de qualquer um deles. De repente seu corpo estremeceu, como se uma lança de gelo lhe transpassasse o peito. Eles podiam ainda ter o mesmo destino do companheiro se ficassem ali.
— A Laura… — o nome da morena lhe saiu dos lábios como um murmúrio agonizante.
— Meu Deus… Temos que procurar a Laura! — Giovanna olhou para os lados. — Laura! — gritou, pondo as mãos em frente à boca.
— NÃO! — Nicolas a puxou pelo pulso com muito mais dureza do que pretendía. — Giovanna, você não pode gritar — eles podem estar por perto. Nos espreitando, brincando com a gente, igual gatos fazem com ratos antes de matá-los.
Giovanna sucumbiu à vontade de chorar. Suas lágrimas agora desceram por seu rosto em abundância e Nicolas a puxou para si, tentando ser seu amparo.
— Eu tô com medo… Não! Tô apavorada… O que a gente faz?
— Vamos voltar ao rio, contar a Pamela e ao Tommy que o Roberto está morto e também contar que a Laura desapareceu. Juntos, temos mais chance de escapar daqueles assassinos. Temos que voltar para a aldeia, avisar ao Isaac e à polícia que eles estão aqui e que o mataram — Nicolas apontou com o queixo para o cadáver estirado no chão. As moscas varejeiras zumbiam, sobrevoando o buraco aberto em seu peito. O sangue já estava seco e preto.
Giovanna não tinha nenhuma sugestão, por isso aceitou a do rapaz, com um meneio afirmativo de cabeça.
Lançaram um último olhar para o corpo que outrora abrigara a alma de Roberto, com a mesma gravidade com que olhamos para o corpo de um ente querido no caixão antes que este desça à cova fria. Giraram nos calcanhares e começaram a andar.
Caminhavam cabisbaixos, o pavor fustigando-os como um vento enregelante, olhando para trás a todo momento. Sentiam que os assassinos saltariam por detrás dos arbustos quando menos esperassem.
Nicolas não se afastava um centímetro de sua companheira, sempre mantendo sua mão direita no ombro dela numa atitude de proteção.
Então eles avistaram à frente, no cimo de uma elevação de terra, a silhueta de um homem. Pararam no lugar. Sentiram que o coração queria lhes saltar pela boca.
— Vocês estão bem? — a aparição acenou com o braço direito para o alto.
Giovanna semiabriu os lábios, incapaz de reagir.
— Amigos, perguntei se vocês estão bem — o homem insistiu e os jovens reconheceram-lhe a voz.
— É o Isaac Brown — Nicolas sorriu aliviado, segurando Giovanna pelos ombros. E voltando-se para o caçador: — Isaac! Precisamos de ajuda, mataram o Roberto!
— O quê? Como assim? Um de vocês foi assassinado na nossa zona de caça?
— É verdade! — Giovanna se angustiou ao ser tomada de novo pelo trauma. — Mataram o Roberto com um tiro e a Laura desapareceu!
Isaac pulou hábilmente por sobre uma raiz sobressalente de uma grande e velha árvore e desceu ao encontro dos jovens. Seu semblante era tenso, sua mandíbula estava dura, e a expressão que lançou aos dois os fez se perguntarem se ele estava impactado com o relato ou furioso.
— Vocês têm que voltar à aldeia agora. Não há mais nada o que ser feito aqui — ele falou com rispidez.
— Mas o Roberto… A Laura! — Giovanna colocou-se de frente para o makai.
— Não se preocupem com eles. Preocupem-se com vocês. E os outros dois?
— Estão na cachoeira. Mas…
— Ótimo! Eles também tem que voltar. Vocês! — Jeff surgiu ladeado por dois homens vestidos com roupas de caça, os três portando armas. — Vão buscar os outros dois!
Giovanna e Nicolas se entreolharam, abismados e confusos, encarando boquiabertos o caçador.
— Qual é a tua, Isaac? — o moço se exasperou, agitando os braços para os lados.
— CALA A BOCA! VOCÊS VÃO VOLTAR COMIGO PARA A ALDEIA AGORA!
Mal terminou de gritar, Max apareceu às costas dos dois jovens e derrubou Nicolas com uma coronhada na nuca. Seu corpo tombou no chão cheio de folhas como uma rocha. Não se mexia, parecendo morto.
Giovanna levou as mãos à boca, cheia de horror e soltou um grito esganiçado ao levantar os olhos e reconhecer o agressor de Nicolas como sendo um dos homens mal encarados que os espreitaram no quiosque na noite anterior.
Não teve tempo de digerir o horror, nem de berrar. Isaac lhe torceu os braços por trás e um outro homem pôs um lenço embebido em clorofórmio em sua boca. Giovanna esperneou, lutou o quanto pôde, mas caiu inconsciente no chão ao lado de Nicolas, com sua mão tocando a dele e seus rostos, próximos.
Como um casal de namorados que vão morrer.
…
Cassie fechou a porta atrás de si e desceu os cinco degraus da escada. Tirou as luvas ensanguentadas, jogou-as num cesto de lixo amarrado a um poste de luz, avistou Sam acocorado, admirando o brilho de uma faca comprida, com cabo em formato de soco inglês.
A jovem e fria assistente de Fischer se aproximou do homem corpulento, caminhando como uma modelo, parou diante dele e sorriu. Porém ele continuou olhando sua arma preferida sob vários ângulos, e só notou a presença da garota quando esta ronronou como uma gata e lhe tocou os ombros.
— O primeiro trabalho do dia está concluído com sucesso — ela anunciou, sem esconder seu contentamento.
— Hum! — Sam fez sem interesse.
Cassie mordeu o lábio inferior. A indiferença do namorado a irritou, e um murmúrio lhe saiu da boca.
— Talvez até às dez da noite tudo esteja terminado — ela insistiu em chamar para si a atenção de Sam, e conseguiu, pois este se dignou a olhá-la.
— Nunca termina e você sabe disso.
Cassie deu de ombros.
Sam riu. Um riso indiferente, mas com um leve teor de sarcasmo.
— Sabe o que é engraçado, Cassie? Estamos atolados até o pescoço nesse esquema, há meses trazemos turistas estrangeiros pra esse fim de mundo tirarmos os rins e os fígados deles, e eu nunca tive, até hoje, curiosidade de te perguntar uma coisa.
— O que você quer perguntar?
Sam mordeu o lábio inferior. Sorriu, o olhar perdido, fixo na lâmina de sua faca.
— Eles sentem dor enquanto estão sendo abertos com bisturis?
Cassie meneou a cabeça para os lados, riu. Achou graça na pergunta.
— Como usamos doses fortes de sedativos e anestésicos, eles não sentem dor. Mas sentem que estão mexendo em seus órgãos.
— Ah, sim…
— Isso o deixa em paz com sua consciência, meu amor?
A jovem se senta ao lado do rapaz, toca-lhe o rosto com o dorso do dedo e beija sua boca, de leve.
— Eu nunca deixei de dormir bem, mesmo quando achava que eles sofriam. Pra mim, tanto faz. É o nosso trabalho.
— Ah, mas eles sofrem. Imagine estar acordado e vendo alguém abrir sua barriga e tirar seus rins, e saber que em questão de minutos você estará morto. Seu psicológico sendo destruído sem pena. Seu coração parando aos poucos. Você ofegando, suando. E de repente, você morre. Já imaginou que horrível deve ser, vendo tudo ficar preto de repente e tudo acabar? — havia prazer nas palavras da jovem.
O canto esquerdo da boca de Sam se elevou. Ao ser instruído quanto ao processo de evisceração dos escolhidos de Fischer, uma violenta excitação tomou conta de seu corpo. Deixando sua faca no chão, segurou Cassie pelos ombros e correspondeu ao carinho dela.
— Você é muito cruel, gata. Por isso eu sou louco por você. Você é como uma droga pra mim.
Cassie sorriu, aceitando com prazer as carícias do namorado em seu rosto e seios.
— Vocês dois — Fischer saiu à porta —, não é hora pra se beijarem feito pombinhos. Deixem para amanhã essas manifestações patéticas de afeto, temos muito trabalho a ser feito.
Sam não gostou da admoestação recebida do doutor e desejou matá-lo. Mas conhecia seu lugar. Era um empregado obediente.
O quileute limitou-se a fechar os punhos e a franzir o cenho, ações obviamente percebidas e ignoradas por Herr Doutor Fischer.
— Onde estão Isaac e Jefferson? — ele quis saber.
— Foram à mata ajudar os outros a buscar os outros quatro — Sam respondeu num tom de superioridade.
— Ótimo. Daqui a pouco vamos pôr outro na mesa. Cassie, você ajuda Emma de novo. Depois é a vez da Serena e da Susie. Não vejo a hora de acabar logo com isso e sair desse lugar isolado, longe de tudo.
Fischer fez menção de entrar novamente, mas se deteve, olhando por sobre o ombro para Sam, que cruzara os braços e encarava o médico com um semblante hostil. Afrontado, desceu as escadas e andou até o casal, parando diante do homem.
— Não me olhe com essa cara — brandiu o indicador.
— Eu só tenho essa — Sam retrucou com sarcasmo.
— Ainda não engoli termos perdido um deles por sua causa.
— Então a culpa foi minha? É isso? — o nativo empurrou o peito de Fischer com as palmas das mãos, por pouco não o derrubando.
— Se vocês tivessem um pouco mais de competência, era para termos mais um agora na mesa de operação.
— Quer saber? Foda-se!
Sam girou nos calcanhares com um gesto de desdém e andou em direção a uma casa. Cassie o seguiu.
— Garota, não vá pra longe! Preciso de você aqui daqui a pouco.
…
A porta metálica se abriu com um rangido.
— Anda logo! — uma voz grossa de homem se fez ouvir. — Anda, porra! Isso!
O outro deixou algo cair no chão.
Uma arma.
— Acende a luz!
Uma lâmpada de brilho fraco se acendeu no teto e os dois homens atiraram o corpo nu de Laura sobre montes de feno à granel, secos. O ventre dela estava aberto, sem rins, sem o fígado, e suas tripas saltaram para fora no instante em que a carcaça esvaziada tocou o chão forrado. Os olhos da moça miravam o teto, arregalados, sem vida. Sua boca sem dentes estava escancarada.
O porão fedia carne podre, mas não havia nenhum corpo senão o da moça. Um rato punha cautelosamente o focinho para fora da toca, logo se ocultando na penumbra do esconderijo assim que os dois homens viraram as costas para a morta.
A luz foi apagada.
A porta se fechou.
Moscas passaram a fazer companhia ao cadáver.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro