Capítulo 1
No longo trajeto que o ônibus vinha fazendo em direção a pequena cidade costeira de Brookville, Giovanna passou a maior parte do tempo dormindo ou cochilando, só despertando uma única vez quando o motorista parou num restaurante de beira de estrada para que os passageiros almoçassem.
Foi nessa parada que ela e a amiga Pamela conheceram Laura, Nicolas e Roberto, que como as duas, estavam fazendo mochilão pelos Estados Unidos, aproveitando a estação das férias.
Os cinco trocaram experiências de viagem, fazendo surgir o congraçamento natural entre viajantes, e após a parada de meia hora, subiram no ônibus. Só desceriam quando chegassem a costa do Pacífico.
— A gente não chega nunca — Giovanna resmungou enquanto teclava o celular, atualizando seu status nas redes sociais. “Cansada e com a bunda doendo”, postou.
Giovanna era uma garota negra, seus cabelos tinham cachos volumosos e sua boca, carnuda. Fôra dela a ideia de cruzar os Estados Unidos, partindo de Nova York rumo à costa do Pacífico, como uma terapia para esquecer o namorado a quem havia traído com o médico chefe do hospital onde ela era estudante quintanista. A verdade era que a futura cardiologista se sentia mal, e como Mike a mandou desaparecer de sua vista, ela uniu o útil ao agradável e saiu para viajar, trazendo Pamela consigo.
Em segundos, o post da jovem recebeu os primeiros comentários, provocando risos.
Pamela, que lia um livro sobre sadomasoquismo, estranhou o súbito bom humor da amiga. A bela loura de olhos azuis, nariz pontilhado de sardas e boca bem feita ergueu uma das sobrancelhas fininhas.
— O que foi? — perguntou, pondo um marcador no livro a fim de não perder a página.
— Só atualizei meu status — Giovanna respondeu, mostrando a tela de seu aparelho.
— “Cansada e com a bunda doendo” — a loura leu. — Ah, não! Apaga isso. Não é legal.
— Ora! Por quê?
— As pessoas tem imaginação fértil e podem pensar besteira.
Giovanna ficou boquiaberta.
— A única que pensa besteira aqui é você, sua safada — protestou. — Eu não faço esse tipo de coisa.
— Não sabe como é bom — Pamela mordeu o lábio inferior, deixando a moça negra irritada.
Pamela, assim como Giovanna, nasceu e cresceu em São Paulo. Fez balé até os dezessete anos, idade com que prestou o vestibular e começou a estudar Educação Física. Ao contrário de Giovanna, que era impulsiva e ranzinza, a loura tinha um temperamento dócil, carinhoso.
— Mas que humor, nem parece que está indo para uma das praias mais lindas da costa do Pacífico, próxima a reserva quileute — Pamela passou seu braço em volta do ombro da amiga. — Muda essa cara, amiga.
— O problema é que não consigo ficar de bom humor quando meu corpo todo dói, quando estou com vontade de fazer xixi e nem posso usar o banheiro do ônibus, porque a privada está suja. E quando tento me distrair um pouco, postando um status divertido, minha amiga, que eu amo como irmã, usa meu post inocente pra dizer que sexo anal é bom, como se eu curtisse.
— Fale mais alto, Giovanna, o pessoal não ouviu — Pamela pôs a mão na frente da boca.
— Se ouviu, não entenderam nada. Eles falam inglês, esqueceu?
— Be quiet, please! — a cabeça de um rapaz ruivo e com sardas surgiu ao lado de Pamela, que se assustou ao olhar para ele.
Giovanna fechou os olhos e suspirou profundamente, entediada, grudando a cabeça no vidro.
A paisagem não mudava nunca. Abetos e outros tipos de árvores típicas das regiões temperadas, encimadas por um céu sempre cinzento que ameaçava precipitar chuva a qualquer momento. Como não podia chover, se era naquela região onde ficava a cidade de Forks, onde foram gravado os cinco filmes da franquia Crepúsculo?
Um alce saiu de repente na frente do ônibus e obrigou o motorista a mostrar perícia com o volante e o freio do veículo. Felizmente a pista não estava escorregadia, o que evitou que os passageiros fizessem companhia aos esqueletos das pessoas que no passado foram parar numa ribanceira íngreme após uma capotagem fatal.
— Motorista idiota! — Giovanna murmurou.
Pamela olhou para o teto, balançando levemente a cabeça e rindo com travessura, e notou lá atrás, quase nos últimos lugares, os outros três brasileiros.
Laura, uma moça de cabelos negros, porém lisos, dizia algo sobre um pub que servia cerveja irlandesa enquanto os dois rapazes assentiam em concordância, acrescentando comentários.
A loura sorriu ao ter de repente sobre si os olhos verdes do rapaz chamado Roberto, e virou-se para Giovanna.
— Ele é tão bonito — abriu novamente o livro sobre sadomasoquismo.
— Quem? — Giovanna estreitou os olhos.
— O Roberto. Aquele que está a direita da Laura.
— Ah, é… Bem apessoado.
— Bem apessoado? Miga, ele tem quase um 1,90 de pura perfeição, olhos verdes e uma boca que pede pra ser beijada, e você diz que é só bem apessoado?
— Pamela, já ouviu aquele ditado “santo de casa não faz milagre?” — a moça de pele negra pousou o queixo na mão apoiada na janela. — Eu não vim aos Estados Unidos pra olhar brasileiro. Era só o que me faltava.
— Deixa de ser esnobe. Quer saber? Curta aí teu mau humor e dorme mais um pouco.
— Perdi o sono.
— Azar o seu.
Giovanna bufou e pôs um travesseiro sobre o rosto, afundando seu corpo sobre a poltrona que não reclinava mais do que a coluna dela gostaria.
A jovem saltou correndo do ônibus assim que o veículo parou na plataforma e deixou Pamela encarregada de pegar suas mochilas cargueiras.
— Sai daí! — ela puxou pelo braço uma senhora que acabava de abrir a porta de uma das cabines, e a fechou com estrondo.
Um sorriso de alívio se desenhou em seu rosto quando urinou e se sentiu leve.
Pamela olhava para os lados, esperando a amiga voltar. Por ser devagar, acabou ficando por último na fila, atrás do trio de compatriotas. Específicamente de Roberto.
Os dois insinuaram olhares cheios de mensagens, sem nada a dizer, até que o moço quebrou o impasse.
— O que achou da viagem? — ele puxou assunto.
— Boa. E você?
— Boa.
— Legal — Pamela deu de ombros, pondo uma mecha de seu cabelo atrás da orelha.
— Onde você e sua amiga vão se hospedar?
— Deixa eu ver — a loura tirou o celular do bolso. — Olympic Hostel! Fica perto da saída da cidade.
— Não brinca. Nós também vamos nos hospedar lá.
— Uau! Que coincidência.
— Ou não — Roberto pôs as mãos nos bolsos da jaqueta — Brookville tem só dois hostels, então as chances de ficarmos no mesmo lugar eram de cinquenta por cento.
— Bom — Pamela deu de ombros —, é verdade.
Roberto, ao sorrir, fez uma covinha surgir no canto esquerdo de seu rosto.
— Conversamos um pouco lá atrás no restaurante, mas não lembro de vocês terem contado o motivo da sua viagem.
— Ah! — a loura fez. — É que minha amiga teve problemas pessoais, se sentiu muito mal e decidiu fazer um mochilão de duas semanas pela América para esquecer algumas coisas. E como ela não sabe viver sem mim, me obrigou a vir junto.
— Entendo. Todo mundo viaja para esquecer seus problemas.
— E vocês? Por que estão viajando?
— Não posso falar pela Laura e o Nícolas, já que não os conheço bem. Eu sou professor de ensino médio numa cidade do Mato Grosso do Sul, e como é recesso escolar, decidi me dar de presente essa viagem e aproveitar as duas semanas de férias para praticar meu inglês.
— Que legal. Eu ainda não sou professora, mas logo vou me formar em Educação Física. Só falta um semestre pra eu terminar a faculdade.
— Esse curso combina com você.
— Mesmo? Por quê?
— Bom. Porque você é muito bonita e tem porte atlético.
Pamela se sentiu agradecida pelo elogio e suas bochechas coraram.
— É, sério. Você tem uma postura muito bonita.
— Obrigada. É que eu estudei balé clássico dos cinco aos dezessete anos, por isso sou magra. Mesmo não dançando há quatro anos, mantive alguns hábitos. Sabe como é… alongamentos, flexões de braços, abdominais. Algumas coisas a gente não consegue esquecer.
— Por que parou de dançar? Podia ser hoje uma excelente bailarina.
— Ah, não! Eu já não aguentava mais, sério. Eu não parava mais em casa nos fins de semana, nem namorar podia. Quando meu pai disse que eu teria que levar a vida mais à sério e ter uma profissão de verdade — Pamela fez sinal de aspas com os dedos —, fiquei tão feliz que só faltei abraçá-lo.
Roberto riu do relato.
— E você tem namorado agora?
A pergunta constrangeu um pouco Pamela. A loura pôs uma mecha do cabelo louro atrás da orelha, sorriu encabulada, pigarreou antes de responder.
— Não. Tô solteira.
— Tá porque quer — o professor encerrou olhando a loura por sobre o ombro e sorrindo cheio de insinuações.
Pamela se derreteu com a afirmação, sentindo sua calcinha molhar tamanha excitação apenas por olhar para o belo professor de Inglês.
— Estou atrapalhando alguma coisa? — Giovanna apareceu do lado da amiga exibindo um sorriso cretino, imaginando um clima de flerte entre os dois.
— Não — Pamela deu de ombros. — Claro que não.
O motorista do ônibus conferiu as duas guias, entregando as mochilas cargueiras das garotas e agradecendo.
Nicolas, que havia andado alguns metros após pegar sua bagagem, voltou transfigurado e irradiando raiva. As amigas abriram caminho para ele passar.
— Cara, olha o que você fez — abriu a mochila. — Você quebrou minha garrafa térmica.
— Me desculpe, senhor. Foi um acidente.
— Acidente vai ser eu reclamar junto a viação em que você trabalha e exigir indenização. Porra, eu carrego essa garrafa térmica há cinco anos, e como ela ficou? Em cacos de vidro — para ilustrar, o brasileiro balançou garrafa no ar para o infeliz motorista ouvir o barulho dos pedaços de vidro dentro.
— Lamento por isso, mas vai encontrar boas garrafas aqui em Brookville.
— Pra vocês, americanos, tudo se resolve assim, não é? Com dinheiro! O dinheiro compra tudo!
Uma multidão se juntou em volta do brasileiro, curiosos querendo saber como terminaria a questão. Roberto e Laura o puxaram pelo braço, sendo seguidos por Giovanna e Pamela, que temeram se tornar alvos da indignação popular.
— Nicolas, você tá louco? — Laura deu um safanão no ombro do companheiro de viagem. — Não pode falar assim, criticando os americanos. Somos minoria aqui.
— Falo como quiser! Só falei a verdade, esses americanos acham que podem comprar tudo com dinheiro. Essa garrafa tinha valo sentimental pra mim e aquele imbecil a quebrou.
Ao erguer os braços para justificar sua atitude intempestiva, a camiseta de Nicolas se ergueu, permitindo que Giovanna visse seus músculos abdominais e o v por cima da calça que agrada toda mulher. Ela pensou que talvez pudesse mudar seu conceito sobre zero chances de olhar para brasileiros nos Estados Unidos.
— Meu Deus, que perfeição! — suspirou.
— Você está bem, amiga? — Pamela balançou a mão aberta diante da companheira.
— Hã? Ah, claro. Bom, vamos chamar um carro de aplicativo e ir logo para o hostel.
Giovanna olhou por sobre o ombro para o rapaz que teve a garrafa térmica quebrada, e este, o vê-la, se acalmou, permitindo-se corresponder a atenção da bela garota negra com um sorriso.
— Nos vemos no Olympic Hostel — Roberto acenou para Pamela.
A loura devolveu o gesto.
— Eles vão se hospedar no mesmo hostel que a gente? — Giovanna mal conteve a surpresa.
— Vão sim — Pam pôs a enorme mochila nas costas e ficou parecendo menor do que era. Media modestos 1,65 de altura, pouco comparado aos quase 1,72 da amiga.
O carro de aplicativo as deixou em frente a uma casa de madeira localizada quase na saída da cidade e rodeada de árvores, com uma placa de madeira ond se lia OLYMPIC HOSTEL.
Giovanna foi tomada de uma sensação de abandono, tudo naquele lugar lembrava solidão, sombras, talvez por causa do céu revolto. Nuvens escuras fugiam em desespero no alto e um vento cortante soprava, prenunciando chuva.
— Vamos entrar, tô com frio — ela abraçou o próprio corpo, andou em direção a casa.
Mal parou em frente a porta, um relâmpago aclareou o céu seguido de um trovão.
Uma mulher de traços indígenas surgiu e olhou com desconfiança para as brasileiras, medindo-as da cabeça aos pés.
— Pois não? — perguntou à um voz neutra.
— Temos reservas. Um quarto misto, para seis pessoas — Giovanna respondeu.
A mulher as fez entrar e passou para trás de um balcão de madeitra em que um velho computador de internet discada se destacava em meio a folhetos de pizzarias, pubs e restaurantes.
Após fazerem o check in, as jovens entraram no quarto alugado, jogando no chão suas enormes mochilas.
— Enfim, podemos descansar um pouco — Pamela se jogou de costas numa das beliches.
Giovanna se aproximou da janela aberta, sentindo-se oprimida pela chuva que caia, provocando enxurrada na rua. Os pingos pesados retiniam nas calhas metálicas da casa.
— Merda! Eu queria ir à praia.
— Cê tá louca? — Pamela atirou um travesseiro na amiga. — A gente acabou de chegar, tô cansada, e você me fala de praia. Isso pra mim é gatilho.
— Ah, vá, Pam! Eu não tô pedindo pra você ir comigo. Posso muito bem ir sozinha. Ou melhor, eu não vou. Tá chovendo.
— Não vejo a hora de voltar para o Brasil. Esse lugar é muito úmido e triste.
— Pára de reclamar. Eu, hem.
— Aprendi com você.
— Idiota!
— Imbecil!
Giovanna devolveu o travesseiro que a atingiu e fez a amiga cair de costas na cama, rindo alto. A estudante de medicina aproveitou a brecha e saiu correndo do quarto com uma toalha e uma muda de roupa para tomar banho.
Ficou por quase dez minutos sob o chuveiro, recebendo a água quente e revigorante sobre o corpo nu, e encontrou Pamela conversando com Roberto, Laura e Nicolas ao voltar.
— Olá de novo — Laura sorriu enquanto tirava roupas de sua mochila.
— Que mundo pequeno — Nicolas comentou pondo-se em pé.
— Cidade pequena, na verdade — Giovanna o corrigiu.
Um sorriso malicioso se desenhou em sua boca carnuda e Nicolas, notando a mudança na silhueta da jovem, sustentou o olhar dela no seu, retribuindo com uma piscada.
Na recepção, a velha hospedeira andou até a janela e tocou no ombro de um rapaz que usava moletom de capuz e olhava para a chuva.
— Vou avisar o doutor que temos cinco estrangeiros — ela o informou. — E você, faça sua parte.
Sem olhar para a índia, o jovem de feições ocultas limitou-se a um meneio positivo de cabeça, saindo pela porta da frente e fechando-a com estrondo.
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