VII - Conhecimento
Helena estava na porta da secretaria enquanto Caroline pegava os seus horários. O centro de estudos, como todos os chamavam, parecia uma mistura pouco convencional entre uma escola de ensino médio e um instituto de pesquisa. Os corredores eram largos e vários estudantes passavam, aproveitando mais um dia normal de aula. Tudo cheirava à magia, mas no fundo também tinha uma nota daquele odor de produtos de esterilização. E mesmo que pudesse ignorar aquele cheiro pungente e que coçava o nariz, bastava olhar bem para as faces das pessoas que ela notaria que aquele não era um lugar qualquer.
Algumas pessoas tinham a pele azulada ou alaranjadas, outras tinham guelras e barbatanas e usavam capacetes de água na cabeça. Era tanta informação que Helena se sentia zonza. Os punhos cerrados ao lado do corpo eram uma das poucas indicações de que estava assustada.
– Quem diria que eu seria arrancada da minha vida pra viver numa espécie de internato. – Helena comentou quando Caroline voltou, vários papéis na mão. Falar ajudava a ignorar o arrepio gelado que subia na sua coluna sempre que alguém olhava por tempo demais para ela.
– É bizarro, mas parece que eles assumem a responsabilidade de te educar até o final do ensino médio. – A outra comentou enquanto ambas iam até outra ponta do corredor.
– E para o que? Faculdade? – Ironizou. Um desse com o capacete de água quase esbarrou em Helena, fazendo-a pular para o lado.
– Ouvi boatos e que é para trabalhar para o governo, algo assim. Ninguém sabe muito bem o que é. – Caroline deu de ombros, mas falou em um mais baixo, como se fosse uma conspiração.
– Bem, isso é deprimente. – Foi toda a resposta de Helena.
– Uau! Olha quem está se adaptando bem! – Uma ruiva se aproximou delas assim que dobraram em um corredor. Helena a reconheceu.
– Também estou impressionada, Júlia. Você mesma esperneou por uma semana antes de começar a colaborar. – Caroline riu e passou o braço pelos ombros da outra. – Lembro como Gareth ficou ofendido com você depois que saiu gritando ao vê-lo.
– Não escuta o que essa biruta está falando, Helena. Ela se acha só porque foi a primeira a chegar e só tinha a Beth para assistir as birras dela. E Gareth já me perdoou.
– Bom, não me resta muita escolha a não ser aceitar. – Helena comentou, embora seu coração doesse. – Embora eu deva admitir que estou muito assustada.
– Garota esperta. Mas logo você se acostuma. – Júlia anuiu. – Bom, preciso ir. Vocês acreditam que colocaram o Philip no meu grupo de treinamento?
– Eu tenho certeza que ele mexeu algum pauzinho pra fazer isso acontecer. – Caroline comentou enquanto a amiga bufava.
Helena apenas observou a interação das duas. Ela foi poupada de tecer qualquer comentário ao chegarem na porta de uma sala.
– Bom, eu te deixo aqui. Toma, aqui são seus horários. – Ela entregou os papéis e ajustou a bolsa no ombro. – Eu tenho que ir agora, senão vou perder o sinal. Boa sorte!
E assim Helena ficou sozinha, no corredor que rapidamente ia se esvaziando. Olhou para o papel. História e Tradições. Ótimo começo.
Entrou na sala e pegou um dos lugares no fundo. O ideal seria passar despercebida, o que não aconteceu. Evitou ao máximo os olhares e continuou sua jornada até o fundo, num lugar onde se sentiria mais segura. Para sua sorte, ninguém tentou falar com ela antes do sinal tocar.
– Bom dia. – Um homem alto e forte entrou na sala. Ele tinha os cabelos negros em uma trança longa e tinha o porte de quem passou a vida dando ordens. Sua atenção logo se desviou para Helena, para quem semicerrou os olhos em uma expressão severa. – Apresente-se.
– Eu... – A garota pigarreou. – Eu me chamo Helena.
– Bem-vinda à Begônia, Helena. Aqui será o seu novo lar. – Ele disse e a turma repetiu no mesmo tom, surpreendendo a garota. – Eu sou Oslom e serei seu professor esse período.
Helena anuiu e ficou aliviada quando a aula transcorreu sem que as atenções se voltassem para ela. Embora ainda fosse cedo para admitir aquilo para si mesma, prestou mais atenção na aula o que em qualquer outra na sua vida.
– Continuando o assunto a aula anterior, falaremos sobre o Grande Tratado, que trouxe paz aos nossos povos. – Oslom falou para a turma enquanto rabiscava alguma coisa no quadro.
Helena tirou um caderno novo da bolsa que Beth lhe dera e abriu em uma folha qualquer para anotar a aula. Sua mão tremia um pouco enquanto escrevia o título e a data. Sua atenção foi rapidamente capturada pelo homenzarrão que apontava para a lousa.
– Para entender sua importância, temos que compreender o poder de um tratado firmado entre os povos. Desde a antiguidade até os dias de hoje, nunca se tratou de apenas um documento com acordos para evitar conflitos. Com a nossa magia, os tratados não podiam ser quebrados ao bel prazer dos governantes. Eram acordos que seriam honrados a fim de termos paz, e paz verdadeira. Abram o livro na página 35, afim de vermos quais acordos foram feitos antes deste que culminou na nova ordem mundial.
Helena acompanhou a aula no livro assim como os demais e ficou maravilhada com o conteúdo que seu antigo livro de história não ensinava. Antes que pudesse perceber as horas passando, a voz de Oslom sobreveio:
– Estão dispensados.
Helena arrumou o material, estremecendo sempre que alguém passava perto demais de sua cadeira. Estava caminhando até a porta, ruminando como acharia a próxima sala, quando o professor a chamou.
– Você não está tão atrasada em relação aos conteúdos, já que é o começo do período. Ainda assim, perdeu três aulas. – Ele comentou, folheando seu livro. Franzia um pouco a testa, como se precisasse usar óculos. – Semana que vem quero que me entregue um resumo dos dois primeiros capítulos do livro. O.k.?
– Tudo bem. – Ela respondeu prontamente.
– Pode ir.
Helena saiu, olhando o horário. Literatura II. Ela suspirou. Talvez não tivesse tantas novidades quanto imaginara.
Não que odiasse literatura, era apenas... chato. Chato em comparação com as coisas que estava vivendo.
Seguindo o protocolo de sentar-se ao fundo da sala, esperou a aula começar. Uma mulher de pele escura e sobrancelhas fortes entrou na sala. Ela tinha um belíssimo cabelo que lhe caía nas costas e olhos verdes muito hipnotizantes.
– Bom dia turma. – Ela cumprimentou a turma com a voz mais linda que Helena alguma vez ouvira. – Olá, caloura. Me chamo Nali. Qual o seu nome?
– Helena. – Disse a garota, suspirando, sem conseguir evitar. Não houve estremecimento ou sensações no estômago, apenas uma leve calma que se assentou sobre ela. Suas mãos pararam de tremer e suar.
– Seja bem-vinda. Não se preocupe com o atraso da matéria. Ainda estamos no começo do período e tenho certeza que você vai acompanhar. – Disse a mulher que se voltou para o quadro negro assim que Helena anuiu.
Helena tomou coragem e espiou os colegas de classe. Ninguém com guelras e barbatanas, mas uma ou duas garotas tinham tons de pele além do convencional.
– Hoje vamos ver mais um pouco sobre as sereias. – Helena se inclinou sobre a cadeira, curiosa. Pareceriam elas com os seres que vira desenhado outra vez? – Muito da literatura humana é inspirada em seres como nós. O relato mais antigo das sereias é encontrado na Odisseia. Mais recentemente temos Kafka, em O Silêncio das Sereias. Mas isso foi antes da Grande Guerra. Como sabem, qualquer literatura que seja inspirada no nosso estilo de vida é banida dos Novos Continentes. – Nali olhou severamente para a turma.
Helena sabia que era verdade. Vira milhares de livros sendo queimados e renomados escritores sendo arrancados de suas casas e indo para a prisão. Por um segundo, sentiu raiva dos humanos também.
– Agora, abram seus livros na página 24 para entendermos melhor o que as sereias representavam na antiga cultura e quais distorções nós temos nesses contos...
E, como na outra aula, essa também passou voando. Helena não podia dizer que era a aluna mais interessada da sua antiga escola, mas aquele conhecimento... Aquele novo conhecimento, tão proibido no seu Continente. Ela simplesmente não podia ignorar também.
Enquanto pensava, caminhou meio sem rumo, tentando entender tudo o que ouvira. Precisaria anotar tudo para não esquecer.
– Ah, oi! – Uma garota se aproximou de Helena, com as mãos cheias de livros.
– Olá...
– Seu nome é Helena, né? Eu sou Gil, da sua turma de História e Tradição. – Ela lançou um sorriso que fez seus óculos redondos subirem um pouco.
– Desculpe, não me lembro. – Disse Helena, observando a garota baixinha de franja e cabelo curto.
– Ah, não. Tudo bem! É o seu primeiro dia, não vai se lembrar de muita coisa. – Gil sorriu de novo, olhando para a menina com expectativa.
– Desculpe, eu estou... Eu fiz algo errado?
– Não, não! Jeesh, onde estou com a cabeça. É que o professor esqueceu de te dar um dos livros complementares que estamos usando na aula. Aqui, oh, é o de cima. Pode pegar.
Com cuidado, Helena pegou o livro da pilha da garota. "A cor de cada povo" dizia o título.
– Muito obrigada.
– Você está indo comer agora? – Perguntou, com esperança.
– Estou. Bem, estava. Acho que eu me perdi. – Helena riu, sem graça.
– Que sorte! Eu te levo pra lá! – Gil respondeu, muito animada. Elas começaram a caminhar na mesma direção da multidão.
Enquanto andava, Helena estava tentando ignorar a parte dela que gritava que aquela garota era uma aberração, que todos ao redor eram. Caroline comentara mais cedo que seria bem mais fácil se ela apenas ignorasse seus antigos preconceitos.
– Jeesh, ignorar é a parte mais difícil.
– Disse alguma coisa? – Gil perguntou.
– Nada. Vamos?
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