Cinco
Não sou capaz de fingir que esse cara não me deixa intrigada.
Acabo ficando constrangida até, para falar a verdade.
Acontece que já comi pelo menos um terço da minha refeição enquanto ele mantém os olhos fechados e, com os cotovelos repousados ao lado do prato, as mãos se cruzam, apoiadas ao queixo, como se ele fizesse uma prece.
Devo admitir que última coisa que esperava de Saul, com todo esse estilo rupestre e tudo e mais, era que fosse minimamente religioso.
‒ Obrigado por atender ao meu pedido ‒ solta ele, quando finalmente acaba sua oração para seja quem for, antes de levar o garfo à boca.
Toda essa formalidade me transporta de novo para o século XIX e imagino quão agradável seria se fosse Sir Phillip quem estivesse em seu lugar.
Exceto por ser impossível e provavelmente significaria que eu preciso de internação.
Mas de qualquer forma isso só dura um minuto porquê, graças à sua pouca discrição, torna-se inevitável notar que os olhos estão especialmente fixados na minha echarpe.
Poderia, inclusive, jurar que está se segurando agora mesmo para perguntar se estou com frio com aquele sarcasmo no tom de voz, entretanto, isso não é algo que eu gostaria que ele tivesse a oportunidade de indagar.
É por isso que faço um esforço descomunal para chamar sua atenção para qualquer assunto que não seja minha aparência.
‒ Imagina. Você vive aqui há muito tempo? ‒ emendo o mais rápido que consigo.
‒ Sete anos ‒ responde Saul, mecanicamente. E então desconversa. ‒ Acho que ainda não me desculpei pelo que aconteceu na estrada, não é mesmo?
O pedaço de frango que acabo de abocanhar de repente parece ter paralisado minha língua.
‒ Nham-aham ‒ retruco como posso, sem saber ao certo se estou negando ou confirmando.
A verdade é que também não me lembro. Tanta água já rolou depois disso, desde o céu e entre nós, que sequer parece que tudo aquilo aconteceu há apenas algumas horas.
‒ É bom que saiba que não sou assim ‒ sua voz soa rude, como se pedir desculpas realmente lhe causasse alguma dor física ou se estivesse realmente muito envergonhado, e os olhos encaram ao próprio prato por muito tempo.
Eu, porém, ignoro-o de propósito, até que levante o olhar para mim.
‒ Assim?
‒ Você sabe do que estou falando... ‒ afirma, fuzilando-me entre as pálpebras semicerradas. A bochecha quase chega a corar, e eu sinto que Saul implora mentalmente para que eu não exija detalhes.
Eis aí um jeito engraçado de se desculpar.
‒ Você quer dizer como o babaca que se referiu aos meus pelos pubianos?
É quando acontece. O homem enrubesce tanto que quase chego a confundi-lo com o pimentão que jaz em seu prato.
‒ Bem, sim...
‒ Ah claro. Me perdoe se eu não considerar essa informação muito válida.
‒ Desculpe? ‒ pergunta ele, cheio de modos.
Modos demais para quem usa uma barba rala, estilo lenhador, e dirige uma caminhonete enferrujada. De novo. Não posso deixar de considerar essa uma constatação curiosa.
‒ Você sabe como é. Já dizia o velho ditado: quem anda com porcos...
Então ele me encara por um tempo. Chega a semicerrar os olhos outra vez, como se tentasse analisar o que se passa em minha cabeça. Sua mandíbula está tão contraída que fico imaginando o que o homem tanto segura para não dizer.
Outro punhado de comida é empurrado com o garfo para sua boca, quando ele bufa ‒ bufa! ‒ e desvia os olhos.
Aí está! Rude outra vez.
‒ O quê? ‒ pergunto, afinal ele não vai insinuar qualquer coisa ao meu respeito e sair impune com tanta facilidade.
O olhar de Saul se levanta preguiçosamente para mim. Sua covinha de uma bochecha só se intensifica quando o lábio se contorce em um meio sorriso satisfeito.
Começo a pensar em que batalha acabo de perder sem que tenha ficado sabendo.
‒ O quê? ‒ repito. Ele arqueia sobrancelha.
Arg!
É evidente que não vou cometer a humilhação de repetir a pergunta. Ele não precisa saber que a curiosidade sobre o que se passa em sua cabeça está me consumindo. Para minha surpresa, porém, a voz de Saul quebra o silêncio:
‒ As coisas nem sempre são preto no branco, sabia, princesinha?
‒ Não! ‒ aviso, o dedo em riste em sua direção no lado oposto da mesa. ‒ Nós não estamos jogando esse jogo.
‒ Jogo?
Como ele parece genuinamente surpreso, só posso deduzir que seja um ótimo ator.
‒ Você não vai começar a me chamar assim. Ou de qualquer outra coisa que não seja meu nome.
Saul solta o garfo e revira os olhos.
‒ Ah, você é dessas. Entendi.
Ele conseguiu. Estou ardendo de raiva. Sinto uma pontada no estômago que me faz perder a fome até.
‒ O que quer dizer com isso?
O som que meu talher faz ao bater em sua mesa de vidro é maior do que o esperado. Tanto que a senhora que nos serviu o almoço de repente surge, assustada.
‒ Oh, meu Deus! O que houve?
Ele estende uma mão para tranquilizá-la.
‒ Tudo bem, dona Julia. Não foi nada. A Mag só deixou o garfo cair.
Ela me encara por um tempo. O franzir no cenho indicando confusão;
‒ Você quer outro, querida?
‒ Não, dona Julia. Obrigada. Esse aqui está ótimo.
Eu noto que Saul olha para mim com ironia, como se não acreditasse, nem por um segundo, na minha boa educação.
‒ Esse é mesmo seu nome? ‒ pergunta ele, assim que a mulher sai. O rosto mais sério do que a voz deixaria transparecer.
‒ É Magnólia. Mas eu prefiro Mag.
‒ Tá bom ‒ diz, e estou quase aceitando terminar minha refeição de modo confortável, quando o ouço resmungar. ‒ Vai ser Magnólia, então.
É aí que eu entendo.
Este homem de maneira alguma será meu "muso".
Será meu pior personagem.
O maldito antagonista.
***
‒ Sabe, talvez essa tenha sido a ideia mais brilhante que eu já tive na vida ‒ digo a Érica, ao telefone, horas após meu almoço catastrófico.
Minha modéstia evidentemente ficou perdida na mesa, junto com aquele... grosseirão.
‒ Para quem não queria escrever sobre um cowboy, você parece bastante empolgada.
Sua voz soa meio como tédio, meio como desconfiança e eu não posso fingir que isso não me deixa irritada.
‒ Não estou empolgada, Érica ‒ retruco, deitada de costas na cama, enquanto uso a mão livre para me livrar da echarpe que começa a me fazer sentir um calor infernal. ‒ Estou inspirada! O que é muito melhor, você não pode negar.
‒ Eu não duvido. Você escreveu cinco mil palavras em duas horas. Eu mal sabia que isso era humanamente possível.
‒ Ora ‒ solto, nada modesta mais uma vez. ‒ É muito possível.
‒ Sei ‒ diz ela. ‒ Bom, fico feliz que a viagem já esteja fazendo efeito.
Isso me contraria um pouco. Mas não dá para negar que, de uma forma ou de outra, não seja mesmo verdade.
— Mag — minha agente chama, antes de se despedir. — Espero que entenda. Eu não posso garantir aprovação antes da análise. Não estou me comprometendo com você.
— Uhum — é tudo que digo.
— Falo sério, Mag. Isso aqui saiu completamente diferente do que foi proposto.
— Érica?
— Sim?
— Apenas confie em mim.
***
Helloooo, meus amores!
Me perdoem pela demora...
Mas as semanas têm andado bastante corridas e eu não queria publicar aqui sem ao menos revisar o capítulo!
Espero que o conteúdo tenha compensado o atraso!
Torço para que estejam gostando!
7k de leituras... isso é real? Vocês são incríveis demais!
Obrigada por isso!
Beijinhos e até a próxima!
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