Histórias macabras
Após uma boa dormida e alguns sonhos estranhos, abro os olhos e percebo que o ônibus se prepara para fazer uma parada num posto, no meio pro final do caminho a Ribeirão Preto. Retiro as remelas que se formaram timidamente em meu rosto e desço para esticar as pernas. Levo comigo um pequeno lanche que trouxe na mochila para evitar gastar nesses postos de estrada, sempre tão caros.
Como não pretendo entrar no estabelecimento comendo, faço o contorno na loja e procuro um banco afastado para ficar a sós com meus pensamentos. Fico a observar o negrume da noite que se propaga entre as densas árvores da floresta iluminada por uma lua que timidamente aparece entre o céu nublado. Estaria enganando a mim mesma se dissesse que todo esse ambiente não me passa um pouco de medo.
Toda essa imagem me faz lembrar diretamente de meu pai. Ele adorava me pregar peças assustadoras quando criança e arrepiar minhas noites com terríveis pesadelos pelas histórias que me contava antes de dormir, quando comecei a entrar na adolescência. Esse ambiente fazia tipicamente o estilo das histórias que ele gostava de contar.
Ele havia trabalhado num bar quando jovem e durante o período aprendeu um monte de histórias assombradas com um caseiro de um pequeno vilarejo. Uma das minhas favoritas falava da vez que ele havia encontrado uma mulher nua na frente de casa, chamando por ele.
Enfeitiçado pelo momento, ele a perseguiu até um bosque onde, pode enfim ver, que a mulher tinha metade da sua pele morta, decomposta e exalava um terrível aroma de carne podre. Fugiu aterrorizado após a descoberta e foi perseguido pelo "espírito" até de volta a entrada da sua casa, quando não a viu mais. Porém, disse ele logo após, sentiu se observado ainda por diversas noites pela janela de seu quarto.
Droga... eu não deveria pensar nessas histórias em momentos como esse. Ouço um corvo grasnar ao fundo e seu som quase fez meu coração pular pela boca. Recomponha-se Elizabete, você é melhor que isso. Isso é apenas uma história boba.
Claro, quando cresci percebi que as histórias que meu pai me contava eram todas falsas. Contos fantásticos criado por um caseiro com muito tempo livre disponível, sem muito mais o que fazer. Quando fui morar sozinha em São Paulo sim, foi assustador. Posso me lembrar inclusive de um caso que me aterrorizou completamente.
Ainda no meu primeiro mês dividindo um apartamento com minha colega de quarto, não havia me acostumado a ficar sozinha por longos períodos de tempo numa casa. Minha casa em Cravinhos, apesar de grande, sempre amontoada pelos meus parentes, privacidade era um luxo que eu estava apenas tentando me acostumar.
Minha companheira de quarto havia me mandado mensagem dizendo que viraria a noite fora, com certeza deve ter encontrado algum gatinho na balada e iria... aproveitar a noite com ele. Eu estava presa a meus estudos e a uma preciosa xícara de chá mate com limão, que me mantinha acordada. Porém esse momento de contemplação foi interrompido quando a luz do apartamento apagou.
Demorei alguns segundos até o susto passar para perceber que foi uma queda de luz geral. É estranho se acostumar com uma cidade que nunca dorme até o momento que toda a energia desaparece e você se encontra na completa escuridão. O desconforto de ficar sozinha começava a desenvolver em medo, não sabia o que fazer.
Fui correndo pro celular, pensando em ligar para alguém, mas meu descuido e a atenção focada nos estudos deixou que ele ficasse sem bateria. O único telefone que tínhamos em casa era digital, por isso não funcionava sem energia. O medo começava a tomar uma forma mais definitiva.
Talvez tenha ficado poucos segundos parada pensando no que poderia fazer, talvez longos minutos. O importante é que havia ficado nessa posição de defesa e apreensão por tempo suficiente para morrer de susto quando ouvi algum barulho vindo da cozinha. O medo dava lugar a um agudo desespero.
Sabia que ficar parada não resolveria nada então decidi-me a enfrentar meu medo e ao menos tentar descobrir o que ocorreu, meus olhos agora estavam melhores treinados para a escuridão e podia ver alguma coisa. Corri para a cozinha esperando para o pior, abri a porta com força com o que me havia sobrado de coragem e encarei agressivamente o ambiente. Nada havia lá.
Já que estava na cozinha, peguei a faca de carne de modo a me defender do que quer que seja, aproveitei também e... bem, peguei um pouco de sal na cozinha. Todos os seriados e livros de terror que vi dizem que fantasmas e coisas do tipo são fracos ao sal. Parecia uma ótima ideia na hora.
Nesse momento todas as histórias contadas pelo meu pai passavam na minha mente ao mesmo tempo, alimentando o círculo de incertezas e inseguranças. Certamente ouvir um novo barulho, vindo agora do banheiro, não melhorou meus ânimos. "Não quero morrer em um banheiro" foi o que pensei na hora.
Negociei com minha consciência o quanto pude e percebi que deveria entrar no banheiro de qualquer forma. Prendi a respiração ao colocar a mão na porta e abri de uma só vez. Quando encarei o vulto que me encarava de volta, diretamente nos olhos, nada pude fazer a não ser dar o maior grito que já dei em toda minha vida. Quase desmaiei por falta de ar quando ele acabou e pude finalmente racionar o que havia presenciado.
Era apenas meu próprio reflexo no espelho do banheiro.
Porém o invasor estava ainda confinado no banheiro e se mostrou tão assustado quanto a mim mesma pela situação, pois havia feito uma pequena confusão no armarinho onde estavam meus cremes e outros produtos de beleza. Quando finalmente encarei o pequeno encrenqueiro vi que não passava de um gato de rua, que havia entrado pela janela e estava tão assustado e temendo pela sua vida como eu pela minha.
Como uma espécie de presente sórdido da realidade pelo stress a qual eu sobrevivi, a energia voltou pouco após a descoberta e pude encarar melhor o meu companheiro de sustos. Um belo gato de olhos amarelos e corpo cheio de manchinhas de diversos tons de cores que não seguem nenhum padrão. Naquele momento soube que tinha virado dona de um gato e, para pontuar a situação, o dei o nome de Malhado.
Minha companheira de quarto não só adorou o gatinho como gargalhou, e ainda gargalha, com a história do nosso primeiro macabro encontro. Mas certamente ninguém se divertira mais com a história toda que meu pai. Por diversas vezes ele me pediu para contar a história de novo e de novo, ressaltando os detalhes que mais o interessavam, já que me deixar completamente aterrorizada foi todo seu passatempo durante minha infância.
Escuto ao longe o ônibus ligando de novo. Olha a hora! Me distraí tanto com essas memórias bobas que quase perdi o ônibus, nem sequer toquei direito no meu próprio lanche. Corro apressada para o transporte e peço timidamente desculpas a um motorista com um olhar bem sério a meu devaneio . Sento em minha poltrona, termino de comer e volto a cochilar. Há uma cidade a minha espera na chegada dessa longa viagem.
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