Como sobreviver numa cidade grande
"Seu ônibus irá partir na plataforma 46, pegue a próxima saída à esquerda e boa viagem" foi o que pude ouvir pelo grosso vidro da cabine de venda de passagens com uma saída de voz eletrônica fraca pela moça que estava me vendendo uma passagem. Agora era oficial, estava voltando para minha cidade local para passar o natal com a família.
Peguei minha passagem e com alguma dificuldade pude achar a plataforma certa da qual partirá meu ônibus. Como ainda tinha um tempo até embarcar - meu ônibus sequer havia chegado ainda - tirei um tempo para observar o local e as pessoas.
Estive em São Paulo por... talvez cinco anos já? Vim pra essa cidade para cursar a faculdade de arquitetura, da qual estou prestes a terminar, e ainda sim posso dizer com segurança que ainda não me acostumei com o movimento intenso e alucinante dessa cidade.
Milhares de pessoas partindo, milhares de pessoas chegando. Todas sempre com pressa, embrutecidas pela correria do dia a dia. Claro, estarmos nos tempos de festas de fim de ano e isso só piora as coisas. Regiões como a 25 de março e o bairro do Brás ficam simplesmente impossíveis de se locomover. Mas droga... como amei fazer parte dessa cidade esses poucos anos.
Nasci e cresci em Cravinhos, cidade próxima de Ribeirão Preto. Pacata e bucólica seriam descrições bem modestas para a cidade, mas mentiria se não dissesse que criei um laço afetivo especial pelo lugar. Há mais da cidade em que nascemos em nós mesmos do que gostamos de confessar.
Porém sempre tive os olhos voltados para a cidade grande. Desde criança eu nutri uma paixão especial pela arquitetura. Observava fotografias e imagens de suntuosos palácios e edifícios em revistas e me senti maravilhada, como pode obras de arte em concreto como essas serem o trabalho de uma só pessoa. Eu havia decidido ali mesmo que eu deveria ser uma arquiteta. Os anos de estudo para conquistar uma bolsa na universidade Belas Artes foram trabalhosos e foi nesse período que o apoio da família contou mais do que tudo.
Após todo esse tempo meditando sobre minha vocação, quase não notei que o ônibus finalmente chegou e os passageiros já estavam subindo. Peguei minha mochila e procurei meu lugar para sentar. Recostando minha cabeça a janela, fiquei observando lentamente o ônibus saindo da marginal e abandonando lentamente o ambiente urbano.
Quando se imagina das dificuldades de sair de casa na adolescência é impossível não pensar diretamente na própria mãe. Apesar de sempre me incentivar nos estudos e em buscar o que eu gostaria, ela foi a que mais sentiu quando me mudei. Me abraçou com carinho no dia da despedida e desejou o melhor possível para mim nessa nova cidade.
Ela também sempre foi muito romântica, disse para eu viver uma história de amor bonita, desses que a gente lê em livros, mas também me disse para ficar atenta com os "rapazes da cidade grande" que "só querem enganar as menininhas do interior".
Eu estava completamente focada na minha carreira e nem imaginava sequer uma possibilidade de um encontro amoroso em São Paulo. Mas estaria mentindo se não tivesse uma história de amor para contar, afinal... todos nós temos uma, não é mesmo?
Eu era o tipo de garota nerd e reclusa já mesmo no ensino médio, obviamente isso não seria muito diferente na faculdade, ainda mais quando se está dependendo de bolsa para permanecer estudando. Então nunca fui de me entrosar muito com os meus amigos de sala.
Porém a certa altura eu já me havia familiarizado com os rostos de todos eles e... um dia... um garoto novo apareceu na sala que estudava. Ele rapidamente me chamou a atenção, sabe quando você olha para a pessoa e tudo em volta parece passar mais devagar? Como se o som das conversas em volta soasse mais abafado e toda sua atenção foca-se na mesma pessoa?
Acho que fiquei encarando ele por muito tempo, pois logo percebeu minha atenção sobre ele. Fiz o possível para tentar disfarçar, olhei para meu caderno, para o relógio, para a lousa. Mas tenho certeza que fora tudo em vão. Ele deu um pequeno sorriso de lado e começou a rabiscar alguma coisa no caderno. Depois me passou uma folha, com um bonito "Olá" desenhado junto com um rosto sorridente, estávamos oficialmente apresentados.
Conversei muito assim no ensino médio, não esperava esse tipo de troca de recados na universidade mas... de algum jeito o rapaz me chamou a atenção e fiquei tentada a prosseguir conversa. Respondi com um igualmente reduzido e misterioso "olá", e até hoje me surpreendo como a conversa avançou por meio de tão simples palavras.
Ele me explicou que estava de visita a faculdade com cobertura da irmã dele, que era da minha sala. Me explicou que havia terminado o ensino médio a um ano mas ainda não sabia o que estudar, e estava analisando as possibilidades de fazer arquitetura também.
Disse pra ele que amava arquitetura e, apesar de nova na cidade, conhecia todas as principais peças arquitetônicas e históricas da cidade. Ficou naturalmente combinado de que ele me mostraria melhor a cidade e eu falaria para ele o que já sabia sobre arquitetura. Estava marcado então o meu primeiro encontro em São Paulo.
Quando liguei para minha mãe para contar as boas novas ela praticamente surtou. Quis saber de tudo do menino. Passamos horas conversando sobre ele, como parecia e o que fazia. Quando disse que seu nome era Willian foi quando ela mais surtou.
"É o nome de um personagem de "Orgulho e Preconceito" da Jane Austen, é por causa desse livro que te dei seu nome, Elizabete. Está tudo acertado pelo destino, é o que lhe digo!" Além de descobrir finalmente porque tenho esse nome, Minha mãe recitou todas as histórias de amor que pode lembrar, me contou como ela e meu pai se conheceram, e eu apenas tentando fazer com que ela se acalmasse.
No fim de semana o encontrei na estação Tiradentes. Visitamos o Parque da Luz que, apesar de pequeno, era muito bonito com direito até a uma pequena gruta e um túnel onde era possível ver o lago e seus peixes por baixo. Um lugar tranquilo e calmo no meio do caos do centro paulistano. Depois fomos para a Pinacoteca, onde discutimos sobre as exposições lá presentes.
O momento que falta declarar aqui, claro... Foi quando estávamos em uma das varandas do museu, a que fica de frente para o parque, dando a ilusão que todo o parque parecia um grande jardim para o museu.
Enquanto estava apenas observando ao longe o jardim, sinto sua mão abraçando minha cintura e quando o olho, sinto seu rosto bem próximo ao meu...
Passaram-se segundos, eu olhei para os lábios dele e nos beijamos, senti firmemente seu corpo contra o meu.
Nesse pequeno momento parecia que tudo na minha vida fazia sentido. Naquele instante éramos só nós, dois apaixonados se beijando com o mundo todo como testemunha desse amor tão belo.
Nossos passeios foram ficando cada vez mais frequentes e nossos momentos íntimos cada vez mais... íntimos. Não é todo dia que um casal toma tempo para se agarrar numa das celas do Museu da Resistência, não é mesmo? Foi questão de tempo até que terminamos nosso passeio em um quarto de motel no centro velho.
O quarto em si era bem rústico, vulgar talvez... Mas a vista proporcionada pela noite paulistana trazia um charme único, tendo a fachada de arquitetura eclética do Tribunal de Justiça de São Paulo com a Catedral da Sé e sua arquitetura neogótica. Um grande espetáculo em concreto para testemunhar esse acontecimento. Todos esses primeiros meses foram fantásticos.
Mas claro... como dizem... toda chama que queima forte, não dura para sempre. Logo nos víamos cada vez menos. Os meus estudos tomavam cada dia mais meu tempo, tive enormes dificuldades para me adaptar ao meu novo trabalho na capital. Ele também estava se preparando para entrar na própria faculdade. Todos esses pequenos empecilhos que, separados são indistinguíveis do resto dos nossos dias, juntos podem trazer todas as catástrofes.
Ao mesmo passo que o mundo conspirou para nos unir, parece que o mesmo, enciumado pela nossa falta de gratidão, fez o possível para separar-mos. Mentiria se disser que sofri demais meu coração quando ele me anunciou que conseguira uma vaga na faculdade de arquitetura... na Universidade Federal da Bahia.
Chorei bastante no momento e estaria ainda mentindo se hoje em dia não lembro desse pequeno namoro com alguma nostalgia. Mas sei reconhecer quando algo acaba. Quando disse a minha mãe sobre o término do namoro ela veio correndo me visitar e tivemos um fim de semana inteiro apenas comendo coisas gostosas e assistindo filmes bobos de comédia romântica.
E é com essas boas lembranças de tempos difíceis que acabo pegando no sono dentro do ônibus. Há algo sobre o sacolejar do transporte que me faz lembrar do ninar da própria mãe quando fui criança. Espero acordar quando estivermos perto da parada obrigatória.
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