A solitária ceia de natal
Chego na casa vazia e corro para a cozinha para preparar o peru de natal. Tempero com a mesma delicadeza que minha mãe me ensinou e abuso de sua vasta coleção de temperos: Coentro, tempero baiano, açafrão... porém claro, a parte generosa de vinho branco é uma receita especial que meu pai sempre recomendava.
Faço em outra travessa um arroz carreteiro cozido no microondas, receita especial da minha tia que aprendeu quando esteve no Rio Grande do Sul e é perfeito para dias corridos numa rotina que não dá tempo para respirar. Visto que está tudo em perfeito andamento na cozinha, vou de volta para o sofá, para observar a casa com mais calma.
Me deito no sofá e olho atentamente as fotos penduradas na estante. Logo passando para uma visão ampla do cômodo. A casa é tão grande quanto eu me lembrava, uma espaçosa sala que dá diretamente na cozinha, separada apenas por um pequeno corredor com banheiro. A imensidão da sala é cortada por uma escada que dá num corredor com acesso a todos os quartos.
Certamente o malhado iria se divertir a beça aqui, bem melhor do que um apartamento minúsculo no centro de São Paulo para correr. Pena que não pude trazê-lo comigo em viagem. Escuto o bipar do microondas e o desligo, o arroz já está pronto mas o peru ainda vai demorar um pouco. Retiro o papel alumínio dele e ponho de volta ao forno. Aproveito que tenho ainda alguns minutos e vou para o meu quarto, ver como está depois de tanto tempo.
É estranho revisitá-lo agora depois de 5 anos... Ainda sim, nada mudou. Todos meus brinquedos, meus pôsteres com bandas que ouvia na adolescência e hoje tenho vergonha de falar em voz alta, minha velha televisão de tubo onde tinha algum minuto de privacidade... tudo estava em sua perfeita ordem.
Vejo a minha velha estante de livros e encontro uma edição de "Morro dos Ventos Uivantes" da Emily Bronte. Presente da minha mãe é claro. Ao lado do "Histórias Extraordinárias" de Edgar Allan Poe, obviamente fazendo parte da coleção de livros sombrios do meu pai e uma coleção de ensaios do Benjamin Franklin, uma recomendação assertiva da minha tia capitalista.
Fico lá, deitada na minha antiga cama apenas imaginando como seria minha vida se nunca tivesse saído daqui. Se arranjaria um novo amor, mais sério e duradouro do que o que tive em São Paulo, se seria feliz sem cursar arquitetura e arrumado um trabalho local. As aventuras assustadoras que tive indo morar sozinha numa cidade grande...
É estranho pensar nisso, ter saudades de lembranças que nunca tive, uma parte inteira da vida que foi deixada para trás quando fiz uma única escolha, moldando todo o mundo ao meu redor. Passei por alguns momentos ruins em São Paulo mas sei que sou feliz... mas como tudo teria acontecido se nunca tivesse saído de Cravinhos? Que tipo de vida estava me esperando aqui?
Devo ter ficado muito tempo pensando nessas besteiras, porque já sentia o aroma caprichado do peru subir para o meu quarto, chequei o relógio e realmente já havia passado do tempo de cozimento.
Desço as escadas em direção a cozinha e retiro a ave do forno. Sirvo-a sobre a mesa com o arroz carreteiro feito no microondas com um tímido arranjo de frutas em volta. Uma refeição simples para uma pessoa simples, começo então já sem muita cerimônia a curtir minha ceia de natal em casa, sozinha.
Sei que minha família não pode estar comigo agora. Meus pais e minha tia morreram num acidente de carro quando tentaram me visitar no carnaval. Passei metade desse ano me sentindo culpada pelo acontecimento. Hoje entendo que esse tipo de tragédia acontece, e que todos somos pequenos demais para termos algum controle sobre isso.
A pior parte é que a parte gananciosa do resto da minha família está louca para vender a casa e partilhar a herança entre eles. todas minhas memórias, o mundo que construí aqui... vão ser vendidos a outra pessoa, e não havia mais o que eu poderia fazer. Oficialmente, esse é o último momento que tenho nesta casa.
Por isso escolhi fazer essa última ceia em casa, sozinha, apenas cercada de momentos maravilhosos que construí com as pessoas que mais amei na vida. Talvez essa seja a pior hora para não ser religiosa. Não acredito que eles estejam no céu, olhando abobalhados para a garotinha deles que está se virando como pode na vida e fazendo essa simbólica despedida sozinha na casa em que cresci sob seus olhares amorosos.
Mas, não consigo explicar de verdade isso, porém sinto a presença deles aqui... Não como espíritos de um outro mundo, mas como memórias e afetos que construí e que carrego comigo aonde vou. Para mim eles estarão vivos para sempre, nas minhas mais íntimas lembranças.
Te amo, mãe e pai, e minha carinhosa tia Débora.
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