Spin-off 2
Era uma sexta-feira à noite do fim de fevereiro. A cidade de Pôr-do-Sol perdia seus tons vibrantes e adquiria um tema mais sombrio, aos poucos substituindo o canto dos passarinhos pelo chilrear dos grilos. Aquele bairro era bem pacato, pouco perigoso; Um dos melhores lugares que Suzana havia morado. Desde que se mudou da casa de Marcelo, seu ex marido infiel, as noites da mulher eram tranquilas e serenas.
Para Victória, contudo, tudo ia a mil. A moça parecia ligada na potência máxima, correndo do banheiro para o quarto e do quarto para o banheiro, arrumando-se em alta velocidade. Suzana ergueu uma sobrancelha; O que estaria sua única filha tramando?
― Vi, você está usando o banheiro? ― Disse, num tom um pouquinho mais alto, para que pudesse alcançar os ouvidos de sua garota.
― Já terminei. ― A garota berrou de volta. ― Estou terminando de calçar os sapatos.
― Não deixe bagunça no banheiro. ― Advertiu Suzana, embora soubesse que era inútil. Victória provavelmente deixaria um rastro de destruição, bagunça e sujeira para que a mãe limpasse; Ah, crianças...
Cerca de dez minutos depois, a filha de Suzana apareceu pela sala, completamente maquiada, trajando um vestido preto, meia arrastão e sapatos de salto vermelhos. Nos ombros, carregava uma pequena bolsinha com seus documentos e alguns objetos; Ao vê-la, Suzana sorriu.
― Que chique! ― Exclamou, observando a produção de sua filha. ― Para onde está indo, Vi?
― Vou sair com o Igor e a Brenda. ― Respondeu Victória, colocando brincos nas orelhas. ― Eles me chamaram.
Suzana muito fazia gosto das companhias de Victória. Antes, ela costumava namorar um rapaz perverso, chamado Hugo; Este homem a havia sequestrado no ano passado, mostrando-se alguém de péssima índole, e estava preso no momento. Naqueles tempos, Suzana temia pela segurança da filha; Agora, sabendo que estava junto de seu novo namorado, Igor, e de sua melhor amiga, Brenda, a professora podia respirar em alívio. Ambos eram boas pessoas, zelando pelo bem estar da garota.
― Você não aguenta ficar em casa mesmo, não é? ― Brincou Suzana. ― Tem hora para voltar?
― É sexta-feira. E depois de ter quase morrido, em julho do ano passado, percebi que preciso aproveitar mais a vida. Não vou fazer isso trancada em casa. ― Respondeu a garota. ― Não tenho hora para voltar, mas acredito que não deve passar da meia-noite. Tenho um almoço com o meu pai amanhã...
― Seu pai está tentando se aproximar de você, não é? ― Marcelo nunca fora um bom pai. Além de ser um marido detestável, o homem sempre se preocupou mais com suas amantes do que com a própria filha. Victória sentia isso na pele, e lhe doíam até hoje as palavras que o homem dissera quando a garota assumiu sua bissexualidade. Depois que a menina fora sequestrada, porém, Marcelo pareceu rever alguns de seus conceitos; Ele e Victória pareciam estar retomando um pouco a relação de pai e filha, mesmo que com 22 anos de atraso. ― Bem, antes tarde do que nunca...
― Estou gostando do novo Marcelo. Tenho mais carinho por ele do que tenho pelo antigo. ― Comentou. ― Bem, mãe, estou indo embora. Igor me mandou uma mensagem, ele está me esperando lá fora. Até breve.
― Até, minha querida. ― Despediu-se Suzana. Victória beijou as pontas dos dedos e lançou um aceno para a mãe, saindo pela porta da frente em seguida.
Contudo, Suzana só se deu conta de que estava sozinha quando ouviu uma porta de carro bater do lado de fora; O veículo arrancou, levando Victória para mais uma noite agitada, enquanto Suzana se contentava com sua solidão tranquila.
As noites solitárias eram, para ela, revigorantes. Ao contrário de sua filha, Suzana nunca foi muito do agito e do movimento. Sonhava, em sua velhice, comprar uma casinha no campo e passar o resto de seus dias por ali, em contato com a natureza. Talvez chamasse a mãe para morar consigo, mas ela estava tão bem com seu irmão... Sim, terminar sua vida em solidão não seria tão ruim. Apenas ela e a natureza, que tão bem apreciava, a ponto de dedicar toda a sua vida acadêmica à botânica. Os planos de Suzana para o fim de sua vida lhe traziam paz.
E, curtindo a própria companhia, a mulher pôs uma música qualquer de Chico Buarque em seu celular. Ele era o seu maior ídolo, entoava melodias gostosas com letras que eram verdadeiras poesias. Jamais tivera a sorte de conhecê-lo, mas gostava muito da música "Geni e o Zepelim". Achava que refletia muito bem o que a sociedade pensava das mulheres.
Com aquele som dissolvendo a atmosfera petrificante, Suzana pegou um livro de romance qualquer e passou a folheá-lo. Tinha diversos títulos, alguns extremamente aclamados, de escritores brasileiros renomados; José de Alencar e Machado de Assis eram alguns dos exemplos. Contudo, desta vez Suzana optou por uma leitura mais leve, algo que retratasse amores e desventuras. A capa do escolhido tinha um homem e uma mulher aos beijos, uma típica história leve para acalentar seu coração.
Encheu sua taça de vinho. Ela não gostava de beber acompanhada; Se, sóbria, era uma mulher classuda e polida, ao se ver embriagada falava mais do que o necessário. Ah, os poderes do álcool...
E, enquanto molhava os lábios com a bebida, Suzana se pôs a ler o primeiro parágrafo do romance que havia tomado em mãos. Às vezes se perguntava por que gostava de ler romances entre homens e mulheres. Quando jovem, acreditava que isso acontecia porque sonhava em encontrar seu príncipe encantado; Mas agora, aos 52 anos... Suzana percebia que se projetava no lugar do homem. Que sonhava em ter uma esposa para chamar de sua.
Mas não gostava de pensar muito nisso, porque era uma ideia que lhe atormentava. Não. Estava velha demais para sair do armário. O que as pessoas iriam falar se a vissem com uma mulher? Foi uma grande luta apenas para conseguir o divórcio...
Balançou a cabeça. Que bobagem. Mais do que o medo, lhe perseguia a vergonha. Suzana sequer sabia como proceder com outra mulher! Não saberia se teria a coragem de deixar alguma lhe tocar...
E, enquanto tentava tirar aquelas caraminholas da cabeça, o som do interfone tocou. Suzana franziu o cenho; Desligou a música do celular e deixou sua taça de vinho na mesinha de centro por um instante, a fim de atender à porta. Quem seria, a esse horário? Talvez uma criança inconveniente, pensou.
Mas, quando abriu a porta de entrada, Suzana percebeu que não poderia estar mais errada.
Com seus belos olhos fundos castanhos, rosto anguloso, nariz pontudo e cabelos cacheados, estava ela: Lídia. O tempo descolorira algumas mechas de seu cabelo castanho, tornando-as brancas, ela havia ganhado alguns quilos e as rugas enfeitavam seu rosto. Mas, como sempre, estava linda.
— Lídia... — Comentou Suzana, boquiaberta. A mulher também estava no começo de seus cinquenta, assim como a professora de botânica. Lembrava-se que a velha amiga aniversariava em junho, enquanto Suzana completaria seu ciclo em dezembro. Poucos meses faziam de Lídia mais velha.
— Oi, minha querida. Quanto tempo. — Comentou a visitante. — Ouvi dizer que iria morar neste bairro... Quis dar-lhe as boas vindas.
Suzana não sabia o que dizer. Depois de tanto tempo longe de Lídia, a amiga vinha visitá-la de supetão, matando as saudades que uma tinha da outra. Era como um presente enviado pelos céus... O que dizer de tamanha bênção?
— Seria muito incômodo se eu pedir para entrar, querida? — Pediu a mais velha. — Gostaria de conhecer sua casa...
— Claro! — Suzana balançou a cabeça. Estava completamente petrificada pela presença da amiga de anos. — Venha comigo, vou te apresentar a cozinha e os quartos.
Quando tomou a mão de Lídia na sua, Suzana sentiu uma onda de choque tomando conta de seu corpo. Aquela pele macia, que há muito tempo não tocava, agora calejada pela força do tempo. Ah, como ela sentira a falta daquela mulher!
— Você está morando há muito tempo aqui? — Perguntou Lídia, tão logo Suzana apresentou-lhe cada um dos quartos.
— Vai fazer um ano em junho. — Respondeu Suzana. — No final do mês.
— Então é na mesma época em que completo meus 53. — Brincou a mulher. — Deus, como o tempo passa! A última vez que te vi, comemorava os meus 20.
Suzana emitiu uma risadinha anasalada. Se lembrava da última vez que vira Lídia, e das coisas que disse a ela quando se deu conta do que sentia. Mais de 30 anos haviam se passado, mas para ela era como se houvesse sido ontem.
— Nós éramos tão jovens... Iniciando a faculdade... — Lembrou-se Suzana. — Costumávamos ser grudadas. Você se lembra?
— Lembro. Você me ajudou em todas as provas. — Lídia riu. — Ah, Suzana, eu não sei o que seria de mim sem ti. Você era tão inteligente, se lembra?
— Inteligente, não. — Corrigiu a anfitriã. — Esforçada.
— Não seja modesta, menina! — Lídia deu um tapa na coxa. — Você sempre foi a melhor da turma. E sempre gostou das plantas, não foi?
— Foi... — Suzana pôs as mãos nos bolsos, exibindo um sorriso doce. Lembrava-se de seus anos de menina, da época em que era ainda uma jovem cheia de brilho no olhar. Eram lembranças aprazíveis. — Já você, gostava dos insetos... Nunca me deixou matar uma barata...
Lídia assentiu.
— Eu gostaria de ter feito um mestrado na área. Talvez um doutorado, quem sabe? — A mulher sorriu. — Mas tive que ajudar minha mãe. Não tinha tempo para sonhar. Fiquei feliz ao saber que havia perseguido seus objetivos, se tornando professora e pesquisadora. Você, Suzana, merece isso mais do que ninguém.
Suzana assentiu com a cabeça. Terminar a faculdade era, por si só, um grande privilégio; A maioria das pessoas não poderia se dar ao luxo de dedicar-se a uma vida acadêmica, principalmente na época da juventude da professora. Era grata por tudo o que trilhou, mas isso só fora possível graças às circunstâncias em que fora inserida.
— Que caminhou trilhou? — Perguntou a dona da casa. — Não conversei contigo depois que... Bem... Você sabe...
Lídia sorriu.
— Sou professora de ensino fundamental. Apesar de não ter cursado o mestrado que queria, tenho muito orgulho da minha história. — E voltou-se para a outra. — Eu gostaria de tê-la procurado há uns bons anos, mas descobri que você tinha se casado.
— Foi a pior escolha da minha vida... — Suzana suspirou. — Marcelo não foi um bom homem.
— Eu imagino. Ele não parecia gostar de você... — Lídia encarou Suzana em seus olhos tão azuis; Eles pareciam pequenas amostras do céu. — Mas achei que fosse o meu ciúme falando.
E, silenciosamente, Suzana abriu um sorriso de canto de boca. Os olhos castanhos de Lídia lhe traziam à tona bons momentos.
— Eu senti tantas saudades de você... — Confessou Suzana. — Lembra-se de quando ficamos horas estudando genética em cima de uma árvore?
— Lembro. Eu fiquei com as costas doloridas depois. — E levou as mãos para a sua lombar, recordando-se daquele dia. — E quando você fugiu com uma mudinha que encontrou no campus? Eu te ajudei a esconder...
— Tivemos que devolver depois, porque minha mãe ficou uma fera. — Riu. — E quando eu me lambuzei com o látex de uma planta e tive que procurar os primeiros socorros, porque minhas mãos ficaram ardentes? Você estava comigo...
— Aquele dia foi intenso. Achei que você iria perder a mão. — Disse Lídia. — Só não foi tão intenso quanto... O nosso beijo atrás da escada.
O sorriso de Suzana se tornou tímido. Ela se lembrava muito bem daquele dia, como se tivesse sido ontem. Após uma aula extasiante, Lídia lhe dissera que ela estava bonita com seus brincos de cereja; As duas trocaram algumas frases tímidas e curtas até perceberem que se queriam, e, então...
— No dia seguinte, você não quis falar comigo. — Lembrou Lídia, não tão sorridente, encarando o chão. — E, depois disso, nossa relação não foi igual. Nos afastamos.
— É... — Se pudesse, Suzana teria feito tudo diferente. Mas como consertar os erros de sua mocidade? — Eu tive medo. Muito medo.
— Medo do que? — Perguntou Lídia.
— Medo da sociedade. Da minha família. De mim mesma. — E era com muito pesar que dizia aquelas palavras. — Eu fui tola.
— Eu prometi para mim mesma que te esperaria. Mas, uma década mais tarde, você se casou. — O vento soprava com delicadeza nos cachos da mulher, bagunçando-os. — Achei que tivesse me esquecido. Mas eu nunca te esqueci, Suzana, porque jamais me casei.
Lágrimas se formaram nos olhos da professora de botânica. Ouvir aquelas palavras era duro; E pensar que poderia ter feito tudo diferente também. Deus, por que escolhera a razão ao invés da emoção?
— Eu gostaria de ter feito tudo diferente. — confessou. — Voltar para aquela época, onde éramos tão felizes juntas...
Lídia levou sua mão ao rosto de Suzana. Limpou as lágrimas teimosas que insistiam em correr pelo seu rosto; Em seguida, esboçou um sorriso de canto de boca, tentando alegrar os ânimos da botânica.
— Ainda dá tempo de consertar isso, se você quiser. — Sussurrou, com um enorme sorriso nos lábios. — Eu ainda te quero, Suzana. E, se você disser sim, podemos estar juntas novamente.
Não foi necessário muito tempo para que Suzana pensasse; O coração da mulher não dizia outra coisa além do nome de Lídia, que há muito tempo estava nele cravado.
— Sim. — Respondeu. — Eu te quero. Eu te quis por muito tempo, Lídia. Nunca te esqueci, nem por um segundo.
E, sem delongas, Lídia puxou Suzana para um delicioso beijo, sentindo os lábios carnudos da botânica encontrarem-se com os seus. As línguas dançavam em sintonia e os corpos pareciam encontrarem-se, satisfazendo um desejo há muito tempo guardado. E, enquanto beijava sua amada, Suzana deu-se conta da quantidade de tempo que havia perdido com Marcelo. Que desperdício! Era a hora de correr atrás do prejuízo...
Foi quando uma porta abriu num estrondo, logo atrás das duas mulheres.
— Mãe, eu preciso pegar o meu carre... — E, deparando-se com Suzana e Lídia, Victória arregalou os olhos. — Me desculpa. Acho que eu interrompi alguma coisa.
— Não, minha filha. — Tentando ignorar o pudor que subia ao rosto, Suzana fingiu que nada havia acontecido. — Do que você precisa?
— Do meu carregador. — Reforçou Victória, puxando a bolsinha para perto do corpo. — Mas eu já estou indo, não se preocupem.
E, num pulo, Victória adentrou o seu quarto. Fechando a porta atrás de si, tomou o celular em mãos; Tinha que contar a notícia para Igor e Brenda.
Victória Amorim
Gente <
Acabei de chegar em casa <
Minha mãe ta beijando uma mulher <
Não entendi nada <
Igor Lucas (Mozi)
> Olocoooo
Brendinha
> Ah, Vi, deixa sua mãe beijar
> Ela tem mais é que ser feliz
> Mesmo pq a segunda melhor coisa que tem é beijar mulher
> A primeira é transar com mulher
Victória Amorim
Ô BRENDA KKKKKK <
Igor Lucas (Mozi)
> kkkkkk
> Falo nd, só observo
Brendinha
> O q foi? Nossos pais tbm transam!
> Inclusive, se sua mãe quiser, eu ainda tô na pista
> MENTIRA! TÔ BRINCANDO!
> Nossa, se a Carol me ouve falar isso, ela me mata
Victória Amorim
E eu mato junto, ouviu? 👀 <
Vc não presta, sapatão <
E, com um enorme sorriso, Victória guardou o celular. Pegou seu carregador em cima da cômoda e passou pela sala sem fazer barulho, onde Suzana e Lídia haviam retomado o beijo, desta vez bem mais voraz do que antes. Depois do susto inicial, a garota fazia muito gosto em ver sua mãe com outra pessoa; Ela havia perdido muito tempo de sua vida com o pai, afinal.
Ciente de que Suzana teria uma noite melhor do que a sua, Victória trancou a porta e aguardou pelo carro de Igor na esquina. Amanhã, teria muito a conversar com sua melhor confidente.
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