Capítulo 8 - Tempestade e Arco-íris
—... De moderada a forte principalmente no período da tarde...
— Sophie, está com o guarda-chuva na mochila? A previsão é de chuva a partir da tarde.
Enquanto eu estava concentrada em arrumar o bentô que Hanako havia preparado, desviei a minha atenção para a irmã mais nova da minha mãe. De pé na porta da cozinha, Tia Miya esperava pela minha confirmação, que veio assim que deslizei o zíper da bolsa, fechando-a.
— Sim, não se preocupe. Está tudo certo. — Afetuosa, caminhei até a porta, parando apenas para depositar um beijo estalado na bochecha da mulher. Acenando, abri a porta, criando uma leve protuberância em meus lábios assim que a luz radiante invadiu os meus olhos. Não duvidava da veracidade da previsão do tempo, mas também achava difícil que um céu tão claro se tornasse espesso até o final do dia. — Estou indo.
— Vá com cuidado! — Deixando Tia Miya para trás, passei pelo jardim de grama verdinha, passando a caminhar pela silenciosa rua que me levava até a estação. Pelo caminho, cumprimentava com um sorriso simpático algumas senhoras que varriam a calçada, e desejava um “Bom dia” educado para aqueles que assim como eu, trajava um uniforme escolar.
O caminho para o colégio parecia totalmente familiar, contrastando com aquelas exaustivas e tortuosas semanas. Esperei pacientemente até que o meu trem chegasse, e novamente me vi cercada pelo caos do centro de Shibuya. Diferente das outras pessoas, que passavam como se o tempo estivesse agindo contra eles, eu o deixava de lado para apreciar a vista, olhar os anúncios e abrir um sorriso satisfeito em resposta.
Chegando levemente atrasada, esperei cumprimentar as meninas, mas pelo horário imaginei que já estivessem dentro da sala. Olhei para o relógio desejando que o professor não estivesse lá quando eu chegasse, - era muito vergonhoso quando isso acontecia ‐ parando abruptamente quando ouvi um burburinho a poucos passos de onde eu estava. Levantando o olhar, vi Kentin esbravejar com uma garota, que parecia nitidamente acuada. A garota que portava alguns papéis em suas mãos, olhava constantemente para baixo. Abraçando-se contra o próprio corpo, notei nas vezes que ela olhava para cima, lágrimas no canto dos seus olhos.
— Ei, o que está acontecendo!? — Me aproximei, olhando para alguns dos papéis que estavam caídos entre os dois. Me abaixando, peguei com cuidado cada um deles, sendo ajudada pela garota que agora repetia um milhão de “desculpas” sem parar. — Tudo bem, você não precisa se desculpar. Isso é normal.
— Isso não deveria ser normal quando envolve as tarefas do Conselho. — De punhos fechados e voz nitidamente ríspida, o garoto de cabelos dourados olhava para mim, com os olhos que beiravam a linha da irritação. — Por quê se candidatou para ser assistente se claramente não leva jeito para isso? Não precisamos de alguém que só vai nos atrasar.
— Kentin! — Aumentando a voz, cortei as palavras do garoto. Kentin parecia muito furioso, e naquele momento, e só naquele momento, me perguntei se ainda poderia seguir com aquilo. Era claro que era um pensamento bobo, por isso logo o silenciei. Kentin era daquele jeito, mas também possuía várias qualidades que a minha antecessora certamente apreciava, e eu só precisava descobrir. — A gente vai dar um jeito. Olha.. — Reunindo os papéis na frente dos meus olhos, olhei para as linhas escritas, continuando a falar. — Lista de desempenho.. São divididos por turma, não são? É só organizar tudo novamente.
— Já estava organizado. — Kentin ralhou. — Se essa idiota não tivesse deixado cair, isso seria um problema a menos.
— Tudo bem. — Suspirei, vendo que argumentar era cansativo. — Você não vai ter esse problema, porque eu me responsabilizo a arrumar. Podemos fazer assim? — Desviei o olhar, passando a encarar de forma gentil para a caloura com lágrimas nos olhos. As palavras de Kentin haviam sido duras, e era visível no rosto choroso o quanto havia a atingido. No meio da tristeza, a incredulidade com as minhas palavras. Para a garota, parecia impossível que eu pudesse me voluntariar. — Qual é o seu nome?
— M-Murashige.
— Então, resolvido. Murashige-san e eu iremos organizar os papéis no intervalo. E até o final do dia, você nem vai lembrar desse incidente. — Sorri, parecendo confiante. O sorriso aumentava assim que vi a gratidão expressa nos olhos da garota, mas que ainda sofriam com a intensidade do olhar cruel do mais velho. Se curvando em agradecimento, a caloura se despediu depois de termos combinado que eu a esperaria na frente de sua classe. Tendo Murashige deixado a nossa linha de visão, continuei sorrindo, acompanhando a silhueta que sumia. Meu sorriso só pereceu quando senti os dedos do garoto, firmes em volta do meu braço.
— Você não pode me desautorizar desse jeito. — Foi tudo o que ele disse, mas para mim, aquelas palavras pareciam pequenas agulhas incrustadas na minha pele. O olhar dele acompanhava as palavras, tão frios como o mar do Ártico.
— Eram só papéis, Ken. Você não precisava ser tão grosseiro. — Olhei para o meu braço, e em seguida para o meu namorado. Ele não colocava muita força, mas ainda sim era o suficiente para que aquilo soasse intimidador.
— Pedir para que ela tenha mais atenção é ser grosseiro? — Suspirando, Kentin largou o meu braço, levando uma das mãos à testa. — Você não sabe o quanto a gente trabalha para manter tudo em ordem.
Me silenciei. Eu não sabia mesmo o quão difícil era ser vice-presidente do Conselho Estudantil. E nem o quão trabalhoso era manter todos os assuntos referentes ao colégio em ordem, para que a fama de “melhor colégio para adolescentes em Shibuya” não fosse perdida. Mas ser difícil não abria margem para que as pessoas se sentissem punidas, ou emaranhadas em um jogo de poder. Do lugar que eu venho, sentir-se julgado pela hierarquia era comum. Nobres eram nobres, plebeus eram plebeus. E no meio daquela cadeia humana, estava a garota que era nobre aos olhos dos plebeus, e plebeia aos olhos dos nobres. Essa garota era eu.
Sabendo que aquela discussão não levaria a lugar nenhum, decidi apenas assentir. Balançando a cabeça em negação, ignorei o calafrio sentido diante das lembranças da minha vida anterior, e prossegui.
— Bom, eu acho que a minha aula já começou. A gente se vê outra hora. — Percebendo que o garoto se aproximava para um selinho rápido, me esquivei. A noção de que Kentin era o meu namorado já estava fixa na minha mente, mais do que o tempo em que descobri que precisaria lidar com um. Ainda assim, não era totalmente errado que diante daquelas atitudes, Kentin parecesse um estranho para mim. Eu sabia que o garoto provavelmente tinha aquela personalidade quando a minha antecessora e ele começaram a namorar, assim como sabia que aparentemente ela não parecia ligar para aquilo. Eu ainda estava em conflito ao pensar que a Sophie do passado poderia não ser tão legal quanto eu pensava. E também não saberia se poderia manter a personalidade que a fez ser conhecida, por muito tempo.
Em certo momento da aula, desviei o olhar para a janela, vendo aos poucos o céu que duvidei escurecer, dar espaço para nuvens que ameaçavam despejar todo o seu conteúdo chuvoso. Uma onda fria invadia o ambiente, me arrepiando. Certamente eu passaria a nunca duvidar da previsão do tempo.
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— Ai, que fome. — Resmungando, Kaori revirava a mochila. Enquanto a loira pegava um pote de cor azulada, Keiko me observava no momento em que me levantei, sem a minha costumeira bolsa de girassóis, onde eu carregava a marmita.
— Vai comprar comida hoje? — Em um tom curioso, a gêmea de Kaori olhava para as minhas mãos, notando a ausência de alimento. Balançando a cabeça em negação, automaticamente uma das sobrancelhas da garota curvou-se, expressando dúvida.
— Talvez eu compre alguma coisa, se der tempo. Vou usar o intervalo para ajudar uma caloura. — Decidi omitir o motivo da ajuda, e toda a história com Kentin. Kaori era uma fã explícita do nosso relacionamento, e Keiko achava que ele era legal, apesar de ser muito estrelinha. Também não queria falar mal do namorado da minha antecessora, com as amigas dela. Não parecia certo.
— Hmm.. Certo então. — Notando o entreolhar das gêmeas, acenei sem me explicar muito e saí. O olhar delas denunciava que aquilo era uma coisa que a Sophie do passado certamente não faria. Passei a pensar o quanto aquilo mancharia a imagem dela.
Felizmente, aquele pensamento pereceu assim que me encontrei com Murashige. A garota ainda estava contida, mas seus olhos exibiam gratidão genuína. Enquanto caminhávamos na direção da sala do Conselho, notei que ela andava de forma cautelosa, quase como se a sua presença ao meu lado fosse um incômodo. Por alguns segundos, vi quem eu costumava ser, nas ações daquela garota.
— Me desculpa mesmo por ter te dado trabalho.. Eu acho que o Yamada-senpai tem razão.. Não sirvo para estar aqui.. — Encolhendo-se, Murashige se assemelhava a um gatinho com frio. Dando uma pausa na organização, a encarei com um olhar afetuoso, imaginando o mesmo olhar que um dia Dália e Aisha dirigiram para mim.
— O Ken.. Yamada. — Me corrigi, pensando que o fato dele ser meu namorado não me permitia ser tão cotidiana, pelo menos não em um ambiente escolar onde a hierarquia era tão valorizada. — Ele não falou por mal. O que ele quis dizer é que logo logo, serão vocês, os estagiários, que estarão ocupando os cargos que hoje são ocupados pelos senpais. Então, como o Conselho da nossa escola é um modelo para todos os outros da região, ele não quer que, quando chegar a hora, vocês não saibam lidar com a enorme pressão que os aguarda.
Murashige sorriu educadamente, sabendo da minha relação com Ken. Estava escrito em seus olhos que ela sabia qual era a intenção do garoto com aquelas palavras duras, e o quão maternais as minhas pareciam, se comparada às palavras que ela ouviu. Mesmo assim, a garota nada disse, voltando a se concentrar na organização dos papéis.
Por um longo tempo, tudo o que se ouvia entre o barulho estridente de papel sendo contado, era o som das nossas respirações. A sala do Conselho era bem ampla - e gelada -, possuía quadros com rostos que julguei serem de alunos de anos anteriores e no centro, o brasão da escola. Haviam sofás para descanso, apesar de termos escolhido as cadeiras, que ficavam em frente à uma mesa larga e angulada. No meio tempo em que fiquei no lugar ainda pude me servir com uma xícara de chocolate quente e biscoitos amanteigados. A sala contava com uma máquina de bebidas e potes com biscoitos, que foram o alívio da minha fome.
— Sabe.. — Me assustando pela reverberação de voz repentina, a garota continuou. — Quando ouvia as pessoas comentarem sobre você, achei que era diferente..
— Diferente como? — Perguntei, em um tom risonho e curioso.
— Hmm.. Achei que.. — Ela se calou, procurando as palavras certas. Quando as achou, deixou o olhar cair sobre o papel, parecendo incerta. — Achei que você não dava atenção para pessoas como eu..
— Por quê eu não daria? Você é muito legal, Murashige-san. — Afirmei, abrindo um sorriso de lado. Não acho que o fato de ser legal com alguém seria um empecilho para a popularidade. E se fosse, isso dizia mais sobre as pessoas a quem buscava afeição, do que a mim mesma.
— Você acha mesmo? — Sorrindo, a garota parecia mais leve. Naquele momento, fui teletransportada para o meu antigo quarto, no Castelo. Dália e Aisha sorriam pra mim no momento em que eu estava encolhida, repetindo o quanto eu era inútil e descartável. Queria dizer o quanto era grata por todo o cuidado que elas tiveram comigo.
— Acho. E sabe o que eu acho mais? — Perguntei, risonha. — Que você deveria falar comigo mais vezes. Sempre que quiser.
Passamos o restante do intervalo correndo contra o tempo. No meio do nosso nervosismo para acabar no tempo exato, encontrávamos brecha para falar de trivialidades. Murashige, quando esquecia de se conter, era uma ótima contadora de histórias. Ela passou uma parte do tempo comentando que estava em pânico ao se mudar para uma cidade grande, e a saudade que sentia da província onde morava. No meio da conversa, um pouco do sotaque interiorano aparecia e, quando ela percebia que aquilo não era um detalhe ruim, sorria em resposta, parecendo mais empolgada que antes.
Quando terminamos, olhamos uma para outra e rimos até a barriga doer. Murashige se certificou de deixar as pilhas de papel nos lugares indicados, e saímos com alguns minutos de folga, ainda faltando alguns minutos para as aulas retornarem. Nos despedimos, prometendo procurar uma a outra sempre que aparecesse uma oportunidade.
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A chuva prometida dava os primeiros sinais de que seria a nossa companheira na volta para casa. As gotas eram captadas pelas janelas fechadas, ao mesmo tempo que o professor anunciava o fim da aula. Guardando os materiais, balancei a cabeça em negação quando Kaori insistia para me esperar.
— Eu tenho afazeres no clube. Hoje vai ser a roda de apresentação. — Desviando o olhar para a janela, vi as gotas engrossarem. — A chuva vai ficar mais forte, e vocês moram longe. É melhor irem antes que os trens sejam paralisados.
Apesar de também pegar o trem em uma parte do trajeto para voltar para casa, eu poderia ir a pé, ou pegar outro meio de transporte. Keiko e Kaori dependiam do trem para encurtar o caminho, além da localização ser mais favorável para mim. A rua onde as gêmeas moravam era conhecida por ser deserta, ainda no período da tarde.
Sem poder argumentar, a gêmea de Keiko se despediu bagunçando o meu cabelo. Keiko veio em seguida, depois de perguntar se o guarda chuva estava na minha mochila. Tendo a resposta afirmativa, ela acenava em despedida, seguindo a irmã.
Na primeira aula do clube de Teatro, não iríamos contar com a presença do sensei. Tanaka seria o responsável por familiarizar os novos integrantes, passar os informes e ouvir sugestões acerca da apresentação do Festival Cultural. - que aconteceria apenas no final do ano, mas devido a complexidade, era preparado ainda nos primeiros meses de ano letivo. - Terminada a parte burocrática, passamos a nos apresentar com todos os tópicos presentes em uma apresentação. O único diferencial era a parte final, onde tínhamos que nos imaginar como qualquer animal que gostaríamos de ser.
—... Um animal que eu gostaria de ser..? — Fechei os olhos, e deixei a minha imaginação fluir. De repente, me vi observando a janela do meu quarto, não nesse mundo. Eu estava no Castelo, presa entre as paredes de mármore, ansiando por uma sensação que não chegava até a mim. Mas, ao olhar para cima, podia admirar aquilo que eu desejava: liberdade. Nos longos vôos, via a liberdade explícita nos pássaros que sobrevoavam o céu. Sempre que eu via um pássaro, imaginava que outros lugares ele havia visitado antes de estar ali. Quantas paisagens estavam guardadas em suas memórias. — Acho que eu gostaria de ser um pássaro. Ser livre para voar para onde eu quisesse.
— Liberdade.. — Tanaka ponderou, levando o indicador aos lábios. — É um bom desejo. Todos nós buscamos a liberdade. Seja para ser quem somos, ou para nos vestir como gostamos. Para amar quem quisermos. — Nesse momento, ele pareceu pensativo. Uma nuvem desconhecida pairava sobre seus olhos, mas logo se dissipou. Retornando como o Tanaka de sempre, o garoto manuseava o corpo em círculos, abrindo e balançando os braços. Ele olhava para cada um de nós com um sorriso travesso. — E aqui é o lugar certo para ser quem desejamos ser. Vilão, mocinha, perverso, inocente. — Passando por mim, o garoto que parecia andar conforme o vento levava uma das mãos ao meu cabelo, deslizando os dedos pelas mechas castanhas. — É só deixar a imaginação fluir, que a mágica acontece.
Tanaka era leve, divertido e sonhador. Era impossível não abrir um sorriso diante de toda aquela espontaneidade, então, em vários momentos daquela apresentação, me vi sorrindo como uma boba. Ao final da aula, enquanto todos se despediam, Tanaka me puxou para o lado, com um misto de expectativa no olhar.
— Posso saber se o passarinho aqui vai disputar pela vaga da mocinha? Ou da vilã?
Surpreendida com a pergunta, precisei de um tempo para pensar na resposta. A peça seria uma releitura de Black Swan, misturando musicalidade e aspectos do cotidiano. Ainda precisaríamos discutir os detalhes do andamento da peça, mas a centralidade na relação mocinha-vilã era algo certo. Os testes começariam no mês seguinte, e pelo o que eu pude entender, os critérios de escolha seriam milimetricamente pensados. O clube de teatro era conhecido pela excelência das peças que apresentavam, e com Tanaka à frente de todo o grupo, esse ano não seria diferente.
— Eu.. Eu não.. não pensei em disputar a vaga das principais. Acho que vou ficar nos bastidores mesmo, ajudar com figurino ou outra coisa.
— Não brinca! — Ligeiramente ofendido, Tanaka precisou de um tempo para voltar a falar. Parecia chocado demais com a minha revelação. — Aquela que busca por liberdade, se escondendo atrás das cortinas!? Não parece algo que um pássaro faria.
— Eu não sei se..
— Olha. — Levantando um dedo, Tanaka cortava o meu raciocínio, indicando que eu devia prestar atenção nele. Foi o que eu fiz. — Eu tenho faro de artista. Sei quando encontro um diamante raro e ele está bem na minha frente, se recusando a brilhar. — Levando a mão novamente ao meu cabelo, Tanaka andava em círculos por mim, e quando retornou à minha frente, ergueu o meu queixo com o indicador. — Sei que tem tudo para arrasar naquele palco. Você só precisa acreditar que pode voar.
Me soltando, o garoto piscava um dos olhos antes de se afastar. Antes de sumir totalmente da minha linha de visão, cantarolou um “espero te ver em cima do palco daqui um mês” e me deixou para trás, com os meus pensamentos capazes de quebrar todo o silêncio que se instaurava após a saída dele.
Balancei a cabeça, pensando nas palavras do garoto. Se eu estava atrás de uma vida diferente, estar em cima do palco era uma ótima opção. Mas algo dentro de mim, aquele mesmo pensamento que me assombrava como Emilli, ameaçava deixar aqueles planos somente em um lugar escuro e inabitável da minha mente.
Naquele horário, apenas alguns alunos circulavam pelos corredores, o que deixava o amplo espaço com a aparência quase desértica. Atravessando-o, desci as escadas e estava prestes a me encaminhar para a saída, quando a falta de um objeto na minha mochila me fez parar. Imediatamente, vasculhei a mochila tirando para fora todo o material que havia levado, olhando em todos os compartimentos possíveis. Fiz uma careta após não ter encontrado o queria.
— Podia jurar que ele estava aqui.. — Choramingando, queria me bater por não certificar se o guarda chuva estava na mochila antes de sair. E o pior, não notar a ausência dele em todo o período em que estava no colégio. Pensei em Keiko e Kaori, que naquele momento já deviam estar no conforto de sua casa. Queria poder voltar no tempo e pedir que as gêmeas me esperassem, assim eu poderia compartilhar o guarda chuva com uma delas.
Olhei para o lado de fora, observando sem muito ânimo no olhar, os pingos que agora criavam uma sonata melancólica e insistente. Estava fora de cogitação enfrentar toda aquela chuva, sem opções, fiz o caminho de volta a fim de encontrar uma sala vazia, onde eu pudesse esperar que o tempo melhorasse. Enquanto eu caminhava em passos curtos, olhando para dentro de cada sala, um som melódico me chamou a atenção.
O modo como as notas chegavam aos meus ouvidos me atraia tal qual um ímã. Meus pés passaram a traçar o caminho que me levaria até aquele som, e quando o encontrei, deixei que o movimento suave das cordas fossem o foco do meu olhar. No meio daquela sala de aparência comum, uma silhueta masculina sobressaía as cadeiras espalhadas e os estojos instrumentais. Mantendo os olhos fechados, Aono Sousuke parecia perdido em um mundo só dele, e eu, mantendo os meus olhos abertos, estava perdida em sua música, no movimento do seu corpo, na forma precisa em que o arco alcançava as cordas. Fui tomada por um enorme furacão que encontrou destino em forma de lágrimas que eu não sabia da existência, até sentir as bochechas molhadas. Aquele som era um grito no vazio, que ecoava de forma avassaladora em todos os sentimentos que eu mantinha escondido até então. De repente, me vi no Castelo, observando com os mesmos olhos tristes a imagem de Mirian e meu pai, o modo como ele a segurava nos braços, e o sorriso triunfante no rosto dos dois. Me senti perdida, sem um rumo certo, a sensação como o mesmo veneno que me expurgou da minha vida anterior, e me trouxe a esta. Aono tocava como a tempestade que castigava lá fora, e no mesmo momento que as notas alcançaram o ápice, fazendo jus ao desempenho de seus braços, um clarão seguido de um som que poderia competir com a apresentação que meus olhos prestigiavam, extraiu da minha garganta um grito que fez a turbulência de sons entregarem-se ao silêncio. Mesmo em outra vida, trovões ainda me assustavam na mesma proporção que monstros malignos assustavam criancinhas.
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— D-desculpa! — Rubra dos pés a cabeça, deslizei para dentro da sala, com os olhos baixos, repletos de vergonha. As coisas estavam estranhas entre nós desde a festa de boas vindas, principalmente por ter notado que ele me ignorava mais que antes. — Eu não queria atrapalhar. Nem ser enxerida. É só que.. eu te vi tocando e acabei perdendo a noção do tempo e.. — Parei de falar assim que notei a ação do garoto, que guardava o violino e parecia prestes a deixar a sala. — Você não precisa parar por minha causa. Eu já estava de saída mesmo e.. — Novamente, parei de falar, mas dessa vez por um motivo diferente. Nos poucos segundos em que pude ver seus olhos, notei que lágrimas faziam parte daquela escuridão que não era atribuída somente a cor das suas pupilas. — Eu notei que nessas notas.. Tem dor. Muita dor. Por quê você está tocando algo tão triste?
Nesse momento, Aono levantou a cabeça, olhando diretamente em meus olhos e notando as lágrimas que compartilhávamos. Quando estávamos assim, olhando um para o outro, eu podia notar o quanto seus olhos pareciam vazios, como se algo muito profundo tivesse roubado o brilho deles. Senti um gosto azedo na ponta da minha língua, e imediatamente pude compará-lo ao sabor da tristeza. De repente, flashes daquele sonho perturbador ecoavam em minha mente, transformando o gosto azedo em algo impossível de suportar.
— Olha, eu sei que não somos assim tão próximos.. — Ensaiei, assim que o silêncio prolongado revelou que ele não me responderia. — Mas quando se está mal, é sempre bom desabafar. Prometo que sou uma boa ouvinte. — Abri um sorriso, torcendo soar convidativa o bastante. Em seguida, apontei para a janela embaçada, indicando que a chuva não passaria tão cedo. — E também, acho que temos tempo de sobra. Seria ruim se ficássemos nos encarando o tempo todo, né?
Vencido, o garoto suspirava e pela permanência, acho que eu podia presumir que ele aceitou a ideia. Em seguida, usando a mesa como apoio, Aono deixava que o corpo descansasse sobre ela, fazendo isso da forma mais preguiçosa possível. Assim que ele se acomodou, fiz o mesmo, mantendo uma distância aceitável entre nós.
— As coisas tem sido difíceis lá em casa. — Apertando os nós dos dedos, Aono encarava o movimento repetitivo das mãos, a expressão imersa em um vazio palpável. — Meus pais são separados, e eu moro com a minha mãe. Ela não está muito bem e.. Acho que a minha permanência na casa é a causa disso.
— Como assim? Por que sua mãe não ia querer que morasse com ela? — Perguntei, arqueando as sobrancelhas. Imaginei Hanako e tive certeza que ela não faria algo assim. E já que a minha ideia de mães era à imagem dela, queria acreditar que todas eram iguais à mãe que eu tenho nesse mundo. Mas assim como já foi provado várias e várias vezes, ainda tenho muito o que aprender sobre como as coisas funcionam por aqui.
— Talvez por fazê-la lembrar do meu pai, não sei. Ele fez muito mal pra ela, e no período em que separaram, minha mãe se mudou para Okinawa, para morar com a minha vó. Eu fiquei com o meu pai, mas periodicamente enviava cartas pedindo que ela voltasse. Mas talvez teria sido melhor que ela não atendesse o meu pedido.
— Mas, você era pequeno, não era? — Olhando-o, esperei uma confirmação que veio na forma de um acenar de cabeça. — Era normal que você quisesse a sua mãe por perto. Ainda mais se a sua relação com o seu pai não era muito boa. — Ao ver a careta que ele fez, supus que sim. — Acertei?
— Morar com o meu pai certamente mudou a forma como eu enxergo o mundo. — Desviando o olhar para os pingos na janela, Aono deixava os pensamentos correrem e eu, paciente, olhava-o com vontade de abraçá-lo. Obviamente a falta de intimidade não permitia tanto. — Não era muito saudável uma criança de 9 anos presenciar uma mulher desconhecida a cada semana, perguntar onde era o banheiro ou a despensa. Algumas apertavam a minha bochecha, outras pediam para que eu tocasse quando o meu pai, totalmente bêbado, dizia que eu era uma versão em andamento do “grande Kyosuke Okuyama”. Ele agia como se não tivesse traído a minha mãe, do mesmo jeito que fazia com aquelas mulheres quando elas não eram mais interessantes. Meu pai sempre dizia que um astro não poderia ficar apegado a uma coisa só, e com a fama, vem todas as coisas boas da vida, principalmente mulheres.
— Nossa, eu sinto muito.. — Pisquei os olhos, não encontrando as palavras certas para poder expressar tudo o que eu sentia naquele momento. O pai do Aono lembrava o meu próprio pai, Joan, e todas as coisas cruéis que ele havia feito a mim. Queria mesmo poder abraçá-lo e dizer que entendo tudo o que ele está passando. — Sinto muito mesmo por seu pai ser assim. Você ainda tem contato com ele?
— Tenho, mas por causa do meu irmão. Não quero que ele sofra o mesmo que eu sofri.
— Você tem um irmão? — Assim que ele balançou a cabeça em afirmação, continuei, sorrindo. — Eu também tenho uma. Mas espera, seu pai se casou novamente?
— Alguém já te disse que você é muito curiosa? — Envergonhada, tentei me desculpar dizendo que ele não precisava me contar se não quisesse. Antes que qualquer som saísse da minha garganta, o garoto me tranquilizava, abrindo um meio sorriso. Naquela ação, a covinha direita dele era evidenciada. — Casou, sim. Minha mãe sofreu muito quando descobriu sobre o casamento e o bebê.
— Caramba, posso imaginar. — Suspirei, olhando para o teto. Naquele meio tempo de silêncio, tudo o que se escutava era o som insistente da chuva, e de vez em quando, alguns trovões que me causavam reações vergonhosas. — Você disse que sua mãe não está bem. Ela está doente?
— Psicologicamente. Depois que meu pai a traiu e todos os tabloides noticiaram a traição, ela nunca mais foi a mesma. Todos os dias a gente tinha que lidar com repórteres na porta da nossa casa, ou no caminho para a escola. Para tentar fugir de tudo isso, ela encontrou a melhor solução nos remédios. — Instintivamente, apertei a mão do garoto quando ele parou de falar. Sua voz embargada indicava que aquele era um assunto delicado, e com o contato de nossos dedos, ele pareceu surpreso e até mesmo um pouco assustado. Como eu não recuei, Aono encontrou refúgio no calor da minha mão, parecendo grato por isso. — Quando ela foi morar com a minha avó, parou de depender dos calmantes e permaneceu assim quando voltou. Estávamos vivendo bem até meu pai aparecer com a nova mulher e a criança. Se não fosse por mim.. Ela não teria voltado a depender dos remédios.
Uma lágrima silenciosa descia pela bochecha avermelhada do garoto, e naquele momento, senti o abismo sufocante que o rodeava. Éramos como dois estranhos, ainda assim, Aono se despia para mim, incapaz de segurar a carga que carregava em seu peito. Eu queria, como eu queria poder abraçá-lo e dizer que tudo ficaria bem, mesmo que aquilo soasse como um sonho distante.
Rapidamente, Aono a limpou, soltando o enlace entre nossas mãos em seguida. Abrindo um sorriso, o garoto tentava dizer sem palavras que estava tudo bem, mas eu sabia que não estava. Naquele momento da conversa, minha mente sem querer se conectava à dele. Interligada, podia sentir a dormência que a dor causava à ele. Imersa, navegava pelas ondas escuras que ecoavam em seu coração. Por isso, peguei em sua mão novamente, decidida a não deixar que ele soltasse.
— Não é culpa sua! — Com a voz sobressaindo através dos trovões, continuei, desejando que aquelas palavras o alcançassem. — Não se culpa por isso. Você era só uma criança quando viu o seu mundo dividido, que, pelo perdão da palavra, viveu com um pai de merda que não forneceu o amor que precisava. A culpa é dele por todo o estrago que ele causou na sua vida e na vida da sua mãe. — Aono parecia novamente surpreso ao ver a raiva transparecendo no meu olhar e na forma como eu apertava seus dedos. — Você e a sua mãe precisam de muito amor um com o outro. E eu tenho certeza que vocês podem ser felizes juntos, e que ela te ama de montão. No momento, ela precisa ser acolhida, por você e por profissionais que possam ajudá-la a superar a dor.
Sorri, fitando os olhos surpresos do garoto. Com a mão livre, limpei as lágrimas que caiam sem serem convidadas, e assim que pensei em afastar a mão ligada a mão de Aono, me surpreendi com a recusa. Entrelaçando nossos dedos, o garoto de olhos marejados apertava a nossa ligação, pela primeira vez em toda a conversa.
— Eu não disse nada antes, mas.. — Coçando a nuca com a mão livre, continuou. — Sinto muito pela perda do seu pai. Eu não consigo imaginar.. a dor que você está sentindo.
Assenti, e mesmo que não conhecesse Richard pessoalmente, sentia a dor da saudade por ele e pelas pessoas que deixei para trás. Naquele momento, silenciosos, compartilhamos através daquele aperto de mão as dores e incertezas que trazíamos na bagagem. Era engraçado pensar que a dias atrás, nossa existência em um mesmo espaço era impensável. Estranho pensar que ele me repelia no mínimo contato, e agora, despia todo o seu interior para mim. Nada mais justo que fazer o mesmo, mesmo que inicialmente não fosse exatamente eu que estivesse ali. Agora eu estava.
— Eu também não te disse nada, mas.. Sinto muito por ter sido tão babaca com você esse tempo todo. Sei que talvez seja difícil pra você me perdoar agora, mas..
— Eu não sinto raiva de você por isso. — Cortando a minha fala, Aono parecia retraído, afrouxando a nossa ligação. — É verdade que eu te acho uma patricinha mimada, mas sei que naquela época você precisava de alguém que pudesse ocupar o papel que te encarregaram. E também posso imaginar quantas outras vezes você sofreu com isso.
Aono deixou a minha mão assim que terminou de falar, me deixando imersa em suas palavras. Naquele momento, flashes de um passado distante pareciam partes de um quebra cabeça lentamente montado. Imagens de uma pequena Sophie, recém chegada no Japão, invadia as minhas memórias desorganizadas.
— Acha? No presente? Achei que a festa de boas vindas e hoje tivessem mudado o seu pensamento. — Sibilei, fingindo estar chateada. Aono tinha razão para pensar daquela forma, e eu não o julgaria por isso. Cabia a mim decidir se aquele estigma permaneceria, ou se nossa relação mudaria a partir desse ponto. É claro, que toda uma onda de incerteza acerca do tempo em que eu permaneceria naquele mundo, e a volta da verdadeira dona ao seu mundo original me perturbavam diariamente. Eu não estava em posição para mudar as coisas, apesar de querer.
— Não sei. Talvez você entre para a minha lista de “toleráveis”.
— Já é alguma coisa. — Rebati, risonha. Podia mergulhar naquele clima leve que havia se instaurado entre nós, e mesmo que posteriormente a verdadeira Sophie não aprovasse, naquele momento me sentia verdadeiramente bem em estabelecer uma boa relação com o garoto. — Qual era o nome daquela música que você estava tocando?
— Nocturne op.9 No.2 , de Chopin. — Aono me respondia depois de alguns segundos em frente a janela. No silêncio dos corredores, nossa presença naquela sala de música parecia ecoar por todo o colégio.
— Ela é tão melancólica.. Mas linda. Me lembra um dia como esse, chuvoso, mas bonito de observar. — Ao olhar nos olhos de Aono, notei as pálpebras curvadas em um olhar saudoso. Ele não olhava para mim, mas para o violino, como se a distância entre eles estivesse mais que fisicamente. Ligando uma coisa à outra, abaixei a voz, temendo a resposta. — Você não toca mais, né?
Ainda olhando para o violino, Aono balançou a cabeça em negação. Em seguida, um suspiro ganhou vida fora de suas narinas, antes que ele pudesse responder. — Meu pai é violinista profissional. Alguns dizem que ele é o melhor do Japão. Como filho dele, esperavam que eu fosse ser o sucessor. Mas.. — Alcançando-o, o instrumento era alvo de seus longos dedos, e do olhar triste que agora alcançava a sua face. — Nunca mais voltei a tocar depois que fui morar com a minha mãe. O violino para mim é uma lembrança do passado, na mesma memória doce dos dias felizes que passei em família, ou no frio na barriga antes de uma audição. Eu só toquei agora para passar o tempo.
— Não me parece que o violino é uma memória passada. — Afirmei no mesmo momento que aqueles mesmo olhos negros voltaram-se a mim. — Quer dizer, você estava tocando com uma expressão de saudade. E que se dane o seu pai, ou que ele esperava pra você. Você não é ele, nem as memórias que ele criou. — Me levantei, sendo acompanhada por seu olhar incrédulo, transparecendo não esperar ouvir aquelas palavras. — Vamos criar novas memórias juntos.
Em frente ao violino, deixei que os pensamentos e as indicações transparecerem na forma de música. Meu corpo imitava os movimentos do arco, enquanto a boca emitia o mesmo som que meus ouvidos captaram mais cedo. Aono parecia vidrado em mim e naqueles movimentos suaves, suas mãos buscavam o arco esquecido, e o corpo, livre de uma punição imposta pelo próprio. Segurando o violino como um brinquedo novo, Aono tocava trazendo nos lábios um sorriso perdido a muito tempo no vazio de seu interior. Abri um sorriso genuíno ao ver o garoto desabrochar na minha frente, e parte daquilo me atingia, causando em mim uma sensação estranha, borbulhante e segura de querer viver. Lá fora, clarões na forma de relâmpagos iluminavam a nós dois, ao mesmo tempo que o tempo parecia parar quando tudo o que escutava entre nós era música na sua forma mais pura.
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— Você não disse que sabia tocar.
— Mas eu não sei. — Ergui o olhar, encontrando-o ao lado do piano, com os braços cruzados. Depois de apreciar a apresentação magistral que Aono fizera com o violino, dediquei o restante do tempo ensaiando algumas notas no piano. Na minha vida passada, o instrumento era um dos meus companheiros em uma vida tomada pela solidão.
— Mas a sua técnica é incrível. Além da precisão das notas. É impossível você não ter feito pelo menos duas aulas.
Engoli em seco, tendo a completa certeza de que aquela era uma habilidade que eu não deveria tornar pública. Diferente dos mangás que eu lia, não podia responder com um "Aprendi de repente. Isso não é incrível?"
— Hmm, eu.. — Mordendo os lábios, fritava o cérebro em busca de uma resposta convincente. — Assisti uma aula e outra de forma online. Acho que pode-se dizer que sou o que chamam de prodígio?
— Você é mesmo muito convencida. — Estalando os lábios, o garoto voltava a me olhar como uma formiga prestes a ser esmagada. Se estivesse em um jogo otome, aquela certamente seria a opção que me faria perder o amor do príncipe.
— É brincadeira. Já te disseram que você é sério demais?
— Não. Deve ser porque eu não sou.
— Ahá! — Comemorei, assustando-o por um breve segundo. — Quem é o convencido agora?
Contive um riso ao olhar para a expressão que ele fez ao ser pego na própria ratoeira. Aono era intrigante de formas que sempre me levavam até ele, repleto de expressões que eu gostaria de decodificar. Havia algum motivo para ter reencarnado neste mundo e de repente obter informações sobre um garoto que até então não estava dentro do radar de afetos da antecessora? O que o universo estava tramando e com o que eu teria que lidar?
Sem perceber, no meio das minhas divagações sem sentido, Aono me observava fixamente enquanto eu deslizava os dedos pelas teclas, criando uma melodia sonora. No silêncio das vozes, o garoto sentia-se desafiado a me acompanhar. Sorrindo em resposta, fechei os olhos ao ouvir a entrada do violino, e a criação desajeitada do nosso tom, tal qual a nossa aproximação.
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— E sobre a história de fazer parte da máfia?
— Não é verdade. — Enquanto caminhávamos pelas poças d’água, - e eu segurava com muita força a vontade de pular entre elas - Aono me fitava com olhos duvidosos que diziam “que raios de pergunta é essa?” — De onde você tirou isso?
Balancei a cabeça em negação, evitando dizer que todo o colégio dizia aquelas coisas dele. Em seguida, olhei para o céu amontoado de nuvens carregadas de chuva, mas que no momento, despejava apenas algumas gotas que caiam em minhas bochechas. Como vimos que a chuva não pararia tão cedo, Aono e eu aproveitamos o momento em que ela estava em menor quantidade.
— Você já arrancou a orelha de um garoto com os dentes?
— Não. — Novamente, o garoto de cabelos amarrados na forma de um pequeno coque me olhava como se eu fosse doida. Com o cabelo daquela forma, eu podia ver os furos de sua orelha, mas sem os brincos. Regras da escola. — Eu já briguei com um garoto no ginasial, mas o máximo foi ter dado uns socos. Você acha que eu sou um vampiro?
Soltei uma risada, balançando a cabeça em negação. No momento em que olhei para ele, recebi o seu olhar grudado em mim. Para minha curiosidade, suas pupilas estavam indescritíveis.
— Você não devia deixar que essas coisas se espalhem. Quem escuta, pensa que é um delinquente.
— E você pode afirmar que eu não sou? — Com um sorrisinho de canto, Aono me instigava a responder. Estreitei os olhos com aquela pergunta, mas decidi dar o que ele queria.
— Posso. Tenho um ótimo faro para identificar as intenções das pessoas.
— Não achei que a “Miss Simpatia” da Hachi se importasse com coisas assim. — Estalando os lábios quando besliquei o seu braço, Aono manteve o olhar para frente enquanto atravessávamos. Dessa vez, fiz o mesmo. — Eu não me importo com o que as outras pessoas possam achar de mim. Não ligo pra essas coisas.
Me retive ao silêncio, notando mais da tristeza de suas palavras, do que Aono deixava transparecer. Na mente, vinha a memória dos dias de aula, e da sua postura sempre intransponível. O quanto ele ficava sozinho nos momentos em que todos conversavam entre si. Ninguém merecia passar por aquilo.
— Parece que a gente se separa aqui. — Pisquei os olhos, mal notando que estávamos na frente da estação. Aono tinha o olhar cerrado, como se acreditasse que no dia seguinte, voltaríamos a fazer parte de mundos opostos. Mas eu não mais queria aquilo.
— Aono! — Com o nome proferido dos meus lábios em uma velocidade e altura que me assustavam, interceptei o garoto quando o seu corpo já estava alguns passos distantes do meu. — Vamos nos falar amanhã! E depois de amanhã. E todos os dias! Não se esqueça que a partir de hoje, nós temos uma memória para compartilhar! — Sorri, com os olhos marejados e os braços se movimentando na forma do arco e do violino. Figuras desconhecidas passavam entre nós, algumas olhando os meus movimentos aparentemente sem sentido. A poucos passos, Aono me olhava com os olhos arregalados em surpresa genuína. Pingos de chuva caiam sobre nossas cabeças, escorriam preguiçosamente para o restante do corpo. Pareciam cronometrados com a intensidade do momento, e a demora de uma resposta. Que chegavam aos meus olhos ansiosos na forma de um aceno, e um sorriso discreto, de um garoto que eu sentia que precisava abraçar, em todos os sentidos da palavra.
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No dia seguinte, a grande quantidade de chuva responsável por paralisar temporariamente os trens - por causa disso, voltei encharcada para casa e recorri ao ofurô quentinho e relaxante - e causar transtornos em grande parte da cidade, parecia um sonho distante. Fazendo jus às mudanças repentinas de tempo característico da primavera, o tempo hoje parecia encomendado do deserto do Saara. Para piorar, hoje era dia de Educação Física. O calor que fazia misturado à prática de esportes me deixava molenga.
— Ai! — Levando a mão no nariz, ergui o tronco com dificuldade depois que uma bola acertou o meu rosto, no segundo em que fiquei aérea. O corrimento vermelho na ponta dos meus dedos indicava que o impacto havia sido forte, junto com a pontada de dor no meio da minha cabeça.
— Foi mal. — Com um sorrisinho que claramente indicava o contrário do que ela queria dizer, Kobayashi erguia a mão na minha direção, uma tentativa falsa de me ajudar a erguer o corpo. Empurrei a mão dela, fazendo isso sozinha. A garota me olhava como se eu fosse um pedaço de nada. — Se você estivesse prestando atenção, isso não teria acontecido.
— Você fez de propósito, garota! — Ergui a voz, ainda sentindo o sangue escorrer tanto no meu nariz, como nas minhas veias. Havia ficado claro que por algum motivo aquela garota não gostava de mim, e sua expressão debochada indicava que ela faria questão de mostrar o seu sentimento todas as vezes que a gente se esbarrasse.
Em minha defesa, Keiko e Kaori avançavam na garota que enrolava as mechas do cabelo, em uma expressão fingida. O professor intervia o nosso princípio de discussão, em seguida olhando para o meu rosto machucado e me orientando a ir na enfermaria.
Sai batendo os pés, jurando para mim mesma que não passaria por aquilo novamente. Estava cansada de Lavenne’s e Kobayashi’s testando os limites da minha paciência.
Abri a porta da enfermaria, criando um baque quando fechei. Minhas veias pegavam fogo e meu rosto não estava dos melhores. Abrindo um sorriso maternal, Suzuki-sensei indicava que eu me sentasse, enquanto ela pegava gaze e algodão para limpar o ferimento.
— Parece que você gosta de estar aqui na enfermaria. — Mantendo o sorriso, a mulher de jaleco branco encostava o algodão em meu nariz, causando-me uma ardência imediata e um gritinho pela dor. — O que foi dessa vez?
— Uma idiota me acertou. — Despejei, raivosa. — Não sei por que ela me odeia tanto.
— Nessa idade, é natural odiarmos umas às outras. — Suspirando, a mais velha embebecia um novo algodão no medicamento, voltando a pressionar meu nariz. Era difícil prestar atenção nas palavras dela quando eu tinha que me segurar para não gritar. — Quando a gente é jovem, sempre achamos que a presença da outra nos ameaça. É por isso que há tanta desavença entre vocês, meninas.
Assenti, pensando que rivalidades eram rivalidades, seja no mundo da fantasia, ou no mundo real. Sempre achei uma bobagem disputar com outra garota o posto de mais bonita, mais magra, mais desejada. Acredito que por mais que seja difícil nesse covil onde todas tentam derrubar as possíveis concorrentes, mantenho a mesma opinião.
No meio tempo em que deixei a enfermaria, decidi não voltar para a quadra. Matei tempo no banheiro, e quando ficou entediante demais para permanecer ali, andei pelos corredores até que chegasse o horário da próxima aula.
No caminho de volta, notei um burburinho em cada canto ocupado por mais de 2 alunos. Ao chegar na minha sala, o burburinho ganhava intensidade à medida que os alunos ocupavam a cadeira. Pedida na ignorância do assunto, recorri às gêmeas, que me olhavam como se tivesse perdido algo muito importante.
— Você não recebeu a notificação? — Assim que balancei a cabeça em negação, demonstrando estar por fora do assunto do momento, Kaori me entregou o seu smartphone, aberto na página do jornal do colégio. Eu não sabia que devia buscar informação nele até o presente momento. — Cara, que pesado.. Quando foi o lance da tatuagem, tudo bem, foi só uma brincadeira. Mas envolver os pais dele.. Acho que passaram um pouco do ponto.
Com as palavras de Kaori ecoando tal qual um barulho de uma abelha zunindo em meus ouvidos, arregalei as palavras ao ler cada uma das palavras daquela “notícia”. Aquilo não podia ser real.
“Vocês não vão acreditar na fofoca quentinha que eu acabei de saber. Enquanto eu me fingia de amiga, Aono Sousuke me revelou que a mãe dele é dependente de drogas e o pai a traiu várias e várias vezes. Aparentemente, ele não é querido por nenhum dos dois. Por isso que ele é tão medonho aqui na escola, eca!
O idiota ainda achou mesmo que eu me aproximei para ser amiga dele. Está tão desesperado assim por atenção que não consegue dos seus papaizinhos, Aono? Você é nojento. Ninguém aqui gosta de você. Nem mesmo seus pais.
Assinado: Uma pessoa com senso para te colocar no seu lugar.”
Arrisquei um passo para trás ao mesmo tempo que o celular ficava bambo em minhas mãos. Antes que ele caísse, Kaori o segurou, enquanto Keiko me perguntava se estava tudo bem. Eu estava pálida, zonza e trêmula. Não havia a possibilidade de alguém escutar aquela conversa, assim como não havia nenhum outro culpado que não fosse eu.
— Aono? É verdade que a sua mãe usa drogas? — Atrás de mim, Kobayashi colocava as duas mãos na cintura, parecendo penalizada. O garoto que me fitava com a mais pura decepção estava parado na porta, enquanto o olhar cruel de todos os alunos pareciam perfurá-lo por inteiro. Passei o olhar dele para Kobayashi, e tudo parecia um mar de memórias que passavam a fazer sentido. Aquilo havia sido obra dela.
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Oii, cerejinhas!! Como vocês estão? Depois do extra apresentando um pouco mais o personagem Aono, Sophie finalmente consegue estreitar a relação entre eles e parece que as coisas agora finalmente vão caminhar conforme a nossa ex-coadjuvante espera.. Ou será que não?
Além dessa nova barreira que ela terá que resolver, os conflitos de opinião entre ela e Kentin parecem aumentar a cada dia.. Será que ela vai conseguir atender as expectativas do loiro? Só acompanhando pra saber..
Me despeço aqui deixando essa bomba pra vocês criarem teorias e ficarem contando os dias para o próximo.. Um xêro!
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