Procura-se um limão
PARTE I - ELE
Pensei que tudo ficaria bem quando eu passasse no vestibular. Teria tempo para estudar, talvez perdesse algumas noites em claro fazendo trabalhos, comeria rápido para não me atrasar para as aulas, quem sabe pudesse ir às festas quando acabassem os semestres, poderia convidar meus colegas para jogar vídeo game no meu dormitório, e acordaria tarde nos fins de semana. Sonhei demais? Parecia demais para mim.
Um garoto do interior que se achava muito inteligente na escola e queria alcançar um mundo maior além da pequena cidade e do quintal grande da casa dos seus pais. Tudo parecia mais empolgante nos filmes e séries, mas na vida real era quase o inferno.
Deixei a cabeça pender para frente e acordei num susto. Olhei em volta desnorteado até lembrar que estava na aula de Cálculo Diferencial. O quadro já estava totalmente riscado pela professora e suspirei em ver que eu só tinha anotado o início. Me apressei em copiar e fiquei desesperado quando a professora pegou o apagador.
— Na próxima aula tirarei dúvidas sobre este assunto — ela disse apagando e quebrando meu coração em pequenos fragmentos. — Disponibilizarei uma lista de exercícios no portal para estudarem e anotarem suas dúvidas.
Larguei a caneta sem conseguir acompanhar e apenas deitei minha cabeça sobre meu caderno, feliz por ainda faltar 10 minutos para a próxima aula. Fechei os olhos querendo aproveitar todo o tempo que tinha para um descanso.
— Sabia que a noite foi feita para dormir? — alguém bateu em minha mesa, e resmunguei reconhecendo a voz do Jean.
— Fiquei até tarde terminando o relatório de Topografia — respondi levantando a cabeça, e cocei os olhos querendo poder só fechá-los novamente.
— Mas o relatório ainda é para amanhã — gargalhou cruzando os braços.
Jean era meu único amigo na universidade, se assim poderia chamá-lo. Era o único que andava comigo, que me mandava mensagens e era com ele que fazia os trabalhos das disciplinas. Ele estava usando novamente uma camiseta que realçava seus braços finos e os pelos das axilas. Jean devia ser descendente de asiáticos, pois parecia um, tinha cabelos lisos e escuros, e olhos espremidos, porém seu sobrenome era da Silva Pereira.
— Eu sei.
Me forcei a levantar e peguei a mochila. Jean me seguiu pelo corredor arrastando suas havaianas. A próxima aula era de Mecânica, e eu já estava imaginando dormir outra vez na aula do professor Sérgio.
— Preciso trabalhar na biblioteca hoje — contei quando Jean me alcançou. — E vou fazer entregas à noite. Então usei meu único tempo livre ontem para fazer o relatório.
— Sério, JP? A bolsa não é suficiente para você sobreviver aqui não? — questionou. — Você mora na residência, como pode gastar tanto? Nem para as festas para gastar com cerveja você vai!
Não respondi, deixei sua pergunta no vácuo e apenas entrei na sala para a aula de Mecânica. Não costumava dar satisfações do que fazia. Mas precisava trabalhar, minha família precisava de dinheiro, e eu já estava estudando o que queria, era o mínimo que podia fazer.
Escolhi ser engenheiro. Passei a infância querendo ser astronauta, mas foi só crescer um pouco para saber que não estava a fim de ficar no espaço escuro e solitário. Havia feito um teste vocacional no ensino médio e engenharia civil foi o resultado principal. Parecia errado estudar na capital e deixar minha família passando necessidades no interior. Então eu fiz tudo.
Prazer, João Pedro, estudante universitário de engenharia civil, terceiro semestre, bolsista na biblioteca, e entregador de comida. Eu não tinha tempo para festas, jogar vídeo game, ou acordar tarde no fim de semana.
— Hey, vai lavar essa cara! — Jean me deu um tapa no ombro, me acordando de outro cochilo.
Sorri um pouco e apenas cocei os olhos, voltando a prestar atenção na aula. Gostava de Mecânica, mas seria bem melhor se o Sérgio não falasse tão devagar. As palavras processavam em câmera lenta na minha cabeça, e nossa, que sono.
— Acorda, peste! — recebi outro tapa. — Esse sujeito só dorme e ainda tira nota alta.
Levantei a cabeça e fitei o Jean resmungando.
***
Gostava de trabalhar na biblioteca. Quando estava desesperado por dinheiro, ficava vidrado no site da universidade esperando as notícias para seleção de bolsistas. Eu não tinha carga horária suficiente para fazer pesquisas na área de engenharia, mas consegui ser auxiliar na biblioteca. Não era muito dinheiro, mas era um trabalho fácil, e só precisava cumprir 12 horas semanais.
— Você almoçou? — dona Ana, minha supervisora, perguntou quando me debrucei sobre a bancada da recepção na biblioteca. Desejei um cochilo depois do almoço.
Concordei com a cabeça e ela suspirou tirando os óculos. Dona Ana dizia que seu estilo era vintage, até porque mesmo no inferno de calor ela estava usando saia lápis, camisas de mangas compridas, meias calças e uma camada grossa de batom vermelho nos lábios. Tudo bem que na biblioteca tinha ar-condicionado, e muito mofo de livros velhos também.
— Tem vários livros para colocar no lugar. — ela disse dando tapinhas em meu ombro. — Por que está com essa cara de sono? Tente dormir direito, ou não vai se formar tão cedo.
— Vou tentar — respondi sorrindo.
Estava cansado, não, exausto! Mas não queria chorar na frente da dificuldade, iria continuar fingindo que estava tudo bem e que era capaz de aguentar.
Coloquei minha mochila em meu armário e sorri em ver um envelope cair. Coloquei o papel no bolso e passei pela dona Ana rumo ao trabalho. Fui para as mesas, onde comecei a recolher os livros que ali foram largados. Me sentia ansioso para ler o que estava no envelope, mas gostava de ler entre as prateleiras, num lugar vazio, onde minha expressão estranha não soaria inconveniente para ninguém.
Levei os livros a seus devidos lugares entre as estantes da biblioteca, e assim que encontrei um lugar tranquilo entre os livros de filosofia, abri o envelope.
Eu tinha uma admiradora secreta. Loucura, eu sei. No início achei uma grande maluquice e até debochei, mas com o tempo, aquilo se transformou num dos melhores momentos do meu dia. Não conhecia a garota que escrevia para mim, mas ela salvava meus dias cansativos. Me perguntava como uma pessoa poderia saber exatamente o que a outra precisava ler. Minha admiradora secreta não era apenas uma garota extremamente inteligente, ela tinha um coração especial.
Às vezes me pegava observando as garotas, mas nenhuma que eu conhecia se assemelhava com nada do que ela dizia. Tentei muito descobrir quem era, mas a garota parecia mais esperta que eu.
"João Pedro?
Você está acordado? Só te vejo dormindo.
Então, pesquisei para você algumas dicas de como não dormir. Sei, sou uma ótima pessoa, a melhor que você já viu.
Dica número 1: Pule. Li num site que se você começar a bocejar, comece a pular imediatamente. No mínimo 10 pulos. Talvez você assuste os professores, mas exercício físico ajuda a acordar.
Dica número 2: Beba água. Pelo menos a vontade de fazer xixi vai te incomodar.
Dica número 3: Que tal aquele café?
Dica número 4: Chupe um limão. Careta para espantar o sono. É brincadeira! Deve ter alguma explicação lógica para isso. Tenta e me diz qualquer dia se funcionou.
Dica número 5: Durma à noite. Acima de todas as obrigações, tente descansar.
Sabe, uma mente cansada não produz tanto. Eu não quero te ver frustrado, ok? Espero que cumpra a promessa de que dormirá bem hoje. Ah sim, você prometeu!
Até a próxima!
De sua Admiradora Secreta."
Não consegui esconder meu sorriso enquanto lia. Cheirei o papel para completar o momento. Algumas de suas cartas vinham com um perfume, era sutil, mas talvez eu estivesse muito desesperado para encontrar pistas sobre ela. Cogitei sair cheirando as mulheres que eu encontrava, mas reconhecia que dessa forma só conseguia parecer um tarado esquisito, então não foi uma opção plausível.
Cheguei a suspeitar que a dona Ana fosse minha admiradora secreta, principalmente por encontrar a maioria dos envelopes na biblioteca, mas quando ouvi (sem querer) sua conversa apaixonada com o marido, descartei a possibilidade.
— Não trabalhe muito — ela disse enquanto eu arrumava minha mochila no final do meu turno.
— Certo — sorri. — Dona Ana, por acaso, teria algum limão por aqui?
— Limão? — ela franziu as sobrancelhas. — Acho que não. Para que precisa de um limão?
— Deixa para lá! — acenei rapidamente anunciando nossa despedida.
Peguei minha mochila e saí correndo para não chegar atrasado ao outro emprego. À noite eu fazia entregas para uma pizzaria.
— Não vai cair e destruir a comida, hein! — Carlos, meu chefe, resmungou. — Olhe essas olheiras! Você dorme, garoto?
— Vou dormir — respondi dando uma olhadinha na cozinha. — Senhor Carlos, — me inclinei e ele se aproximou curioso — posso ter algum limão?
— Limão? — o homem gritou e fiz uma careta com sua voz vibrando em meu ouvido.
— É um assunto importante — expliquei falando mais baixo.
Ele me observou desconfiado, mas gritou para sua esposa pedindo um limão. Sorri muito agradecido com o limão em mãos.
— Vou descontar do seu salário — contou cruzando os braços.
— Quanto vai me custar? — perguntei duvidoso se deveria continuar com aquele limão. Pediria desculpas à minha admiradora, e tentaria em outro momento. Ah, mas pretendia não estar com sono no dia seguinte! Suspirei. — Esquece! Vou ficar com ele.
Velho pão duro.
Fazer entregas à noite era uma completa aventura. Naquele emprego me deparei com todo tipo de gente, e me vi de frente para situações não muito confortáveis. Às vezes era apenas uma idosa precisando que alguém trocasse a lâmpada ou colocasse o lixo lá fora, porém outras chegavam a ser inacreditáveis! De caloteiros, mulheres e ou rapazes carentes demais a traficantes da pesada.
Eu corria para cima e para baixo a noite toda com minha bicicleta, que era tudo que eu tinha, e a mochila de pizza nas costas. Era um bom exercício, deixava minhas pernas e ombros fortes.
Quando meu turno finalmente acabou, voltei para a universidade e entrei de fininho no dormitório. Meu colega de quarto, Sandro, vivia reclamando dos meus horários, e ameaçava trocar de colega, embora eu também não achasse aquilo ruim. Ele dormia cedo e ainda por cima, só de cueca (de ursinhos).
Acendi a luz devagar para não fazer barulho, mas recebi um travesseiro bem na cara.
— Apaga a luz, idiota! — ele reclamou.
Apaguei rapidamente e suspirei no escuro. Cacei meu celular no bolso e usei a lanterna para pegar uma roupa. Não queria incomodar ninguém com minha rotina louca. Talvez eu também ficasse irritado com um colega de quarto que chegasse muito tarde e sempre atrapalhasse meu sono.
Soltei um suspiro quando entrei no banheiro. Sinceramente, queria apenas me jogar na cama e tomar banho apenas no dia seguinte, e seria ótimo se o cheiro de pizza não estivesse impregnado em minhas roupas. Encostei na porta tentando recuperar o fôlego, mas meus olhos grudaram de sono, tomei um susto quando minha cabeça pendeu para frente.
Oh, o limão! Minha admiradora secreta ficaria feliz se soubesse que eu realmente cumpria seus desafios. Cortei o limão com uma lâmina de barbear nova e me encarei no espelho antes de levá-lo a boca.
Vi minha careta pelo espelho e coloquei a língua para fora. O sabor azedo me fez sacudir a cabeça e me senti desperto naquele segundo. Então me enxerguei, com olheiras profundas sobre a pele parda, que não era preta e tampouco branca, aquele meio termo que era difícil definir toda vez que tinha que preencher sobre minha cor, e ainda assim era possível visualizar olheiras. Os cantos da minha boca estavam caídos e meu cabelo oleoso. Estava horrível.
Meu momento foi interrompido com meu celular vibrando. Era uma mensagem da minha mãe. Sentei no vaso sanitário com a tampa fechada, lendo a mensagem de que eles precisavam de mais dinheiro. Já havia enviado naquele mês. Meus pais levaram muito a sério quando prometi que iria ajudá-los, papai até ficou alojado em casa quando foi demitido do seu emprego, e eu sabia que mamãe não daria conta de tudo apenas vendendo frutas.
Respondi que depositaria mais no dia seguinte. Eu poderia gastar menos e superaria aquele mês. Precisava focar nos estudos. Logo tudo iria mudar.
Acendi o abajur da minha escrivaninha quando saí do banho. Se eu adiantasse as disciplinas, poderia me formar logo.
O relógio marcava meia noite e meia. Tinha aula bem cedo pela manhã. Bocejei algumas vezes e lembrei da carta em minha mochila, a qual li mais algumas vezes, e sorri involuntariamente.
— Queria te conhecer — sussurrei passando os dedos pela assinatura. "De sua Admiradora Secreta".
"Espero que cumpra a promessa de que dormirá bem hoje. Ah sim, você prometeu. "
— Eu prometi, certo? — ri bem baixinho lendo novamente aquelas palavras. — Tudo bem. Vou dormir hoje, porque você pediu.
Guardei a carta na gaveta, junto com todas as outras. Comecei a receber as cartas desde o semestre anterior. Eu me sentia estranho nos dias que não recebia nada, era um sentimento de que alguma coisa estava faltando, como não comer no café da manhã ou quando você sai de casa e esquece de passar desodorante.
Me joguei na cama, finalmente me rendendo ao sono.
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