Por um segundo
— Então vamos fazer o trabalho com o trio cor de rosa? — Jean me indagou assim que contei sobre o convite da Ingrid, e que acabei aceitando em seu nome.
Tínhamos ido almoçar após a aula de Mecânica. Eu precisava cumprir algumas horas na biblioteca à tarde, e já me sentia exausto em pensar nas entregas à noite. Aquela rotina era um martírio, no qual sempre lamentava e reclamava, mas continuava seguindo.
Por sorte o restaurante universitário garantia a maioria das minhas refeições. A comida não era das melhores, mas pelo menos tinha comida.
— E qual o problema? — perguntei deslizando a bandeja pela base de metal. Peguei um pote de arroz. — Pelo menos não faremos o trabalho sozinhos outra vez, e geralmente você me deixa com a pior parte.
— Não estou reclamando! — riu e me empurrou para pegar arroz.
Ingrid, Cecília e Natália viviam juntas desde que éramos calouros. Acontece que o trio cor de rosa acabava com os pensamentos machistas e conservadores de que mulheres não podiam ser engenheiras. Elas sempre estavam estudando na biblioteca, tiravam as melhores notas, davam conta de qualquer trabalho, e ainda sim eram femininas.
Confesso que estranhei quando Ingrid disse que o grupo estava incompleto, até porque todo mundo queria fazer trabalho com elas, e ninguém comigo e minha dupla turista de aulas.
— Ingrid parecia preocupada — falei quando encontramos um lugar para sentar. Me recordei da conversa que ela teve com uma de suas amigas. — Devemos nos esforçar no trabalho.
— Tá, tá, entendi! — Jean resmungou já enchendo a boca de comida.
Comi rápido, olhando para o relógio a cada 2 minutos. Minha vida de atrasado era uma luta, a qual eu quase nunca conseguia vencer.
— Será que na biblioteca tem o livro do Kamasutra? — Jean sussurrou e engoli rápido o suco. O líquido desceu doendo meu esôfago.
— Está precisando disso é? — perguntei o observando de soslaio.
— Estou tentando evoluir meu apetite sexual de forma culta.
Até parei de mastigar e o encarei. Meu Deus. Ok, eu era um cara comum, tinha desejos também, estava longe de ser santo. Mas talvez fosse antissocial demais para conversar com outras pessoas sobre isso, mesmo que fosse com meu amigo esquisito que mal me escutava.
— Você deixou mesmo de ser virgem? — perguntei depois de conseguir engolir o bolo em minha boca.
— Claro que sim! Eu te contei, lembra? Com detalhes e tudo.
Concordei com a cabeça já enjoado pela lembrança da descrição erótica da primeira vez do meu amigo com sua professora de inglês. Vergonha alheia. A história era tão bem construída e detalhada que, sinceramente, parecia ter sido escrita por outra pessoa.
— Então, você conhece aquela biblioteca como ninguém — Jean me cutucou e suspirei. — Tem, não é?
— Acho que vi em algum lugar.
Jean ficou muito empolgado e eu nem queria imaginar o que se passava na cabeça dele. Talvez precisasse dividir minhas obrigações com meu amigo para amenizar seus pensamentos pervertidos.
Levantei as sobrancelhas quando chequei as horas, tinha apenas 10 minutos para chegar à biblioteca. Levantei, mesmo tendo deixado comida, e me apressei em descartar.
Jean correu para me seguir.
— JP, me ajuda, só dessa vez! — disse ofegando, tentando acompanhar meu passo apressado pelos caminhos da universidade.
— O que você quer? — perguntei olhando para o relógio e sentindo o ponteiro de segundos correndo contra mim.
— Pega o livro para mim. Prometo que devolvo no prazo.
— Ok, seu pervertido.
Comecei a correr deixando meu amigo para trás. Questionava sempre por que a biblioteca era tão distante do restaurante universitário. Corri como se estivesse numa competição e meu dinheiro dependesse daquela vitória.
Meus pés deslizaram pelo piso liso da biblioteca e me choquei contra o balcão da recepção. Olhei para o relógio redondo na parede e... Droga! Três minutos atrasado. A dona Ana me fitou com as sobrancelhas levantadas enquanto eu colocava meus órgãos respiratórios para fora.
— João, você veio correndo de novo? — tocou meu ombro.
— Desculpe... Pelo... Atraso — falei tentando recuperar meu fôlego.
— Tudo bem, querido! Vá beber uma água.
Entrei e fiquei impaciente esperando meu copo de água encher. O bebedouro não estava com tanta pressa quanto eu, e então... Glut! Era apenas isso que ele sabia fazer para demonstrar seu deboche com minha sede. Bebi água tentando criar coragem. Era mais um dia. Eu era capaz de suportar.
Vasculhei meu armário, mas não havia nenhuma mensagem da minha admiradora. Esmoreci um pouco. Talvez meu dia não melhorasse, e precisava me conformar.
Saí pegando os livros que foram largados pelas mesas e arrastei o carrinho me sentindo desanimado. Será que ela estava muito ocupada? Será que minha admiradora resolveu me deixar por conta da sua insegurança? Eu nem tinha tempo para ter apetite sexual, mas sempre estava pensando nela. Não podia ser abandonado daquela forma!
Avistei o trio cor de rosa estudando. Ingrid até acenou para mim, sorri em resposta.
Enquanto guardava os livros nas prateleiras, me deparei, coincidentemente com a ala onde estava o livro que Jean me pediu. Peguei o exemplar e talvez estivesse curioso para folhear aquelas páginas em outro momento, mas... Por que minha admiradora não disse nada? Ela não podia parar de falar comigo dessa forma! Eu deveria ter poder de escolha. Mas, será que tinha acontecido alguma coisa com ela? Ficava me perguntando que tipo de problemas ela passava, por que não podia simplesmente se aproximar como qualquer pessoa, quem era ela?
Fui pego no flagra pela outra bolsista da biblioteca. Camila fez uma careta de nojo quando avistou o livro em minha mão. Ela não ia muito com minha cara e vivia reclamando que a dona Ana passava muito a mão em minha cabeça.
— Que nojo! — murmurou enquanto encaixava um livro na prateleira a minha frente.
Respirei fundo sem tempo para me explicar.
Camila contou para as outras bolsistas e elas ficaram cochichando sobre eu ser apenas um pervertido. Quando consegui o estágio na biblioteca todas pareciam interessadas em mim, viviam falando comigo, me oferecendo lanches, alguém até tinha me chamado para sair, mas não compareci ao encontro porque tinha prova no dia seguinte. Mas assim que Roberto, o segurança, foi contratado elas me esqueceram.
Minha supervisora riu da minha cara quando pedi que ela colocasse o empréstimo do livro em meu nome. Jean iria me pagar por aquilo. Mas eu não ligava para a opinião dos outros.
— Você não dá atenção para elas... Ouvi alguém dizer que você é gay — ela comentou ainda rindo.
— E agora sou um tarado — dei de ombros.
Continuei o trabalho apenas contando os minutos para ir ao próximo trabalho.
Entre as prateleiras de literatura guardei os livros reclamando sobre meus dias odiosos. Tomei um susto quando vi o reflexo de alguém muito rápido. Uma pessoa simplesmente saiu correndo e tudo que consegui identificar foi um papel que caiu no chão. Que eu soubesse era proibido correr na biblioteca. Terminei de encaixar o livro na prateleira e esperei que a pessoa se tocasse que esqueceu algo ali, mas não voltou.
Peguei o papel abandonado no chão cinza e senti um solavanco no peito. Aquela letra fez meus pelos se arrepiarem. Me senti ainda mais agitado quando meu cérebro finalmente processou a frase que ali estava escrita.
"Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com frequência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar." (Wiliam Shakespeare)
Me apressei em tentar encontrar aquela pessoa. Por quê? Por que eu não olhei antes? Se estivesse mais alerta teria encontrado minha admiradora secreta.
Vaguei nervoso entre as prateleiras segurando aquela folha de caderno. Perguntei a algumas pessoas se viram alguma garota passando correndo, mas ninguém a viu. Meu coração estava tão acelerado e só queria encontrá-la. Por causa de um segundo, enquanto perdia tempo sendo um chato reclamão, não a vi.
Me debrucei sobre o balcão da recepção e a minha supervisora me encarou curiosa. Ela cuidava bastante de mim, estava sempre preocupada com meus suspiros. Apesar de ter achado dona Ana intrometida quando comecei a trabalhar na biblioteca, depois me acostumei em tê-la me fazendo perguntas sobre tudo o tempo todo. Ela tinha idade para ser minha mãe, mas não tinha filhos, e andava arrumada todos os dias.
— O que houve? — perguntou me analisando. — Você está tão pálido. Viu um fantasma?
— A senhora por acaso viu... — parei de falar. Como eu perguntaria de alguém que não sabia descrever? — Esquece.
— Seu turno acabou, João — disse parecendo preocupada. — Arrume seu cabelo, está uma confusão.
Passei as mãos pelos fios castanhos e lisos em minha cabeça, os quais já estavam compridos demais e ficavam bagunçados com facilidade. Se eu deixasse meu cabelo crescer demais ele tornava-se ondulado.
Concordei com a cabeça e fui buscar minhas coisas. Me sentia inconformado. Perdi a grande chance de ver minha admiradora secreta, e aquilo estava me deixando muito irritado.
Um papel escorregou quando puxei minha mochila. Meu coração acelerou e corri para fora da biblioteca. Já estava ficando escuro, mas desdobrei o papel com minhas mãos nervosas.
"João Pedro,
eu pensei em você a noite toda antes de dormir. Sua força de vontade me deu coragem para querer não desistir de você.
Cheguei à conclusão de que enfrentar o gosto azedo e adstringente do limão para afugentar o sono não é uma boa ideia, então prefiro que você durma na sua cama confortável e descanse bem. E se estiver triste, indico uma torta bem doce e enfeitada.
Aguardo ansiosa o dia que eu possa te encarar nos olhos, mesmo que você não goste de mim da mesma forma. Serei corajosa, assim como você é.
Você é minha inspiração.
De sua admiradora secreta"
Soltei a respiração e olhei para o céu, o qual estava em transição entre o dia e a noite.
Eu podia sentir que conhecia minha admiradora. Garota tímida, muito inteligente até porque houve uma vez em que ela me mandou a resolução de uma atividade de Álgebra, já que presumiu que eu estava sem tempo no semestre anterior. Acontece que na minha turma de Álgebra haviam apenas dez homens, porque peguei a disciplina numa turma extra por causa do horário. Minha admiradora poderia ser estudante de qualquer engenharia. Ela era uma garota virtuosa, que apreciava literatura e amante de tortas doces com glacês ornamentais. Minha admiradora era boa em metáforas e predisposta a inventar todas as soluções possíveis para melhorar minha rotina conturbada. Ela só não sabia o quanto era importante para mim. Ela só não imaginava o quanto eu a considerava corajosa, mesmo que nunca tivesse se revelado, ela foi capaz de dividir seus sentimentos comigo.
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