𝟶𝟾. YOUR HEAD IS A TERRIBLE THING TO LOSE.
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ELA O ENCONTRA NAS ESCADAS DO RESTAURANTE, prestes a apertar o botão do elevador. Visivelmente estressado e impaciente, não parece muito diferente de quando Luther o jogou da escada. Sem machucados visíveis, Evie percebe aliviada, o oposto do estado dela no momento. Cinco parece surpreso em vê-la por ali, mas o que quer que tem a dizer morre no momento em que nota todo o sangue que mancha o vestido da esposa. Ele se aproxima rapidamente, segurando o rosto dela entre as mãos com cuidado, conforme a torrente de palavras escapa, perguntando o que foi, se ela está ferida, quem foi, se ela está bem e como aconteceu.
— A Lila me achou antes de eu chegar aqui — responde Evie com a voz abafada, arrumando os cachos novamente. Ela faz sua própria checagem em Cinco mais de perto, se certificando de que ele está intacto.
Cinco fecha os olhos, se amaldiçoando internamente por algo que de verdade não tinha como prever e nem impedir.
— Eu me encontrei com ela hoje de tarde… — ele começa imediatamente, sentindo que é seu dever ser o mais honesto possível em alguma confusa maneira de compensação.
— Eu sei — Evie o corta, limpando o sangue do rosto com uma das luvas. — Ela já me contou. Eu só queria estar com você quando isso aconteceu. Poderia ter batido nela também.
Cinco nega com a cabeça.
— A Gestora tava lá também. A Lila é realmente da Comissão. E as duas já sabem que você tá viva. Eu estar sozinho foi melhor.
Evangeline suspira, apesar da fadiga, e se inclina na direção dele como uma forma de apoio. Não consegue forças nem para ficar furiosa ou amedrontada, muito menos paranóica com a informação de que agora seu disfarce foi pelos ares. A porta do elevador finalmente se abre e os dois entram; Cinco aperta o botão do andar correto, e antes que as portas se fechem, alguém coloca a mão lá dentro, praticamente se espremendo para entrar.
— Espera aí.
Diego. Evie sorri para ele, cansada, e ignora os olhares incisivos sobre as manchas vermelhas do tecido claro.
— Espera aí! — Allison exclama, surpresa quando vê os irmãos dentro do elevador. Ela olha por cima do ombro para Klaus, que se junta a eles aos tropeços.
— Oi, pessoal — gorjeia o Séance, a garrafa de gim tilintando em suas mãos e o óculos de sol escorregando do rosto apesar de já ser noite.
— Oi pra você também — Evie cumprimenta, recebendo um beijinho na testa e um tapinha no topo da cabeça em resposta.
Luther é o último a aparecer.
— Com licença — ele diz, forçando os outros a se espremerem no elevador.
— Bom! — Cinco murmura, embora Evangeline não consiga dizer se ele está satisfeito ou não. — Todo mundo veio.
As portas finalmente se fecham, e conforme o elevador sobe em meio aos rangidos, não é possível dizer quem é o primeiro a sentir o cheiro horrível que preenche de repente o pequeno espaço. Evie esconde o nariz na dobra do cotovelo com uma careta, observando seus cunhados fazerem o mesmo.
— Ah, Luther! — Klaus resmunga, segurando a respiração, seguido pelas reclamações dos outros.
— O Elliott disse pra você parar de comer todos aqueles ovos!
— Perdão, eu tô nervoso — Luther confessa, constrangido.
Assim que as portas voltam a se abrir, eles brigam entre si na tentativa desesperada de escapar do cheiro rançoso que parece penetrar até mesmo as camadas de tecido de suas roupas, e Evie precisa deslizar entre Cinco e Vanya, praticamente tropeçando até se apoiar numa pilastra de madeira, respirando o mais fundo possível.
— Hm, tá de brincadeira…
— Que absurdo…
Eles se aproximam da grande mesa redonda no centro do salão vazio quando se recuperam do cheiro, e é Cinco quem abre a boca para ir ao cerne da questão:
— Olha só, quando o papai chegar, quem vai falar sou eu — ele avisa, sem espaços para discussões.
— Eu também tenho umas perguntinhas pra ele — Diego contrapõe, analisando o amplo espaço que tem a seu favor.
— A gente não quer espantar ele, tá? Talvez ele possa nos ajudar a impedir o fim do mundo e ir pra casa.
— Não, Cinco, a gente precisa descobrir por que ele planeja matar o presidente.
— Isso é questão de vida ou morte, seu imbecil.
Evie se senta em uma das cadeiras ao redor da mesa, conseguindo esconder a maior parte de seu vestido arruinado já que apenas o corpete permanece visível da cintura para cima. Ela avista uma concha bem do centro da mesa, e se estica para pegá-la e encostar no ouvido da mesma forma que fazia quando viajava para a praia com sua família e seu pai mergulhava bem fundo no mar apenas para encontrar coisinhas como aquela. Evangeline sente falta do pai. E do mar também. Havana e Long Island nunca pareceram tão distante.
— Tá bom, eu acho melhor a gente se revezar pra falar, tá? — Vanya sugere, tentando apaziguar a situação. Ela olha ao redor antes de se aproximar de Evie e tomar a concha das mãos dela. — Pronto, quem estiver com essa concha na mão pode falar.
— Vanya, a gente não tem tempo pra um debate — Cinco retruca, se apoiando na mesa.
— Eu vou começar — Allison se decide por fim, caminhando até a irmã para pegar a porra da concha. — Todo mundo sabe que eu falo melhor em público do que vocês.
— Tá bem, filhinha do papai — zomba Diego.
— Ah, tá com ciúmes, Número Dois?
— Aí! Chega de números — ele avisa. Luther e Vanya se sentam à mesa também, mesmo que Cinco continue de pé. — Chega dessa merda. Somos a Equipe Zero. Todo mundo, Equipe Zero.
— Diego — chama Luther. — Você não tá com a concha.
Kraken ergue o dedo, sorrindo sarcasticamente antes de arrancar a concha das mãos de Allison e arremessá-la na parede do outro lado do salão, estilhaçando o troço em pedaços.
— Típico — Allison anuncia, para ninguém em específico.
Bem nesse momento, a porta se abre com um estrondo e o silêncio se instala. Sir Reginald Hargreeves se aproxima, marchando até eles com uma pilha de livros debaixo do braço, sem se dignar a olhar nenhum dos outros. Eles se sentam à mesa, com exceção de Klaus que se ocupa no bar, pronto para se embebedar ainda mais.
— Não somente vocês vandalizaram meu laboratório, soltaram meu chimpanzé, deram um jeito de invadir o consulado do México, me perseguiram e atacaram repentinamente, mas também me chamaram em diversas ocasiões de…
A cadeira arranha o chão quando Klaus a arrasta para se sentar, bebericando alguma nova mistura alcoólica que fez.
— Oi, pai, como é que tá a vida?
— …“pai” — Sir Reginald completou, parecendo desejar estar em qualquer outro lugar senão ali. — Minha investigação mostrou que não são CIA, nem KGB e com certeza não são MI5, então… — ele pousa a caneta na mesa, unindo as mãos. — Quem são?
Todos eles se entreolham, apreensivos, sem saber como agir e muito menos como responder. É a primeira vez que muitos deles têm a chance de conversar com o pai depois de saírem de casa aos dezoito anos, ansiosos para deixarem aquela prisão e cenário de tortura o mais rápido possível. Mas dizer que são os filhos dele, do futuro, é coisa de louco.
— Somos seus filhos. Somos do futuro — Cinco responde. — Em 1989, você nos adotou e nos treinou para lutar contra o fim do mundo. Nos chamou de Umbrella Academy.
Sir Reginald parece desgostoso só de imaginar esse cenário.
— Mas, afinal, por que eu adotaria sete…
Evie se apruma na cadeira, incomodada com a ideia de ser confundida com uma das crianças compradas por aquele homem terrível.
— Ai, mimimi, já chega — exclama Klaus, olhando por cima do ombro para alguém que ninguém além dele consegue ver. — Tá bom — ele se vira para a família, gesticulando para que eles voltem a falar.
— O que pode ter dado em mim para adotar sete delinquentes mal-educados?
— Temos habilidades especiais — Cinco responde imediatamente.
— Especiais? Em que sentido?
— No sentido de superpoderes.
— Podem me chamar de antiquado, mas eu sou muito ligado em uma coisinha chamada “prova”. Provem.
Allison, que antes apenas encarava a própria bebida como se houvesse algo de muito interessante lá, tosse e murmura algo como “Agora todo mundo quer uma demonstração”.
— Não somos animais de circo, tá legal? — Luther diz, sendo essa a primeira vez que discorda do pai em algo. — Não vamos… equilibrar bolas no nariz nem… bater palmas que nem focas pra entreter você.
Diego é o primeiro. Ele puxa a adaga da manga da camisa e a arremessa na direção do pai, fazendo-a mudar de rota no último minuto e acertar uma pilastra de madeira como se sempre fosse seu alvo original. Sir Reginald mal pisca, apenas puxa a caneta de volta e toma notas, exatamente como fazia quando eles eram crianças.
— Tá escrevendo o quê? — indaga Diego incisivamente, se inclinando na direção dele.
— Já foram duas faltas pra você, meu jovem.
Allison quase cospe a bebida, e Evie tem que suprimir o riso mais uma vez. Diego, irritado, se levanta da cadeira e está prestes a atacar Sir Reginald, mas Cinco se teletransporta na frente dele e o segura, fascinando o pai.
— Para! — sussurra o garoto.
— Isso é interessante — o homem afirma.
Cinco limpa a garganta.
— Tá legal, um resuminho. — ele volta a seu assento e aponta para cada um dos irmãos. — Luther, superforça. Klaus comunga com os mortos. A Allison faz qualquer um fazer qualquer coisa.
— Só que ela nunca usa o poder — acrescenta Kraken.
Allison se irrita com o comentário e abaixa a taça em que bebe.
— Eu ouvi dizer que se deu um soco na cara — os olhos de Diego se tornam brancos leitosos conforme os poderes da irmã se infiltram em sua mente. Antes que ele possa perceber o que está fazendo, seu punho se ergue por contra própria de encontro ao seu rosto.
— Merda! — ele exclama, gemendo de dor. Dois irmãos levando um soco da mesma forma no mesmo dia é certamente uma coisa para se ver, pensa Evangeline.
Sir Reginald se vira para Vanya.
— E você? — ele pergunta.
— É, olha, eu acho melhor não testar os poderes da Vanya — Luther interrompe nervosamente.
— Realmente não é uma boa ideia não — concorda Klaus.
— É — Luther tosse.
— Tudo bem — Vanya fala timidamente de seu assento. — Eu me controlo.
— Se controla? Da última vez que tentou, explodiu a porcaria da Lua…
— Olha, é melhor não…
— É, é melhor não…
Vanya os ignora e puxa um garfo da mesa, preparando-se para bater no copo a sua frente. Evie se inclina para trás bem no momento em que Cinco avisa a irmã para não fazer aquilo, mas o aviso cai em ouvidos surdos conforme cuidadosamente atinge a taça. Cinco se teletransporta até a esposa, puxando-a para cima e cobrindo-a com seu próprio corpo quando a fruteira no centro da mesa explode, lançando pedaços de frutas por todos os lados e cobrindo os Hargreeves presentes.
— Minha camisa favorita — Klaus lamenta baixinho, tirando fatias de abacaxi do cabelo escuro.
Evie espia os outros por cima do ombro de Cinco quando ele finalmente a solta, os olhos dele escaneando quaisquer danos ou machucados causados nela.
— Opa — Vanya murmura, olhando para o próprio colo, incapaz de esconder o sorriso.
— Impressionante — cede Luther.
— E você? — Evie olha surpresa para cima, até perceber que Sir Reginald está falando com ela. A garota aponta para si mesma como quem pergunta se é com ela que estão falando. — Sim, você, menina. Você também alega ser minha filha?
— Não! — se apressa em explicar, horrorizada com a ideia. — De jeito nenhum!
— Então, quem você é?
Ela olha para Cinco, sem saber o que responder, e ele se propõe a continuar:
— Evangeline é minha esposa.
— A sua…
— Esposa. Eu te disse que somos do futuro.
Allison troca os canudos de sua bebida, puxando a cadeira para Evie quando ela volta a se sentar, sem oferecer maiores explicações. Diego se vira para encarar o pai.
— Olha só, a gente sabe que você tá envolvido em um complô pra assassinar o presidente.
Cinco balança a cabeça mais uma vez, revirando os olhos com a previsibilidade do irmão. Sir Reginald olha bem para o Kraken.
— Você foi hospitalizado há pouco tempo, não é mesmo?
— Não, eu…
— Ainda parece estar sofrendo delírios de grandeza e paranóia aguda.
— Eu tô? — Diego questiona, retirando a fotografia do bolso e a jogando na mesa, apontando diretamente para ela, enfático. — Explica isso. É você. Isso é daqui a dois dias, na praça, no local exato em que o presidente vai ser morto.
— Bom… — ele volta a encarar o suposto filho. — Acho que você descobriu. Você sozinho desvendou o meu complô nefasto. É isso que você quer ouvir? Você se acha um herói? O último homem decente que vai nos salvar de nossa decadência para a corrupção e a conspiração?
Evie quer se levantar no momento em que o escuta começar a falar, quer mesmo, e sua mão agarra a faca da mesa na mesma hora em que nota a expressão de Diego caindo a cada palavra. Mas, como sempre, ela permanece sentada e quieta. Isso, pensa ela, é a coisa mais real sobre seu mundo. Não os superpoderes, as relações estranhas ou a guerra nuclear inevitável, mas isso – assistir a um homem adulto se encolher todo quando o maior monstro de sua infância, seu próprio pai, ergue a voz para ele. Reduzido a nada.
— É um delírio fantástico — Sir Reginald continua, impiedoso. — A triste realidade é que você é um homem desesperado, tragicamente ignorante de sua própria insignificância. Desesperadamente apegado ao seu raciocínio ineficaz. Em suma, um homem perdido e confuso.
Evie evita olhar para Diego, agora sentado novamente em sua cadeira, com os olhos castanhos marejados. Ele abre a boca para retrucar, para falar alguma coisa, qualquer coisa, mas o que sai é apenas um patético “N-não sou” gaguejante. Exatamente como acontecia quando era criança.
— Esquece o presidente — Cinco diz, cortando o clima pesado que se instala de repente. — Temos uma guerra catastrófica chegando em cinco dias. Temos que descobrir como impedi-la.
— Guerra? — Reginald desdenha. — Os homens sempre estão em guerra uns com os outros.
— Não, essa não é uma guerra qualquer. Eu tô falando do juízo final. Do fim do mundo.
— Muito bem. Vocês é que são especiais — ele fala, ainda irredutível. — Por que não se juntam e resolvem o problema?
Cinco não soube o que dizer. Foi como se mais peso tivesse caído de repente sobre seus ombros, com a percepção que nem seu pai poderia ajudá-los. Por outro lado, Klaus resolve achar que esse é o momento ideal para sofrer uma convulsão repentina, braços erguidos de súbito, tremendo violentamente e engasgando de forma sufocada. Todos olham para ele, assustados.
— Ele tá tendo uma convulsão? — Allison pergunta, duvidando.
— Overdose é mais provável — Diego murmura, sem nunca erguer os olhos da mesa.
— A gente faz alguma coisa? — pergunta Luther.
— Klaus! — sussurra Cinco, bem audível. — Agora não é a hora. O que tá fazendo?
Evie esconde o rosto entre as mãos, espiando a cena por entre os dedos.
— Eu sou… — o Séance engasga, virado para o pai, os olhos vidrados.
— Fala logo! — Sir Reginald ordena.
— …Ben! — e então desmaia. Cai no chão, desacordado, como um saco de bosta. Simples assim.
Hargreeves olha para ele por um momento, e então se levanta, recolhendo os cadernos e a caneta.
— Enfim… Obrigado por terem vindo — ele diz, limpando a garganta. — Já vi o suficiente.
Evangeline suspira, derrotada, e apoia a cabeça nas mãos. Está prestes a se virar para Cinco e listar com ele todas as opções que têm no momento – nenhuma agradável, é claro – quando Luther se levanta da cadeira e rasga a camisa, mostrando o peitoral de chimpanzé.
— Olha o que você fez comigo! — ele berra, apontando para o próprio peito. — Olha pra mim!
— Ai… Merda — o casal resmunga em uníssono, se entreolhando.
Sir Reginald se vira para eles sem nem olhar para Spaceboy.
— Você, menina — Evie aponta para si mesma, espantada. — É, você mesma. Uma palavra a sós. — ele espera que ela assinta, concordando, antes de se virar e ir até o bar.
A garota se levanta, sem saber como agir quanto a suas roupas salpicadas de sangue, as mãos suando dentro das luvas compridas, mas Cinco ajeita o broche azul em seu vestido e a apressa, mais incomodado do que deixa transparecer com a ideia de sua esposa conversando diretamente com seu pai.
— A conta, por favor! — Allison pede erguendo o braço conforme Klaus geme no chão e os outros se levantam, prontos para colocar a maior distância possível entre eles e o pai.
Cinco é o único que permanece exatamente no mesmo lugar, fixando o olhar na parte de trás da cabeça do pai como se ele pudesse simplesmente agarrar Evie e sair correndo com ela. Ele não confia em Sir Reginald, isso é óbvio, muito menos quando está tão próximo assim de sua esposa.
— Você deve estar se perguntando porque eu te chamei aqui em particular — diz o homem quando Evangeline finalmente se acomoda ao seu lado. Ela faz questão de deixar um banco vazio entre eles, apenas por precaução. — Você foi a única, juntamente do seu marido, que pareceu ter algum senso.
— Ah, isso é porque nós somos os mais velhos do grupo — ela explica levianamente. Sir Reginald paralisa ao ouvir o comentário, e Evie vai em frente. — Na verdade, eu sou mais velha até que ele. Sou mais velha do que você é agora.
Ele limpa a garganta e gesticula para o barman atrás do balcão.
— Conhaque? — pergunta.
Evie pondera brevemente, mas ainda está meio baqueada com o gim que tomara mais cedo, então nega. Não quer estar completamente bêbada quando for discutir opções com Cinco.
— Ele é sempre assim? — Sir Reginald questiona, se referindo ao garoto, ainda sentado na mesa, esperando impacientemente que eles terminem de conversar.
— Não. Às vezes é pior — Evie diz, em tom desafiador. Não suporta a ideia de ouvir esse homem terrível falar mal do seu marido. Então, já que havia prometido a Elliott chegar em casa em poucas horas, vai direto ao assunto. — Olha só, esse mundo vai acabar em cinco dias se não formos embora dessa linha do tempo.
— Mundos acabam. Paleozóico, jurássicos, daí por diante.
Evie balança a cabeça, negando.
— Mas dessa vez podemos fazer alguma coisa a respeito. Cinco acha…
— E você acredita nele? — indaga Hargreeves. Evangeline confirma sem nem titubear. — O maior defeito do homem: a ilusão de controle.
A garota ignora o comentário, já tendo diversas conversas daquele tipo com Elliott. Haviam dias em que eles viravam a madrugada em claro à base de energéticos e livros de filosofia, discutindo sobre cada tópico e cada tema em específico. Aquela não era a hora de ficar conversando sobre Nietzsche e Maquiavel. Eles não tinham todo aquele tempo.
— A gente precisa da sua ajuda — ela insiste. — Você é nossa última opção sã. O que sabe sobre viagem no tempo?
— Em teoria?
— Na prática.
— Sei que é parecido com descer cegamente nas profundezas de águas geladas e reaparecer…
— …Como uma noz — completa Evie, cansada. Já ouviu isso antes, quando Cinco repetia em tom de escárnio aos 13 anos e depois como lembrete no apocalipse. — É. Todos nós sabemos.
Sir Reginald assimila, digere tudo aquilo.
— O que aconteceu quando ele tentou viajar? — pergunta por fim.
— Ele foi muito pro futuro e nos deixou preso lá por mais de quarenta anos — ela volta a mexer no broche, inquieta. — Depois, voltou muito pro passado, só que dessa vez com a família inteira. Não foi muito agradável. Em nenhuma das vezes.
— Talvez o apetite dele seja grande demais para as habilidades — Sir Reginald sugere. Evie faz uma careta, mas não pode deixar de considerar. — Diga a ele para começar pequeno. Segundos, não décadas.
— Segundos? — ela repete, levemente incrédula.
— Uhum.
— Sem querer ofender, mas acho que precisamos de muito mais do que apenas poucos segundos.
— Tanta coisa muda em questão de segundos — ele fala. — Pode-se derrubar um império. É possível se apaixonar — ela vira o rosto para longe nessa parte. — Uma semente não vira uma árvore numa noite.
Evangeline funga, levemente desgostosa, mas ainda considerando a opinião dele. Está prestes a se levantar do banco e ir em direção ao marido, murmurando um agradecimento rápido, quando Hargreeves a interrompe:
— Você ainda não me disse o que é.
— Perdão?
— O que você faz? — aqueles olhos frios parecem analisá-la cruelmente, como se ela fosse um dos números que ele chamava de filhos. — Quais os seus poderes.
— Telepata — diz. — Infelizmente, eu leio mentes — então acrescenta: — Embora tenha aberto mão de tudo isso, é claro.
— É claro — ele repete, ainda a perscrutando.
Evie se remexe, desconfortável, sentindo o olhar de Cinco queimando em sua pele. Daqui a pouco ela ia precisar beber uns dois litros de água de tanto que ele a secou com os olhos. Então, aproveitando que tem a oportunidade bem na sua frente, ela questiona:
— Na verdade, tem uma coisa — hesita, mas continua quando vê o homem se ajeitando no banco. — Todo esse tempo, é como se meu poder não funcionasse direito. Como se minha mente tivesse sido danificada permanentemente. O seu filho morto, o Ben… ele tinha como se fosse um portal pra convocar criaturas interdimensionais, tudo no próprio corpo. Ele pediu pra que eu entrasse na mente dele, que tentasse descobrir se tinha uma forma de fechar aqueles portais que ele odiava. E eu fiz. Eu tentei. Só que o Horror da mente dele se interessou demais por mim quando me viu por lá. E eu quase não consegui escapar. É como se uma parte da minha mente tivesse sido dilacerada.
Quando Evangeline era criança, não tinha quase nenhum controle sobre sua habilidade. Conseguia ler apenas pensamentos superficiais de quase todos que se aproximavam, mas nada com tanta profundidade. A música sempre abafava esse tipo de coisa. Ela conseguiu controlar, eventualmente, quando descobriu que um certo nível de concentração podia servir para se aprofundar ainda mais na mente de outra pessoa, ou mesmo para calar a voz de todas as outras. É como se, com o rejuvenescimento causado pelo acidente da maleta, seu cérebro também tivesse regredido em autocontrole e ela precisasse aprender tudo de novo.
Ele a analisa cuidadosamente, como se tentasse desvendar algum segredo que só ele enxerga.
— A mente humana é frágil — começa, falando lentamente. — É possível que ela esteja, sim, danificada. Mas, presumindo que você envelheceu durante esses quarenta anos e depois regrediu até uma idade anterior a quando esse ferimento ocorreu originalmente, pode ser simplesmente uma dor fantasma. Um mecanismo de defesa.
Evie pensa a respeito, sentindo as engrenagens girando em sua cabeça. É como se uma lâmpada tivesse se acendido debaixo de sua pele, e agora ela se sente estúpida e terrivelmente ingênua por nunca ter pensado naquela possibilidade. E agora também se pergunta o que aconteceria se empurrasse um pouco, só um pouquinho, o limite de suas habilidades momentâneas. Se empurrasse para além da dor.
— Quando o verdadeiro poder é escasso… — se pega sussurrando. Quase pode ouvir o homem à sua frente completando a frase, a frase que ele disse para ela em certa ocasião, na única vez em que conversaram de verdade. E, para sua surpresa, ele responde.
— …Ter um pouco dele é vantajoso — ele ergue o whisky em um brinde que ela não retribui antes de beber.
Uma parte dela se ressente de si mesma por não falar nada do que pensa sobre ele, tendo visto todos os efeitos colaterais de abusos psicológicos em crianças que viu refletido no olhar de cada um dos amigos. Evangeline olha para Sir Reginald, olha bem para ele, para o homem que odeia, que despreza mais do que tudo, e se vira para ir embora. Algum dia, ela pensa, desejosa. Algum dia.
Quando encontra Cinco, ele lhe entrega imediatamente uma das conchas menores que faziam parte da decoração do local antes de se aproximar e perguntar em voz baixa o que o pai dissera. Evie conta cada detalhe da conversa conforme descem no elevador e saem para a rua, segurando o braço do garoto com uma mão e sua mais nova concha com a outra. Cada vez mais frustrado, ele precisa parar por um momento para respirar bem fundo antes de voltar a andar.
— Você não vai gostar nada do que eu vou dizer — ele fala, começando a sentir uma enxaqueca surgindo, no exato mesmo ponto em que Evie reclama das dores de cabeça dela.
— Ah, disso eu tenho certeza — ela faz um gesto brusco com a mão, como se espantasse uma mosca incômoda. — Mas meio que tanto faz. Vem cá, isso aqui não pode ser considerado tecnicamente como roubo? — se refere à concha que agora se agarra como se fosse sua vida.
Cinco dá de ombros.
— Sim. Talvez. Quem se importa?
— Eu com certeza não — ela concorda, dando um rápido beijo na bochecha dele. Sorri para si mesma, pensando em como teve anos para aprender a decifrar cada tom de verde dos olhos dele e como agora consegue entender cada humor, cada vontade e desejo apenas de olhar para ele. E sobre como deseja que aquilo nunca mude. — Te amo, sabia?
— Bom, é o de se esperar, considerando que somos casados há quarenta anos — Evangeline zomba da resposta dele. — Tá, eu também te amo.
Eles sorriem um para o outro, daquela forma com que sempre fizeram, desde que tinham doze anos.
E então seguem para a escuridão.
A três quilômetros dali, Elliott Gussman era assassinado brutalmente.
₍ 001 ₎ Prestes a surtar e publicar uma fic de Percy Jackson ou de Jogos Vorazes, mesmo que eu tenha prometido a mim mesma que ia terminar essa daqui antes…
₍ 002 ₎ Caso tenham gostado, curtam e comentem e me digam suas teorias! Estou ansiosa para trazer mais capítulos, então nos veremos o mais cedo possível.
©lovingclare.
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