𝟶𝟹. I SEE RED AND BLUE.
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HÁ MESES EVIE NÃO TINHA UMA PERTURBAÇÃO EM SUA VIDA, já que a maioria de suas manhãs e tardes eram preenchidas com ajudar Elliott em coisas aleatórias ou dar uma caminhada por Dallas - sempre paranóica, sempre olhando por cima dos ombros -, à procura de alguma coisa nova para explorar e descobrir. Era uma das coisas que ela adorava nas grandes cidades. Ela havia crescido em diversos lugares, e estava acostumada a finais de semana reservados apenas para explorar os bairros e os arredores. Vilas e povoados são uma coisa à parte, facilmente encobertos, mas lugares como Paris, onde morou dos sete aos oito anos, Oxford, sua cidade de origem, ou mesmo Nova York, são sua grande paixão.
São cidades que pode consumir com a avidez que quiser, devorá-la todos os dias - comida, arte, cultura, o que quiser - e nunca ficar sem. É o tipo de lugar que você leva anos para conhecer, e, ainda assim, parece sempre haver uma nova ruela, uma nova escadaria, uma nova porta. Em Nova York, ela e Cinco percorreram juntos a maior parte dos cinco distritos - Manhattan, Brooklyn, Queens, Bronx, Staten Island - e planejavam fazer mais. A vida deles era insignificante no meio de tanta gente. Eles eram invisíveis.
Mas agora, enquanto observa Diego quase fazer um buraco no tapete da cozinha, pensa que a situação poderia ser pior. Ela poderia estar presa em uma cidade pequena, por exemplo. Uma daquelas como Buford, em Oxfordshire. Cidades pequenas propiciam vidas pequenas, e vidas pequenas são, muitas vezes, sinônimos de mentes pequenas. Estreitas. Fechadas. E algumas pessoas não se incomodam com isso. Gostam de saber onde estão pisando. Mas se você só segue os passos dos outros, não pode encontrar o próprio caminho. Não pode deixar a sua marca. Mesmo que depois de tanto tempo, só precise de um pouco de paz.
- É claro que nosso pai estaria envolvido no assassinato - Diego rumina. - Eu deveria saber.
- Não, você tá se precipitando - Cinco contesta, ligeiramente duvidoso.
- Então porque mais ele estaria naquele lugar? - Diego indaga, aumentando o tom de voz ao apontar para a imagem na tela. - Com o guarda-chuva preto aberto em um dia de sol em Dallas, no exato momento em que o presidente leva um tiro?
- Ah, pelo amor de Deus - Evie murmura. Ela ama seu amigo, de verdade mesmo, mas tem vezes que puta que pariu. Ela obviamente nunca havia passado pelo que os sete Hargreeves viviam diariamente, mas sabia que Sir Reginald se importava apenas com os próprios interesses a ponto de negligenciar várias crianças de uma vez - assassinato presidencial era simplesmente absurdo para o modos operandi do filho da puta.
- Não é um bom sinal, eu admito - concorda Cinco com um olhar alarmado.
- Não, é ele quem dá o sinal pra essa merda toda - Diego exclama.
- Calma, caralho a quatro - a garota recomenda. - Fica tranquilo...
- Não não, é sério. É o que o Hazel tava tentando te contar - ele aponta para Cinco. - Temos que impedir que o papai mate o presidente.
Evie olha bem para ele, com a firmeza típica de alguém que sabe o que está falando.
- Eu seria a primeira pessoa a testemunhar contra ele em um tribunal sobre abuso infantil e tortura, mas seu lado irracional está dando as caras, Didi.
Ele se exalta, a encarando.
- Eu pensei ter te dito que odiava esse apelido de merda.
Lila deixa escapar uma gargalhada alta.
- Didi? É esse seu apelido pra ele? É ótimo! - ela ergue a mão para um cumprimento que Evie não se dá ao trabalho de retribuir enquanto continua encarando Diego.
- Um apelido ruim é o que você ganha por dizer coisas ilógicas desse jeito - diz lentamente, enunciando bem as sílabas. O sotaque inglês bem disfarçado parece escapar, como sempre acontece quando começa a se estressar. - E fique feliz por não ter sido um soco na cara ou um chute nas bolas. Seu cérebro tá aí de enfeite por acaso?
Kraken perde a paciência, e enquanto vai para cima dela - para uma daquelas quedas de braço com xingamentos de ambas as partes, sem dúvida -, Cinco se põe entre ambos com um olhar de aviso direcionado ao irmão.
- Vai com calma tá? - o garoto exige, tentando raciocinar. - O papai não era nenhum escoteiro, mas assassinar um presidente? Não parece o perfil dele. Ev tem razão.
- Como você saberia? - Diego retruca, áspero. - Se livrou dos melhores anos dele.
O rosto intocado de Evie se contorce em uma careta de raiva.
- Me livrei? - Cinco repete, incrédulo. - Acha que foi moleza, Diego?
- Faltou oxigênio no momento do seu parto, né? Porque só isso justifica...
- ... Você não tem ideia do que nós tivemos que fazer pra sobreviver pra voltar aqui e salvar a vida de vocês!
- ... O que foi, hein, traumatismo craniano ou doença cognitiva? Não, não, esquece, o bebê de verdade deve ter morrido e o Reginald pegou a placenta no lugar pra criar, só pode...
- Quer saber? Não temos tempo pra isso agora. - interrompe Cinco bruscamente. - O nosso pai tá em Dallas, né? Vamos falar com ele. Talvez ele nos ajude a consertar a linha do tempo.
- E o quê você pretende dizer a ele exatamente? - Evie pergunta, erguendo as sobrancelhas. - Não acho que chegar dizendo "Ei, pai, sou seu filho do futuro e eu e meus irmãos fodemos com tudo, tem como ajudar aqui?" vai ajudar muito.
- Você tem uma ideia melhor? - ele retruca, aborrecido mas não irritado. Nunca irritado. Não com ela.
- Dallas é muito grande - Diego comenta. - Teríamos que achá-lo primeiro.
- Nossa, imagina só se existisse um jeitinho mágico nessa época pra encontrar as pessoas e endereços - a garota responde, sarcástica.
Eles jogam a lista telefônica da cidade na mesa da cozinha assim que a encontram.
- Não adianta buscar pelo sobrenome, não tem nenhum Hargreeves aí - ela avisa antecipadamente. - Se tivesse, eu já teria encontrado os outros.
Cinco assente.
- Tenta a empresa dele então - recomenda ele a Diego. - D.S. Umbrella Manufacturing.
- É, eu sei o nome. Valeu - os olhos de Kraken escaneiam a lista da seção correta antes de pararem no endereço certo. - Puta merda... Rua Oliver 82. Vamos.
- Deixa eu pegar meu casaco - Evie sugere, e está a meio caminho do quarto quando Cinco interrompe.
- Nada disso, é muito arriscado...
- Teu rabo que eu vou ficar aqui - é a única resposta que ela dá, puxando descuidadamente um casaco de lã azul do armário.
- Deixa ela ir com a gente, qual a pior coisa que pode acontecer? - Diego defende.
Cinco o ignora, como sempre.
- O meu pai já te detestava quando criança, não acho que te ver seja a decisão mais esperta. Você devia ficar aqui por hoje e... sei lá, cuidar pra que a namorada maluca do Diego não solte Elliott.
- Ela não é a minha namorada.
- E eu não vou ficar aqui - Evie insiste, irritada. Passou meses trancada dentro de casa para ter que continuar da mesma forma com uma louca do hospício e seu melhor amigo preso em uma cadeira. Mesmo agora, consegue sentir o início de uma enxaqueca. - É '63, o Reggie nem sabe quem eu sou pra se incomodar com a minha existência ainda. Ele que espere os trinta anos que faltam pra gente se conhecer. E se ele tentar alguma coisa, eu quebro esse velho na porrada de um jeito que remédio nenhum de cálcio recupera os ossos dele.
Cinco grunhe em aborrecimento, apertando brevemente a ponte do nariz. Embora ele ache a disposição de Evangeline algo adorável - e verdadeiramente admirável nas ocasiões certas -, não era algo de que ele sentia saudades. Essa arrogância, que sabe que os dois compartilham, pode muito bem ser a causa da morte dela, e é o que mais o preocupa. No entanto, havia passado bons anos a ensinando a lutar e a se defender, e sabe que pouquíssimas pessoas conseguiriam vencê-la - especialmente se ela estivesse usando os poderes de verdade. Mas as tonturas, o jeito como o olhar dela ficou vago e enevoado mais cedo naquele dia... ele tem algumas perguntas a fazer.
- Porque você não fica aqui e tenta achar os outros e eu e sua namorada vamos atrás do papai? - sugere Diego.
- Ev não é minha namorada, é minha esposa - Cinco corrige, impaciente, alheio ao olhar de surpresa do irmão. - E se ela vai, eu também vou.
Evie apoia o queixo nos joelhos dobrados e fecha os olhos, tentando se concentrar em qualquer outra coisa senão o latejar persistente por trás de suas pálpebras, a cabeça doendo como se alguém pressionasse seu crânio com força. Era um pouco estranho ficar naquela posição usando um vestido, mas o short embaixo lhe propiciava certa liberdade. Ela fecha os olhos, um cronômetro invisível martelando em sua cabeça. Quantos apocalipses ela poderia tentar parar sem enlouquecer? A porta do carro se fecha e ela abre os olhos quando Cinco se junta a ela nos assentos de trás.
- O Diego já vem, só foi conversar com a louca lá. Convencer ela a não soltar Elliott ainda.
- Humm - ela faz. Vira o rosto para ele, mas não chega a abrir os olhos. - Ela é esquisita, e não só porque saiu de um hospício. Tem alguma coisa nela que me incomoda.
- Bom, vê se não fala nada pro Diego. Algo me diz que ele não vai ficar muito feliz em te ouvir falar mal da Lila.
- Eles se conheceram num sanatório - desdenha Evie. - Nem sei porque fiquei surpresa. É bem a cara dele.
- Tem que ver o Klaus então. Chapado 24 horas por dia, todos os dias da semana. Não ficaria surpreso se ele tivesse criado um culto.
A garota se vira para ele com um sorriso malicioso e um risinho aéreo.
- Acho que é sorte que seus irmãos sempre parecem surgir no momento certo. Pode tá tudo se acabando, mas eles brotam do chão logo no último minuto.
Cinco revira os olhos.
- Então vamos torcer para que não precisemos fazer tudo de última hora dessa vez.
Evie concorda.
- Ah, sim. Não me entenda mal, mas assim que conseguirmos uma folga, quero uma aliança de verdade.
Ele olha para ela, divertido.
- Só uma aliança? Sem festa nem nada?
Agora é a vez dela de revirar os olhos, e Evangeline se aproxima ainda mais, passando um dos braços pelo pescoço de Cinco e deitando a cabeça no ombro dele.
- Casamento é um documento, amor. Eu digo que você é meu marido então você é. E eu sou sua esposa. Estamos mais casados do que se tivéssemos assinado qualquer papel ou participado de qualquer festa de arromba. Agora, eu exijo uma aliança. Só isso. Faremos nossa cerimônia novamente, dessa vez com bolo e Frank Sinatra e seus irmãos como testemunhas. É tudo que eu peço. - A garota traça as linhas da palma da mão dele, assim como fizera naquela manhã para acordá-lo.
- Acho que podemos dar um jeito nisso - ele concorda, como a única resposta que pode dar, e beija a mão dela, sem deixar de olhar nos olhos de Evie; ela o abraça de lado, a cabeça encaixada no pescoço dele, como duas metades de um todo. Saber que tem uma pessoa no mundo que faria qualquer coisa por você e por quem você faria qualquer coisa, que iria até o fim dos tempos para garantir que você está bem, isso traz paz pra qualquer um. E Evie sempre achou fascinante como Cinco foi a primeira pessoa que a fez se sentir daquela forma.
A chegada de Diego no carro impede os dois de continuarem a conversa, e enquanto seguem em direção ao tal endereço, o silêncio perdura. Cinco não solta a mão dela em nenhum momento.
- É aqui - Diego diz quando finalmente descem do carro e se aproximam das portas do prédio. - D.S. Umbrella.
Evie se vira quando nota o marido, parado a vários passos de distância, como em transe.
- Tudo bem?
O garoto deixa escapar um suspiro antes de se juntar a eles.
- Tô, tô... É que...
- Há quanto tempo você não vê o coroa? - Diego pergunta, retirando uma das facas do bolso na tentativa de arrombar a porta.
- Quarenta e quatro anos.
- Que loucura.
- Fala sério - Cinco se encosta na parede do prédio, segurando a mão de Evie pelas costas, observando o irmão mexendo na fechadura.
Ela apoia a cabeça de leve no ombro dele, tensa pela escuridão da noite, até que uma ideia ocorre. O garoto quase não se move quando o sussurro familiar de Evangeline ecoa em sua cabeça. Eu posso verificar se tem pessoas por perto, sugere, mas ele sabe que quando as tonturas começam, o pior que ela pode fazer é se esforçar ainda mais. Então ele nega, e a voz em sua mente desliza para fora.
- Olha, quando eu tava preso lá no apocalipse - ele continua, como se nada tivesse acontecido - não passava um dia em que eu não ouvisse a voz dele na minha cabeça.
- E o que a voz dizia?
- "Eu te disse".
- É, mas se o papai tá aqui, ele nunca te viu na vida. Aí não dá pra dizer "Eu te disse".
Ele solta a respiração.
- Eu sei que ele vai dar um jeito.
Essa era outra coisa que eles não tinham em comum. Família. Evie era o extremo oposto em questão de sangue e sobrenome. Os Leatherman eram relativamente conhecidos no mundo literário e artístico, já que o pai dela, Rafael Álvarez, era um pintor cubano em ascensão, e a mãe trabalhava com comércio exterior, o que exigia certa rotina de viagens por aí. Quando Evie era muito pequena, ficava com o avô e a avó, e enquanto Peter, sete anos mais velho que ela, ajudava a avó na cozinha e no jardim, Evangeline se sentava com o avô e escutava as histórias dele, fascinada pelos contos da Segunda Guerra e pelos números marcados no braço de Anthony Leatherman. Escutava e escutava sobre os campos de concentração, os pogroms do Império Russo, os bisavós ucranianos que chegaram à Inglaterra sem nada além da roupa do corpo, separados dos irmãos que migraram à Costa Oeste dos Estados Unidos, onde foram assassinados no finzinho da década de '50 por - dizia-se - supremacistas brancos.
A infância dela era um borrão suave dos céus azuis e nublados de Oxford, o cheiro de tinta fresca no ar, comemorações intimistas do Hanukkah, discursos políticos e xingamentos a fascistas e sionistas em igual escala na mesa do jantar; os festivais ao redor do mundo do Rosh Hashaná com a família reunida e Tommy, o namorado de Peter, o pedindo em casamento na véspera do ano-novo judaico.
Evie adorava sua família. Adorava os Leatherman. Havia nascido em Havana, Cuba, durante um período em que sua mãe morara lá, e, segundo a própria, nem sabia que estava grávida, nem apresentava o menor dos sintomas - para começo de conversa, mal estava grávida no começo do dia. Simplesmente voltou para a Inglaterra três anos depois com mais uma criança segurando sua mão.
Quando ela se lembra da infância, também se lembra da sensação confusa que era sentir o que os outros sentiam - ouvir o que eles diziam sem que precisassem abrir a boca, mergulhar tão fundo na própria mente que se sentia à deriva, sem nenhuma bóia para se salvar. Certa vez, na escola, ouvira os pensamentos de um menino que insinuava que Peter era menos irmão dela por ser adotado; bateu nele até que ficasse roxo. Quando seu pai descobriu - sobre a briga, sobre as vozes -, comprou-lhe os primeiros fones de ouvido e se certificou que ela sempre falasse quando precisasse de músicas novas, de mais silêncio. E por um tempo, os pensamentos de estranhos em sua cabeça realmente pararam.
Até Nova York, quando olhou pela janela de seu mais novo quarto e descobriu que a vista dava justamente para o quarto de um garoto da sua idade, nascido no mesmo dia que ela, dotado de habilidades extraordinárias. Exatamente como ela. Um igual.
Agora ela o cutuca, indicando a fechadura com um aceno de cabeça. Cinco entende a deixa e salta espacialmente para dentro do lugar, destrancando a porta.
- Olha - Diego comenta. - Esqueci disso.
O "hall de entrada" parece quase vazio, impecavelmente limpo, mobiliado esparsamente, apenas o suficiente para ser considerado um escritório.
- A própria definição de "minimalista" - Evie murmura.
Cinco tenta ligar um abajur, mas a lâmpada apaga no momento seguinte, como se estivesse queimada - ou não fosse usada com frequência. O corpo da garota se tenciona novamente, já que uma das coisas que mais detesta é o escuro; se houver algum perigo à espreita, ela sabe que não vai conseguir se antecipar ou tentar se defender.
- O papai não era muito fã de decoração - Diego diz.
- Parece uma empresa de fachada.
- Fachada pra quê?
- Isso eu não sei.
- Eu vou pela esquerda - instrui Kraken. - Mas qualquer coisa, gritem.
O fantasma de um sorriso atravessa o rosto de Evie.
- Liderança inspiradora, Ego.
Diego pára, parte do corpo mergulhado na escuridão do corredor. Ele estreita os olhos para ela, embora o canto da boca se erga de uma forma quase divertida.
- É bom você parar com isso - alerta ele.
Ela ergue o dedo do meio.
- Quase levei o que você disse em consideração, aí lembrei que você é homem e desisti.
Diego vira as costas para ela.
- Eu lá sou Egito pra ficar aturando praga.
Cinco segura a mão dela novamente quando eles se viram para o corredor da direita. Evie fez muita coisa em sua vida, teve muitos nomes com o passar dos anos, e mesmo assim a única constância que teve foi o medo do escuro. A humilhação nunca para.
- Tudo bem? - ele sussurra, porque sabe o quão paranóica ela pode estar - e está de fato.
- Tudo bem - responde ela com um leve tom de desculpas. Fica aliviada que o garoto não pode ver o quão vermelha as bochechas dela ficaram por causa do medo infantil, muito embora Cinco seja o último a julgá-la.
Eles andam pelo corredor, tentando abrir as portas dos dois lados até que finalmente conseguem achar alguma destrancada. Ele tateia a parede até achar o interruptor, e a luz amarela pálida que se acende revela manequins estranhos, vestidos como pessoas de verdade e agrupados em uma sala mobiliada como uma família típica americana. No fundo, há um papel de parede de alguma rua suburbana genérica.
- Que lugar é esse? - murmuram em uníssono, se entreolhando.
Evie recolhe a própria mão com certa dificuldade, decidida a encerrar aquela visita o mais rápido possível, e tenta abrir as outras portas enquanto Cinco tenta as do lado. Nas poucas em que consegue, o cenário é praticamente o mesmo: mais manequins bizarros em cenários suburbanos de papel de parede e luzes amarelas piscando. Ela engole o nó na garganta e sopra a poeira de uma das mesas, verificando as pastas por perto, até que seus dedos finalmente encontram um envelope. "Sr. Hoyt Hillenkoetter e o Consulado do México em Dallas..."
- Cinco? - ela chama, sem tirar os olhos da letra cursiva.
- Sim, amor? - ele aparece na porta tão rápido quanto se tivesse se teletransportado, mesmo que estivesse na sala ao lado.
Evie mostra o convite. Hillenkoetter. Elliott gostaria de ver isso.
- Ainda bem que vestido e sapato é o que não me falta - comenta.
Cinco lê o papel muito rapidamente antes de guardá-lo no bolso do blazer. Eles estão quase na porta para ir embora quando escutam um barulho repentino nos fundos da sala. Evangeline vira a cabeça rapidamente, o corpo se retesando em pavor.
- Se tiver um Michael Myers por aqui, eu não respondo por mim - sussurra, agarrada ao braço do marido.
Ele balança a cabeça sem dizer nada, soltando a mão dela brevemente antes de se arrastar pelo espaço aberto em direção ao som. Isso não é uma boa ideia, Evie pensa. A pele dela pinica de desconforto quando um som quase animalesco chama sua atenção. Aquilo é... o guinchar de um macaco?
- Pogo.
Cinco continua, sussurrando gentilmente para o antigo amigo, e Evie se aproxima com passos cautelosos, ansiosa até demais com o chimpanzé filhote que só havia visto algumas vezes na vida.
- Oi. Tá tudo bem, amiguinho - ele tenta tocar no macaco, mostrar afeto de alguma forma. - Pogo, que bom te ver...
Foi bem rápido. Em um único golpe e com um guincho enfurecido, Pogo desce as unhas com toda a força no pescoço do garoto. Cinco grita de dor ao mesmo tempo em que Evie exclama o nome dele, e no momento em que consegue correr até ele, o chimpanzé já fugiu, estilhaçando o vidro da janela em um milhão de pedacinhos.
Ela se abaixa na altura dele, verificando os arranhões no pescoço de Cinco, respirando aliviada quando percebe que não são muito fundos.
- Eu tô bem, eu tô bem, Ev, não precisa se preocupar - ele insiste quando ela passa um lenço sobre os cortes, e sibila de dor quando Evie o dá um olhar duro e pressiona ainda mais o tecido na pele machucada.
- Como você espera que eu não me preocupe? Se eu fico longe por cinco segundos, você já se machuca! É como desejar que nunca mais chova - ela se justifica. - Impossível. Eu me preocupo porque te amo.
Ele suspira, mas algo em seu olhar se suaviza.
- Tudo bem, então. Esse Pogo nem sabe quem nós somos de qualquer forma.
Eles encontram uma piscina de sangue onde Diego deveria estar. Não há nada por perto além do luar pálido refletindo nos cacos de vidro espalhados pelo asfalto e o carro roubado, desaparecido. Cinco supôs que o irmão havia sido morto, talvez até por Pogo, mas Evie, com o pouco de esperança que lhe restava, tentou acreditar que ele havia conseguido ir embora, apesar de gravemente ferido. Diego pode ser irritante e muito mais cabeça dura do que sua versão criança, mas ainda é um amigo, e ela já ficou de luto por muito, muito tempo; não sabe o que fazer se tiver que repetir todo o processo novamente.
As perguntas de ambos foram respondidas no momento em que voltaram à casa de Elliott, antes mesmo de saírem da cozinha.
- Ah. Eu te disse que ele não morreu.
Lila está escarranchada sobre o corpo inerte de Diego, completamente nu exceto pelo lençol branco, enquanto cauteriza uma ferida profunda de adaga no estômago dele.
- Decepcionado? - pergunta ela, erguendo brevemente o olhar.
- Ah, em te ver? Claro que sim.
- Tanta hostilidade num pacote tão pequeno - Lila comenta. - Se cortou fazendo a barba? Te ensino a se barbear feito um rapazinho.
- Não. Encontrei um velho amigo da família - O tom de Cinco fica distante antes de perceber o homem adormecido, ainda amarrado à cadeira de dentista. - Você não soltou ele?
O tom da mulher é quase inocente quando fala:
- Era pra soltar?
O garoto a ignora, olhando para Evie enquanto ela dá um gole em uma xícara de chá fria e faz careta com o gosto.
- Vai me ajudar a soltar seu amigo aqui?
- Eu não - ela retruca. - Caso não se lembre, eu fui contra essa merda toda. Desamarra ele aí e inventa alguma desculpa pro Filme dos Frankel. Já dei todas as explicações que eu podia dar.
Ele não responde nada, mas arranca o pano da boca de Elliott e chuta uma das pernas da cadeira para acordá-lo.
- Vocês me amordaçaram! - o homem protesta, indignado, quando finalmente volta a si.
- Fique feliz que foi tudo que fizemos - isso pareceu calá-lo.
Evie vai até Diego, imóvel no sofá, enquanto Lila guarda tudo que usou para cauterizar o ferimento.
- E aí, carinha, como tá? - ela pergunta, quase carinhosa. - Como conseguiu isso aí?
Kraken a dá em resposta a melhor imitação de sorriso que consegue naquele momento.
- Eu vou ficar bem...
- Sim, graças a mim - Lila murmura.
- ... Eu tava lutando com o papai quando ele me esfaqueou - continua ele com uma careta, a ignorando. - E com as minhas próprias facas.
Evie sorri para ele, dando um tapa de brincadeira no rosto do amigo, cutucando um dos hematomas roxo-azulados que tem no rosto.
- É por causa de pessoas como você que o shampoo tem instrução de uso.
- É por causa dele que você disse que ficaria dez horas num palanque falando mal dos meus irmãos - Cinco adiciona.
- É, isso também.
- Eu queria falar com você.
Foi a pergunta que fez Evangeline gelar da cabeça aos pés. Ela para de escovar os cabelos por um momento, se encarando fixamente no espelho do banheiro enquanto escuta Cinco se mover no quarto, tendo apenas um vislumbre dele através da porta aberta. O coração dela acelera quando engole em seco.
- Como o Diego tá? - pergunta, porque não sabe o que dizer. Se arrepende imediatamente, ouvindo a própria voz sair rouca.
- Bem. Elliott deixou ele ficar com o quarto dos fundos. Lila vai ficar dormindo no sofá.
- Hum.
Sabe quando a gente às vezes percebe que tem alguma coisa errada com alguém, mas não sabe exatamente o quê? E quando a gente toca no assunto a pessoa age como se não tivesse a menor ideia do motivo da pergunta? Você fica se achando meio louco. Como se estivesse paranoico. Porque lá no fundo você sente que a pessoa que você ama não está bem. Mas parece bem. Parece normal.
É estranho como o silêncio de uma pessoa, a insistência em afirmar que nada está acontecendo, pode ser sufocante. E pode mesmo. Sufocante é exatamente a palavra certa para definir isso. Parece que a gente não consegue nem respirar.
Ela sai do banheiro com um mal-estar e um peso nos ombros, meio na defensiva. Não sabe porque está agindo assim exatamente, já que tecnicamente não fez nada de errado. Quase nada.
- Você ficou tonta quando tentou parar Elliott hoje mais cedo - Cinco começa, os olhos estreitos. - Tão pálida que parecia que ia desmaiar. Fica tomando essas pílulas pra dor de cabeça, e eu não te contei, mas ficou murmurando alguma coisa durante o sono, chamando por alguém. O que tá acontecendo, Evie? Porque não me conta?
Ela pode mentir. Pode simplesmente alegar que uma coisa não tem nada haver com a outra, que não é nada demais. Pode lembrá-lo que não havia comido de manhã, que nem deveria ter saído de casa por ser um sábado para início de conversa, ou ainda que os remédios servem simplesmente para isso, para dor de cabeça e para melhorar a cicatrização de seu braço, como havia dito antes, mas... Evie sempre foi uma boa mentirosa, desde criança. Mas ela jamais mentiria para Cinco, assim como ele nunca mentiria para ela. Aquele é o limite, aquela é a linha. E ela não vai quebrar a confiança da pessoa mais importante da sua vida.
- Você sabe que desde que eu tentei espelhar o Ben, nunca consegui usar meus poderes como deveria - ela diz lentamente, tentando pensar no que dizer. Se senta na beirada da cama por algum tempo, encarando o chão, até que sente que Cinco fez o mesmo, a mão apoiada no joelho dela. - Eu fico com essas... dores estranhas e tudo mais. Tem vezes em que não consigo nem pensar direito...
Ler mentes é um jeito muito simplificado de dizer o que se pode fazer quando se tem telepatia. A mente não é um livro aberto que alguém pode simplesmente chegar e ler. E ninguém fala sobre o quanto o controle é necessário, sobre o quão terrível é ouvir tudo, sentir tudo. Espelhar alguém, espelhar os pensamentos de alguém, é a coisa mais difícil e complicada que se pode fazer nesses casos. Mergulhar nas Profundezas, ter os batimentos cardíacos, as ondas cerebrais ao alcance... ou você aprende como lidar na marra ou enlouquece sem nunca entender a extensão do que é capaz de fazer.
E Evie tentou entender, quando mais nova. Havia aprendido que, em geral, os pensamentos das pessoas lhes ocorriam em tom semelhante ao da voz, e que não devia forçar seus limites, que todos têm um fluxo único de pensamentos - como um rio, como um lago cristalino ou como uma cachoeira. Uma coisa era permanecer no estado mais superficial, apenas com os instintos e vontades mais superficiais; outra completamente diferente era adentrar, penetrar a mente humana de verdade. Evie nunca havia tentado aquilo. Não com seu irmão Peter, por respeito, não com seus pais, por razões óbvias, não com sua irmãzinha Anne, que na época era apenas um bebê. E quando ela tentou, com Ben, deu tudo errado.
- Ainda tenho pesadelos com isso - ela estremece da cabeça aos pés, ainda lembrada da dor tão insuportável que mal conseguia gritar, o gosto acobreado do sangue em sua língua. - Bem, eu fiz de novo.
Um momento de silêncio.
- Você espelhou?
Ela confirma com a cabeça, lentamente, e a reação de seu marido é imediata. Ele se levanta, quase como se estivesse prestes a entrar em ação.
- Você quase morreu da última vez! - exclama. - Mal estava viva quando te encontramos!
Eles haviam a encontrado em uma poça de sangue ao lado do corpo convulsionando de Ben. Evie acordou em um hospital, ao lado de seus pais e irmãos, e só voltou para casa semanas depois.
- Shhh! - faz ela bruscamente, com medo de que os outros escutem. - Eu sei, tá legal? Já te disse. Eu... sonho muito com esse tipo de coisa.
Cinco fica em silêncio, esfregando a mão para cima e para baixo no braço dela. Evangeline não sabe dizer se é uma tentativa de conforto ou se é uma distração, algo que ele nem percebe que está fazendo. Apesar da conversa pesada, seu coração dispara.
A escassez de comida no apocalipse havia prejudicado o crescimento de ambos, é claro, já que eram apenas adolescentes. Evie devia ter sido mais alta, talvez até com mais curvas, se tivesse o que comer. Mas seu cérebro havia se desenvolvido direito; ou pelo menos ela esperava que sim. Em alguns dias, até mesmo pensar fazia sua cabeça latejar, como se uma área de sua mente estivesse para sempre danificada. Quase havia morrido na primeira vez, mas naquelas terras áridas do fim do mundo, quando a quietude de sua cabeça havia atingido um ponto preocupante, ela se desesperou, temendo que seu poder tivesse desaparecido para sempre. Cinco a acalmou, e, algum tempo depois, se tornou uma ocorrência comum que Evie ligasse a mente deles telepaticamente, apenas por um fio leve, para que pudessem se comunicar sem usarem a voz.
- Eu nem sabia o que tava fazendo até acordar - conta, sussurrando, perdida nas memórias. - Foi assim que soube dos seus irmãos por aqui.
Cinco olha para ela.
- Você sonhou com eles?
- Com Klaus, mais precisamente - responde ela, maneando a cabeça. - Mas achei que fosse algum delírio. Aí eu sonhei com a Allison, um ano depois, e... - dá de ombros - Sei lá. Acordei com a ideia de vir pra cá. Já tava indo de uma ponta da Califórnia a outra, então porque não o Texas?
- Sua missão foi por lá - uma pergunta sem o ponto de interrogação.
Evie confirma.
- Malibu. 13 de janeiro de 1959. E a sua foi...?
- Londres, 1993. Não sei o dia. Quando eu voltei, disseram que você tava morta.
Ela assente, desviando o olhar.
- Você fez isso de novo quando já tava por aqui? - Cinco pergunta. - Enquanto tentava achar meus irmãos?
- Uma vez, com Vanya, mas... bem, não deu muito certo. Por isso essa tontura e tudo mais. Aí eu só tentei ir do jeito tradicional mesmo.
- E vamos continuar dessa forma - ele afirma, sem espaços para discussão. - Nada de arriscar a vida dessa forma; não vale a pena.
Não importa quem você escolher para compartilhar sua vida, vai acabar se magoando. Isso está na essência de gostar de alguém. Não importa quem você ama, em algum momento vão partir seu coração. Cinco Hargreeves a deixou de coração partido um monte de vezes. E ela fez o mesmo com ele.
- Tem mais alguma coisa que aconteceu que você não me contou?
Ela quer revirar os olhos. Não é a primeira vez que seu marido a surpreende parecendo ser o leitor de mentes da relação, embora seja difícil não conhecer cada pedacinho da única pessoa que teve como companhia por anos e anos. Ela mexe nos padrões irregulares da roupa de cama como se tentasse arranjar mais tempo para reorganizar os próprios pensamentos. Não tem como haver intimidade sem confiança, isso é um fato. E ela confia em Cinco. Realmente confia. Então porque é tão difícil falar sobre?
- Eu... - começa, mas as palavras ficam presas em sua garganta. Não consegue. Ainda não. Ainda se lembra de tudo muito vividamente, de todo sangue, de todo o desespero. Ela balança a cabeça em negação, o lábio inferior tremendo.
- Tudo bem, tudo bem - Cinco se apressa em dizer, percebendo o estado dela. Evie nunca foi uma chorona, e não vai ser uma agora, mas apoia o rosto no ombro dele e suspira, trêmula, engolindo as lágrimas. - Não precisa me contar se não quiser, só... se lembra que eu tô aqui, tá legal?
- Eu quero - ela contrapõe, a voz abafada. - Você merece saber. Eu só... não consigo.
Eles se entreolham por um momento, e Cinco limpa as lágrimas que escaparam dos olhos dela.
- Ninguém vai te machucar enquanto eu estiver vivo, Ev. Isso eu posso te garantir. Você não está mais sozinha, então não precisa agir como se estivesse. Me diga quando estiver pronta.
Evie assente, ainda quieta, e aperta levemente as mãos dele em um gesto de conforto. Quando você ama alguém de verdade, às vezes a pessoa pode querer coisas que vão te magoar, mas vale a pena mesmo assim. Amar é perdoar, ter paciência e fé, e de vez em quando levar um murro no estômago. É por isso que é uma coisa perigosa se apaixonar pela pessoa errada. Amar alguém que não merece ser amado. Precisa ser alguém que mereça sua confiança, e você precisa merecer a confiança da outra pessoa. Isso é uma coisa sagrada. Evangeline nunca teve tolerância nenhuma com pessoas que não fazem valer a pena a confiança que depositaram nelas. Nenhuma consideração mesmo. Mas ele ainda merece saber do que aconteceu, então ela decide falar sobre algo que consegue no momento.
- Espera, espera - diz, fechando os olhos com força quando Cinco faz menção de se levantar. Espera um momento, dois, até ouvir as primeiras notas de We'll Meet Again, do Frank Sinatra, começando a tocar suavemente. - Tem uma coisa. Só... é importante.
Ele espera pacientemente que ela fale, e Evie prefere focar no ritmo calmante em que os dedos dele se movem sobre sua pele, causando arrepios, do que nas batidas irregulares de seu próprio coração. Sempre foi boa com jogos de palavras, em alterar o significado das coisas, minimizar sentimentos. Ela faz o mesmo agora.
- Se lembra de como a Gestora nos chamou na sala dela antes de sermos obrigados a nos separarmos?
- É claro que sim. Ela disse que como todos os outros agentes já estavam em campo e aqueles eram casos urgentes, não tínhamos outra opção.
- Bem, era mentira.
- É, eu já suspeitava.
- Pois é. Mas o ponto é que as maletas não explodem.
Por um momento, há silêncio. Cinco olha para ela, o semblante limpo de qualquer expressão.
- O que você...
- Ah, vamos lá, amor - ela diz em tom leviano, apesar dos olhos continuarem sérios. - Você realmente acha que foi tudo um acidente?
₍ 001 ₎ Olá, meus amores! Como estão passando? Como esperado, aqui está o terceiro capítulo! Já aviso que provavelmente o próximo vai demorar um pouquinho a sair, já que estou entrando na semana de provas e as coisas vão se complicar.
₍ 002 ₎ Caso tenham gostado, curtam e comentem e me digam suas teorias! Estou ansiosa para trazer mais capítulos, então nos veremos o mais cedo possível.
©lovingclare.
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