𝟶𝟷. NEW OLD FRIENDS.
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ERA DIFÍCIL NÃO SENTIR QUE NOVA YORK ERA O LUGAR. Evie ansiava em voltar havia pelo menos quarenta e tantos anos, desde que sua família morara lá, no finzinho do ano de 2001 – na época, seu pai Rafael estava começando a emergir no mundo artístico e literário e sua mãe, Ada, queria mais estabilidade na criação e na educação dos filhos, já que Peter, o mais velho com dezenove anos recém completos, havia conseguido uma vaga na NYU e Evangeline vinha se recuperando do choque de perder sua melhor amiga de uma forma tão brutal que precisava de solo firme sob os pés.
Mas o que fascinou a garota naquela época não foram as tecnologias despontando, o dinheiro que rolava pelas ruas do Upper East Side, nem o glamour das boutiques de moda em cada esquina – foram os encontros que seu pai fazia semanalmente com artistas e escritores e políticos, as histórias de seu irmão sobre a universidade e a forma como ele falava com carinho sobre o namorado Tommy, o jeito como cada esquina se enchia de vida e cultura e permanecia assim até muito depois do pôr do sol. Quando o mundo inteiro dormia, Nova York permanecia acordada. Mas, acima de tudo, era a forma como ela era invisível lá, até mesmo no colégio judaico. Havia gente demais por lá para reparar nela o tempo todo.
Era o tipo de lugar que você levava anos para conhecer, e, ainda assim, parecia sempre haver uma nova ruela, uma nova escadaria, uma nova porta.
Dallas também tem isso, mesmo que em uma dose muito menor para 1963.
Talvez seja por isso que Evie demorou tanto para encontrá-la.
Afastada do meio-fio e situada ao fim de um curto lance de escadas, há uma loja quase encoberta pelas fachadas da rua. O toldo que sem dúvidas já foi roxo, desbotado há muito tempo para um tom acinzentado, embora o nome da loja, em branco, ainda esteja legível – Shakespeare & Co., uma homenagem discreta à Sylvia Beach e à admiração que a dona do sebo tem pela mulher, tanto pelo peso do nome no mundo literário quanto pelo safismo discreto que ambas compartilham.
— Isso aqui não é uma biblioteca — avisa Cecília atrás do balcão assim que Evangeline entra, sem olhar duas vezes para a garota. É a forma dela de dizer “bom dia”. — E nem uma loja de discos.
Evie responde com seu familiar sorriso de gato Cheshire e assume seu lugar na costumeira poltrona de couro ao lado de uma das estantes, começando a folhear um exemplar surrado de guia de arte neoclássica que não tem a menor intenção de comprar. Frequenta o sebo há pelo menos dois anos, e se sabe de algo, é que Cecília Sanchez não vai expulsá-la. Elas são parecidas demais, compartilham os mesmos gostos, e apesar de não serem exatamente íntimas, têm certa conexão.
A livraria é um labirinto de pilhas e prateleiras, com textos amontoados em duas ou até três pilhas de profundidade – um aglomerado de couro, papel e madeira. É o seu tipo preferido, daquelas em que você pode facilmente se perder. Evie faz uma pausa na seção de biografias, estudando todos os eus, meus e comigos, pronomes possessivos para vidas possessivas, pensando distraidamente sobre o privilégio que é contar a própria história, até que se contenta em pegar um exemplar de Bonequinha de luxo e um disco de Elvis Presley, apenas porque não consegue viver sem música.
Cecília já está terminando de atender o último cliente enquanto Evie ajusta a vitrola, e, apesar da Shakespeare & Co. já estar aberta há algumas horas, o lugar todo parece ganhar vida com as primeiras notas de Can’t Help Falling in Love. Até Buttercup, o gato amarelado que se esconde entre as estantes e só sai para comer, surge momentaneamente, se espreguiçando com toda a calma do mundo e se enrolando aos pés de Evangeline. Fred, o irmão mais novo de Cecília, costuma brincar sobre como a loja é deles, dos Sanchez, mas parece pertencer à garota, e ela sorri sem jeito em resposta, porque não consegue pensar em nada para retrucar. O irmão dela, Peter, dizia que o destino de todo mundo que trabalha em uma biblioteca é se tornar escritor, mas Evie nunca quis se tornar romancista; simplesmente prefere contar suas histórias através da música, ouvi-las e admirá-las.
— É aí, o que você achou? — pergunta Cecília quando o cliente vai embora. Está parada ao lado da poltrona, e se abaixa brevemente para fazer carinho atrás das orelhas de Buttercup esparramado no tapete. O animal não é de nenhuma das duas, mas poderia ser, já que a dona nunca apareceu e Elliott gostaria de ter um gato tanto quanto Evie.
Ela retira um livro da bolsa e o entrega à Sanchez com desprezo, como sempre faz quando uma obra a decepciona.
— É uma merda — diz por fim. — Nos últimos dois meses, eu só li merda. Nem invente de colocar isso aí como pauta no clube do livro, vai todo mundo morrer de desgosto.
— Eu te disse que é uma porcaria — Cecília fala, parecendo achar graça nos maneirismos da garota. — Eu te disse e você quis ler mesmo assim.
— Você falou porcaria — Evie vasculha a bolsa à procura dos petiscos para gato antes de deixar que Buttercup os coma. Ele ronrona satisfeito em em colo. — Sempre tem algo que vale a pena em uma porcaria. Já peguei um monte de livros medíocres pra ler e saí com um ou outro ensinamento sobre alguma coisa qualquer. Isso aí — ela aponta — é uma merda.
Cecília bebe um gole do suco de laranja batizado com vodca e joga o manuscrito de lado.
— Certo. Agora, enquanto aquela discussão sobre os clássicos…
— São sempre uma aposta segura — reafirma Evie. — Vai de Jane Austen ou Mary Shelley. Tudo bem que uma votaria pra jogar a outra na fogueira, mas serve. Júlio Verne ou o Kafka, quem sabe.
Sanchez meneia com a cabeça, considerando a ideia, e dá mais um gole no suco. Promete que vai pensar no que disse, mas a garota sabe que Cecília já está pensando em alguma obra de Virginia Woolf ou de Oscar Wilde para o clube do livro que realiza todas as quartas-feiras ali no sebo. Sempre admirou os autores gays, e via neles uma inspiração para si própria, como um incentivo pessoal para que tomasse coragem e conseguisse publicar suas obras. Evangeline espera poder viver para ver a publicação dos tais livros, mas se o registro de internação de Diego Hargreeves servir de indicação para algo, talvez seu período em Dallas esteja chegando ao fim.
Conforme a manhã passa e novos clientes chegam, Evie permanece na mesma poltrona, recebendo olhares casuais de adultos confusos sobre porque uma garota de quinze anos não estaria na escola e, ocasionalmente, de gratidão, quando ela ajuda a encontrar algum livro ou álbum que procuram. Estava ocupada indicando Da Terra à Lua para um homem que buscava o melhor presente para a esposa quando Fred, que normalmente se ocupava estudando no estoque, aparece com uma cara irritada e declara que Elliott está no telefone.
— Oi, Ray, como vai a esposa? — diz Cecília quando se aproxima, abraçando o amigo de lado. — Pode ir, Libby, eu termino de atender o sr. Chestnut aqui.
Evie reprime um suspiro. Ela não se chama Elizabeth, mas é o nome que está usando há dois anos ininterruptos. Mary Elizabeth Lovelace. Uma forma desesperada de tentar manter alguma ligação com sua antiga vida, de desenhar por cima das linhas. Manter as iniciais originais de seu nome de batismo parece uma maneira porca, mas ainda é sua única opção. Só lamentava não ter escolhido algum sobrenome com “H” em uma ode ao marido.
No telefone, Elliott parece… estranho. O que para ele é o normal, é claro, mas a forma distante como fala preocupa a garota. Ela se senta em cima de uma pilha de edições de O retrato de Dorian Gray e apoia o rosto no joelho, escondida dos olhares no estoque.
— Elliott?
— Acho que agora é oficial — diz o homem do outro lado da linha com a voz aérea. — Os papéis chegaram.
— Ah.
Evie fica em silêncio por um momento, tentando buscar pelas palavras certas a dizer. Suas habilidades sociais estão enferrujadas há algum tempo, mas ela sabe reconhecer uma situação delicada quando vê uma.
— Você quer… falar sobre isso? — pergunta desajeitada, brincando com um fio solto da suéter azul. A ponta de seu sapato Mary Jane de salto baixo está arranhada, mas a meia-calça branca permanece impecavelmente limpa. — Quer que eu volte pra casa pra gente conversar?
Ele é rápido em responder.
— Não, não precisa. Você demorou muito tempo pra se animar e ainda mais pra sair de casa. E a Cecília ia me matar se você voltasse antes do turno terminar.
Evangeline sorri com carinho, muito embora Elliott não possa ver. Foi assim desde o começo, há mais de dois anos. Uma alma reconheceu um semelhante assim que avistou.
— … Mas eu já ia te perguntar se você sabe se a sinagoga tá aceitando doações. Não quero… sabe… ter um monte de coisas dela em casa à toa.
As mangas da suéter azul quase engolem as mãos de Evie, já que ela comprou a peça duas vezes maior do que a que normalmente usava na esperança de cobrir as piores partes da grande queimadura em suas costas que se estende até o cotovelo em um dos braços. Com aquelas mangas compridas e a gola alta escondendo a maior parte de seu pescoço, poucas marcas ficam à mostra, finas como gavinhas. Preso logo acima do coração dela, o broche de metal com as pedrinhas azuis.
— Provavelmente, mas vou checar, já que não vou lá há algum tempo — murmura ela. — Mas a Eleanor não vai querer tudo de volta?
— Talvez — Evie consegue visualizá-lo dando de ombros. — Mas vou entregar mesmo assim. Robert pode comprar quantas roupas novas ela quiser.
— Certo — ela ri, embora não veja graça na situação. Então tenta arriscar: — Amanhã a gente leva tudo pra lá. Aproveita que é sábado e tal. Aí se você tiver se sentindo melhor, eu faço uns bolinhos de matzo, ou compro um bolo de maçã e mel.
— É, pode ser. A gente pode tentar. Obrigado, Libby. Conversar com você sempre me anima um pouco.
— De nada. Somos amigos, não é? Amigos sempre podem contar um com o outro pra tudo.
Há uma teia no teto. Uma mosca presa nela tenta se soltar enquanto a aranha se aproxima, mas não consegue, não importa o quanto se esforce. Presa. Sem perspectivas de fuga.
— Amigos contam tudo um pro outro — ele fala, meio afirmando, meio duvidando.
— Nisso eu não acredito — Evie brinca, com o coração apertado. — Nem por um minuto. Mas é sério, Eli. Tenta sair de casa um pouco hoje. Pode vir aqui na livraria se quiser, pra dar uma olhada. Deve ter algo que te agrade.
Há o ruído de estática do outro lado da linha enquanto ele pensa, mas ela já sabe o que Elliott vai dizer. Está obcecado demais com as aparições em luz azul – que ele acredita serem “alienígenas” – que surgiram logo atrás de casa, no beco, para se ocupar com qualquer outra coisa. As fotografias pixeladas presas nos quadros e os recortes de jornais por toda parte são provas. Mas está tudo bem para Evangeline. Ela mora com ele por causa disso, buscou por ele por essa razão.
— Você não devia se preocupar com esse negócio da Eleanor — diz ele por fim. — Vai passar. Eu já passei por coisa pior.
Elliott serviu durante a Segunda Guerra, dezoito anos atrás. É a isso que se refere. Não foi para a linha de frente, já que o consideravam fraco demais para empunhar um rifle, mas ele viu a destruição. Viu a situação dos campos de concentração. E o pai dele, Mortimer Gussman, serviu durante a Primeira Grande Guerra. Foram uma geração de fodidos atrás da outra.
Em certo sentido, Evie se surpreende com o coração aberto de Elliott. Não é preciso ser um gênio para saber que ele não teve uma infância exatamente fácil, ou que seu pai, um veterano de guerra traumatizado, não conseguia expressar afeto da maneira certa – ou a que seria considerada certa para os padrões da primeira metade do século XX. E mesmo assim ele vive a vida com uma sede de conhecimento admirável e uma mente surpreendentemente aberta para a década em que vive; não subestima as pessoas porque já viu do que elas, sob a dose certa de disciplina e ódio, são capazes de fazer com o próprio povo. É fácil lidar com ele. É tranquilo. E ele nunca tenta comparar tragédias alheias. É o que se faz após experimentar uma coisa horrível. Buscar alguém como você… ou que esteja pior do que você… para tentar se sentir melhor. E Elliott não é assim.
— Bem, se você quiser dar uma passadinha aqui, tudo certo — ela insiste, espiando a loja pela brecha da porta. — Se precisar de alguma coisa, liga, mas se lembra de desligar as vozes da cabeça rapidinho pra me ouvir, tá legal? Tá na hora de tirar o cérebro do cu e colocar ele no crânio novamente, só enquanto eu tô fora. Avisa se tiver alguma aparição dos tais alienígenas. E tenta não explodir a casa.
E ele promete que vai tentar.
Existe um certo ritmo para quem anda no mundo sozinha. Você descobre quais são as coisas sem as quais pode ou não pode viver, as necessidades mais básicas e as pequenas alegrias que definem a vida de uma pessoa. Não se trata mais da comida, já agora a possui em abundância ao seu redor, nem do teto sobre a sua cabeça, já que dorme e acorda sob um todos os dias – agora é tudo questão de tudo o que te mantém sã. Que te traz alegria. Que torna a vida suportável.
Uma vida sem arte enlouqueceria qualquer um, isso é fato. Todo mundo precisa de sua própria forma de contar histórias, desde livros à poesias ou desenhos, e às vezes tudo que alguém precisa é de um pouco de gentileza – ou um tapa na cara, quem sabe. Para Evie, uma vida sem música é impensável; é a forma dela de se sentir melhor consigo mesma. E, em dias muito ruins, quando os pensamentos das pessoas parecem uma cacofonia de vozes ecoando em sua cabeça, tudo fica mais suportável com Frank Sinatra tocando ao fundo.
Agora, enquanto ajuda Cecília a atender os clientes do sebo, pensa no pai e nas suas pinturas, na maneira como ele escolhia os melhores pincéis e depois as telas. Ele sabia como misturar cada tinta até encontrar o tom perfeito para o que quer que fosse; e também sabia quando tinha exagerado. Um quadro feito no dia do próprio casamento como um presente para a esposa e uma pintura por ano, registrando o crescimento dos filhos. Mas Evie teve quatro anos sozinha, experimentando uma solidão que nunca pensou que teria, com tempo até demais para deduzir algumas verdades essenciais sobre si mesma, para aprender quais são as coisas sem as quais não pode viver.
Foi isso que estabeleceu: não precisa matar ninguém (a Comissão pensa que ela está morta desde o incidente com a maleta que a levou para lá em primeiro lugar). Não precisa se esconder de ninguém (é Dallas, 1963, e ninguém ouviu falar dos Leatherman ainda, nem sabem quem ela é). Não precisa usar seus poderes em ninguém (é incômodo até para ela).
Mas uma vida sem música a deixaria louca. Já ficou louca uma vez.
Ela pede licença rapidamente muito depois da hora do almoço para organizar os álbuns nas prateleiras e colocar In the Wee Small Hours para tocar, uma enxaqueca começando a martelar em sua cabeça. Seus pensamentos estão começando a ficar confusos, e Evangeline se pergunta, pela milésima vez, quanto tempo vai ter de esperar até descobrir o paradeiro de todos os Hargreeves.
Seu avô, Anthony Leatherman, sempre havia alertado sobre a importância de preservar histórias e de respeitar as identidades das pessoas, e, entenda, não é que Evie não queira manter o seu nome intocado. Ela só não pode. Não se quiser continuar viva. A Comissão já pensa que ela está morta, mas qualquer mínima interferência no continuum espaço-tempo arruinaria toda a persona que criou. Maya Evangeline Leatherman. Continua sendo ela, lá no fundo. Mas agora é uma nova tarde, em um tempo que não é o seu, em uma cidade que não é a sua, e Evie sabe que a única forma de continuar seguindo em frente é com sua nova vida, torcendo para que seus cunhados estejam em segurança. Então, pelo menos por agora, ela será Mary Elizabeth Lovelace.
Ela volta a atenção para um dos cadernos que levou consigo na bolsa, tentando descobrir como poderia adivinhar o paradeiro dos outros Hargreeves. Luther, Diego, Allison, Klaus, Vanya, Cinco… Cinco. Apenas a mera ideia de que, depois de tanto tempo, podia finalmente reencontrar seu marido e seus cunhados, faz o estômago dela embrulhar de um jeito muito bom. Claro, jamais seria como antigamente, quando todos ainda eram crianças e Evie era apenas a vizinha do outro lado da rua. Ela jamais teria como esquecer a imagem dos corpos deles no apocalipse, muito menos a solidão angustiante dos anos seguintes e o medo constante de perder Cinco. Naquela época eles só tinham um ao outro, e na Comissão foi a mesma coisa, e então de repente…
Descobrir que as crianças que havia conhecido décadas atrás estavam vivas e, de alguma forma, presas no mesmo lugar que ela, serviu como um choque de realidade e também uma renovação de esperanças.
Agora, com os dedos sujos pela tinta da caneta-tinteiro, ela aproveita o vazio do sebo e tenta adivinhar novas formas de encontrar os outros. As rasuras aumentam nas páginas, tinta preta manchando seus dedos. E por algum tempo, ela desaparece, mergulhada nas possibilidades, tentando fazer as pazes com o Tempo que havia perdido nos últimos meses. Veja, ideias são como trens em movimento. E certas pessoas como Evangeline não podem se dar ao luxo de sair dos trilhos. Você vê um rastro, o segue, e quando o perde de vista, pensa que pode estar enlouquecendo de vez; e então surge o próximo e o próximo, e você se agarra neles com todas as suas forças, como uma âncora que te impede de afundar.
Foram mais de mil dias desde que Evie viu seu marido pela última vez, e mesmo assim nunca se esqueceu dele. Evie Leatherman realmente esperava nunca esquecer Cinco Hargreeves.
Três horas se passam e ela continua no mesmo lugar. Não percebe o tempo se arrastando à sua volta, apenas assimila a escassez habitual de clientes naquele horário específico. Cecília não a incomoda, Fred muito menos. Permanecem os três em seus respectivos mundinhos, ocupados demais em seus afazeres, e Evie só se levanta quando decide trocar o disco. Ela se estica e se espreguiça, e se perde nas estantes mais uma vez, momentaneamente distraída por uma coleção de globos de neve. A sineta que anuncia um novo cliente toca enquanto ela tenta se decidir entre Only the Lonely e Nice ‘n’ Easy, mas o som é rapidamente abafado pelas prateleiras, e Evangeline está prestes a se virar e verificar se Fred ou Cecília estão por perto caso o visitante precise de ajuda. A intensidade do olhar no estranho, no entanto, a faz encará-lo, seus olhos se encontrando diretamente com os dele.
E Evie perde o fôlego.
Na primeira vez em que eles se conheceram, ambos mal tinham completado doze anos. Evie se lembra das coisas naquela época – as conversas até tarde, fugir de madrugada para perambular pela cidade, momentos roubados de duas vidas completamente diferentes. Na última vez que se viram, mal tiveram tempo de compartilhar um beijo, apenas um rápido “Até breve” que se provou mais longo do que qualquer um dos dois esperava.
Evie Leatherman não tem como se esquecer do homem – e do garoto – com quem compartilhou a vida. Como ela poderia ter esperado que quatro anos pudessem apagar todos os últimos quarenta? Não tinha como. Realmente não tinha como. Não quando uma parte dela sempre estaria com ele.
Evie sonhou com isso, esperou, delirou, com a mera possibilidade de Cinco descobrir que ela estava viva, de ir atrás dela, de ambos se encontrarem, e… e… uma parte dela agora se pergunta se toda a situação não é algum tipo de alucinação, porque não há chance, de forma alguma, de seu marido estar parado a menos de três metros de distância. Os barulhos da rua são abafados a cada passo que ele dá em sua direção, e Evie percebe que não é a única que treme.
— Aqui está você — Cinco diz finalmente, parado bem na frente dela. Os olhos continuam exatamente iguais, do tom perfeito de verde que Evie sempre adorou, embora aparente ter não mais que quinze anos, como ela. É como se tivessem voltado a Nova York, quando ainda eram adolescentes de verdade. — Eu estava procurando por você.
— Você está atrasado — ela responde com a respiração trêmula. Aperta o plástico do disco em suas mãos com tanta força que machuca a palma, cravando as unhas na carne. Não é, de jeito algum, o que planejava dizer a ele depois de tanto tempo, mas assim como o resto de sua vida, nada parece ir conforme o planejado. — Tenho a impressão de que seus irmãos diriam a mesma coisa.
— Peço desculpas por isso — replica ele, parecendo lamentar de verdade. — Sei muito bem que não foi nenhum pouco educado deixar minha esposa esperando.
Evie ri. Cinco sorri. Ela hesita antes de abraçá-lo, de tocá-lo, com medo de dar um passo em falso, de fazer algo de errado, e então tudo acabar e ela estar sozinha novamente. Mas é a forma como ele a chama, a forma como diz aquela palavrinha – esposa, esposa, esposa – que a impulsiona. O primeiro contato físico de pele contra pele é real e envia um choque de eletricidade pelo corpo dela, e por um momento tudo desaparece ao redor, os últimos meses dissolvidos naquela névoa distante de medo e solidão.
— Você está aqui — ela murmura, o rosto escondido no pescoço dele. Precisa se esforçar muito para não começar a chorar copiosamente. — Está realmente aqui.
— Pensei que você estivesse morta — sussurra Cinco, os braços envolvendo a cintura dela com força. — Pensei que tinha te perdido de verdade.
Eles se afastam um pouco, apenas o suficiente para conseguirem olhar um no olho do outro. Agora Evie não consegue deixar de sorrir, porque ele está ali, de verdade mesmo, e ela sabe que não precisa mais se preocupar. O que quer que esteja errado, sabe que vai conseguir resolver com ele ao seu lado.
— Quando você chegou? — pergunta ela, se questionando porque Elliott não ligou avisando sobre a nova aparição em azul.
Cinco meneia com a cabeça.
— Hoje, algumas horas atrás — os olhos dele nunca deixam os dela, as mãos ainda apoiadas na cintura de Evie. — Surgi no beco de trás da casa do seu amigo lá, o louco dos OVNI’s.
Evangeline esconde o rosto nas mãos, parcialmente envergonhada.
— Ai. Você conheceu o Elliott?
— Aham. Foi ele quem me disse que você devia estar aqui.
Ela revira os olhos.
— Bom, se você vai ficar conosco por enquanto, vou ter muita coisa pra esclarecer pra ele — conta, quase tímida. — Menti sobre muita coisa.
São as palavras dela que trazem Cinco de volta à realidade, embora não pareça tão ruim assim quando colocado em perspectiva. A presença de Evie já basta para aliviar um pouco do peso em seus ombros.
— Há quanto tempo você tá aqui?
A garota suspira, balançando a cabeça.
— Isso não importa.
Ele franze a testa, confuso, e se aproxima ainda mais, colando o corpo contra o dela. Evie se distrai momentaneamente, deslizando os braços ao redor do pescoço dele.
— É claro que é. Eu pensei que você tava morta até pouco tempo atrás, e nunca me disseram quando seria sua missão.
— Eu ainda não vou te contar — ela insiste, firme em sua decisão. — Você vai ficar se culpando, como sempre faz, e essa devia ser uma ocasião feliz.
A expressão dele cai, e Cinco se pergunta momentaneamente o quão irritada Evie ficaria em ser deixada de fora da situação. A ideia de deter o fim do mundo nunca foi nova a nenhum dos dois, mas seria a primeira vez na prática em que ela se arriscaria naquele nível. Egoísta como sempre foi, ele continua:
— Mas não é. Uma ocasião feliz, quero dizer. Não consegui… — Cinco suspira — Não consegui parar o apocalipse em 2019, Ev. E ele nos seguiu até aqui.
O corpo inteiro da garota se retesa com a informação, e de repente as prateleiras do sebo parecem se fechar ao seu redor, a sufocando lentamente. Sua voz é quase incrédula quando sussurra:
— O quê?
— Eu sei — Cinco concorda, relutante. — Temos dez dias e eu não tenho ideia de como impedir isso.
Ela esconde o rosto entre as mãos, respirando fundo, tentando abafar os flashbacks que surgem em sua mente. O zumbido em seus ouvidos aumentam, e ela se agarra na estante atrás de si para se equilibrar.
— A mesma coisa de antes? — indaga, mesmo já sabendo a resposta. Ao seu redor, tudo parece soar como se estivesse debaixo d’água apesar da secura de sua garganta, mas Cinco apoia a testa na dela e Evie se concentra no padrão da respiração dele como forma de estabilizar a sua própria. Um dos pequenos truques que aprenderam algum tempo atrás.
— Em resumo, sim.
Por um breve momento, silêncio.
— Certo — ela decide bruscamente, embora nada esteja bem. Quando consegue olhar novamente nos olhos do garoto, tenta passar o máximo de firmeza possível. — Certo — repete. — A gente vai dar um jeito, como sempre. Só… — respira fundo uma, duas, três vezes. Não é hora de ter um ataque de pânico; pode muito bem esperar alguns dias para isso. — Me dá um segundo, certo?
Evie ignora o olhar confuso do marido e sai à procura de Cecília, a encontrando passando alguns discos na caixa registradora e entregando-os para um senhor mais velho. Espera até que o cliente finalmente vá embora para se aproximar e se despedir, mas Cecília não esboça reação, apesar da leve ruga que surge entre as sobrancelhas; não faz perguntas demais. Tem uma espécie de olhar penetrante, que dá a impressão de ler todos os seus pensamentos, e parece entender qual é a situação assim que Evie menciona “problemas de família” como o responsável por sua saída mais cedo e possível ausência nas próximas semanas.
— Oh — é a reação dela. Não diz mais nada, e simplesmente puxa algumas notas de dólar de dentro da caixa registradora. — Toma aqui. Pelo tempo que você ajudou a gente.
— Obrigada, Lia — Evie balbucia, ainda meio letárgica. É preciso reunir um esforço enorme até para sorrir. — Eu vou tentar passar aqui quando tudo se organizar, juro.
Sanchez sorri.
— Espero que sim, Libby. Buttercup vai sentir saudades, e eu também. Boa sorte com o que quer que seja. E cuidado por aí.
E Evie promete que vai se cuidar.
Quando sai da loja, o sol já começou a se pôr e Cinco está se impacientando. Mas é a visão dele ali – realmente ali, quente ao toque –, esperando por ela que consegue lhe arrancar um sorriso verdadeiro que ofuscaria até as estrelas.
— Sei onde Luther e Diego estão — avisa ela assim que começam a caminhar pela rua, de mãos dadas, a sensação tão boa e familiar que Evie sente certa calmaria, mesmo sabendo o quão alarmante são as notícias. — Klaus está fazendo sei lá o quê lá na puta que pariu e ainda não achei nada a respeito da Allison ou da Vanya, mas tô trabalhando nisso.
— Eu já visitei Diego — Cinco faz careta. Eles poderiam ter se transportado diretamente para a casa de Elliott, mas queriam colocar a conversa em dia. O garoto acha que, depois de ter passado meses enlutado pela esposa que nem havia morrido, merecia uma ou outra regalia. — Não que tenha sido surpresa descobrir que ele tá internado em um hospício. Continua o mesmo idiota de sempre.
— Quanto a isso eu já não posso opinar — Evie dá um apertão tranquilizador na mão do marido, tentando demonstrar conforto. — Agora o Luther… bom, esse imbecil tá trabalhando pro Ruby.
— O quê, o Jack Ruby? — a incredulidade no rosto de Cinco é tão palpável que Evangeline reprime uma risada. — O cara que atirou no Oswald?
— Esse mesmo. Vai pegar meio mal pros judeus daqui quando a merda toda rolar, mas acho que faz parte. Tinha que ver, o maluco doando fundos e mundos pra uma das sinagogas aqui e atirando na cara de sei lá quem na mesma noite. E o Luther lá, bancando o durão.
Eles se entreolham, sorrindo, mesmo que não haja graça nenhuma. Porque é assim que você caminha até o fim do mundo, não é? Um dia engancha no outro e depois no outro até que você perca a noção. Não existe nada que você possa fazer além de continuar vivendo seus dias da única forma que consegue. Eventualmente você segue em frente, mesmo que não queira. Eventualmente você não tem opção senão se agarrar nas menores coisas para se manter são. É o que eles, Evie e Cinco, sempre fizeram. Se tornou um hábito a longo prazo tentar achar algo para dar risada.
Eles ficam bem a partir daí.
· * ˚ ·
EDITADO E REESCRITO EM 27/07/24
₍ 001 ₎ Olá, meus amores! Como estão passando? Me perdoem por esse capítulo loooongo e massante, eu tentei enxugar o melhor que pude, já que esse em específico deveria ser a introdução do que é a vida da Evie antes de tudo começar de verdade. Enfim, espero que continuem comigo, porque a partir daqui… bem, a partir daqui a história seguirá o rumo da segunda temporada em diante.
₍ 002 ₎ Caso tenham gostado, curtam e comentem e me digam suas teorias! Estou ansiosa para trazer mais capítulos, então nos veremos o mais cedo possível.
©lovingclare.
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