𝖨𝖭𝖳𝖤𝖱𝖫𝖴𝖣𝖤 𝖨𝖨: THE FACE OF DEATH.
ⵈ━══════ ☂ ══════━ⵈ
ELLIOTT GUSSMAN NUNCA HAVIA PENSADO DEMAIS EM COMO IRIA MORRER. Pelo menos, não nos últimos meses, quando estava ocupado demais com sua rotina enfadonha, suas teorias alienígenas e em animar sua melhor e única amiga – o que incluía manter os pensamentos dela o mais diametralmente oposto a ideias que sequer se aproximassem do conceito de morte. Mas mesmo que tivesse se dado a esse trabalho, mesmo que tivesse refletido sobre qual possivelmente seria a causa de seu falecimento, certamente não imaginava que “assassinado por dois suecos gigantes” seria uma das opções.
Mas com certeza seria uma ideia agradável de se ter – a de morrer no lugar de outra pessoa que ele se importava. Nobre, até. Ele não acreditava em Deus desde que voltara da Segunda Guerra, mas aquilo deveria ser levado em consideração para algo.
No momento em que olhou nos olhos de Evangeline Leatherman – na época ainda Elizabeth Lovelace –, Elliott percebeu que havia encontrado uma alma gêmea. Não no sentido romântico, é claro, mas sim espiritual – ou qualquer outro nome que as pessoas pudessem dar a esse tipo de coisa. Não era amor, embora as amizades sempre dependessem de uma boa dose de tal – se tratava de confiança. Não existe intimidade sem ter confiança. Ele acreditava nisso, porque com certeza descrevia parte da conexão que sentia com ela.
Quando os olhos dele encontraram os da garota, sentada na escadaria da loja de televisores, pacientemente esperando o retorno dele do mercado, Elliott sentiu um estranho calafrio, como se tivesse encontrado alguém que o compreendia. Uma alma levemente semelhante a sua, o observando com olhos azuis surpreendentemente sombrios. Na época, Evie parecia não ter mais que treze anos, talvez, e apesar da magreza condizente a alguém que não teve o que comer durante bons meses, algo na expressão séria e meditativa dava a impressão de ser muito mais velha do que seu corpo. Ela se levantou no momento em que percebeu que era ele quem esperava, é claro, e ele a convidou para entrar, preocupado com as saliências dos ossos visíveis através das roupas obviamente grandes demais. Ele a fez se sentar e comer, a deu roupas novas e um banho decente; mas quando Elliott riu com ela de uma piada engraçada no rádio, toda a seriedade se dissipou; o rosto dela pareceu se iluminar, como se uma lâmpada tivesse sido acesa subitamente dentro dela, irradiando luz da cabeça aos pés. Com aquela rápida troca de sorrisos, eles cimentaram aquela amizade enquanto durassem, antes mesmo de realmente decidirem confiar um no outro.
Elliott devia ter tido uma irmã. Sua mãe estava grávida, mas morreu antes de conseguir dar à luz, e ele, na época ainda um garoto, sempre se perguntou o quão diferente sua vida seria como um irmão mais velho. Com Evie, ele teve essa oportunidade – não a via como uma filha, já que nunca desejou ter crianças, mas sim como a irmã que nunca teve. Então ele cuidou dela como tal.
— E a sua família? — perguntou certo dia. Durante semanas Evie se manteve presa no quarto de hóspedes, assombrando o cômodo como se fosse um fantasma, como se já estivesse morta a muito tempo e apenas seu coração continuasse batendo; aquela era a primeira vez que conseguia convencê-la a sair da cama e comer na cozinha com ele. — De onde você veio?
— De muitos lugares — respondeu ela vagamente, ajudando a lavar a louça. Mas algo no rosto dela suavizou, como se estivesse falando de seu assunto preferido a alguém que realmente se importava em ouvir. — Meus bisavós maternos são ucranianos. De Odessa, para ser mais específica — contou. — Foram fugidos de lá para a Inglaterra por causa dos pogroms. Meu avô nasceu lá, e minha mãe também. Meu pai era cubano.
Elliott franziu a testa conforme enxaguava uma xícara. Fidel Castro controlava Cuba. Eisenhower já havia decretado o embargo econômico àquela altura. A Baía dos Porcos havia sido um desastre. Ser descendente de cubanos – filha, ainda por cima – não devia ser fácil. Ele supôs que aquilo explicava a falta de espanhol no vocabulário dela, mas também o interesse por autores latinos no geral.
— Então você é judia? — perguntou. Sentia que era um território mais seguro do que falar sobre política com uma adolescente.
— Era — uma só palavra, e parecia ser tudo que Evie tinha a dizer sobre. Então acrescentou: — Alguns poucos se salvam quando se trata da segregação por aqui. Confundem judaísmo com sionismo.
Elliott confirmou com a cabeça, muito embora aquilo tivesse sido um fato, não um questionamento. Havia visto várias e várias vezes a mesma coisa se repetir, e mesmo assim continuava se perguntando a mesma coisa. Judeus eram minorias, assim como os afro-americanos, não eram? E, no entanto, mesmo sabendo do que ocorrera com outros judeus europeus nos campos de concentração, alguns continuavam apoiando a mesma política que levava outros grupos à situação extrema em que costumavam viver menos de vinte anos atrás. Mesmo que, aos olhos da Klu Klux Klan, todos fossem a mesma coisa. As pessoas tinham memória curta. Elas precisavam andar em volta dos destroços, pegar cupons de racionamento de alimentação e ler a contagem diária de mortos para que a guerra permanecesse viva na mente. Esquecer podia levar à complacência, e aí todos estariam de volta à estaca zero. Mas eles já estavam, Gussman podia sentir. O que restava saber era qual grupo seria o escolhido da vez para o extermínio total.
É o que dizem por aí, não é? A história está sempre se repetindo.
Os meses seguintes à chegada dela se passaram em um borrão confuso e surpreendentemente fácil conforme ambos se ajustavam à nova rotina. Eles se entendiam; se conheciam; cuidavam um do outro. Evie ouvia atentamente cada uma de suas mais novas teorias. Ele a amparava quando mais um daqueles flashbacks estranhos a fazia se agarrar trêmula à mesa da cozinha. E, quando os pesadelos de ambos surgiam – por motivos diferentes, por traumas diferentes –, eles se sentavam na sala por horas a fio, lendo o mesmo livro e trocando impressões conforme algum disco tocava no fundo. Elliott havia se prendido tanto àquela bolha de sofrimento e auto-deterioração quando Eleanor o deixou que não havia percebido o quanto a presença de outra pessoa podia ser calmante. Não só isso, mas reconfortante. Era bom ter um amigo. Muito bom.
Em meados de 1962, quando a depressão de Evangeline atingiu um nível ainda mais preocupante, ela foi acometida por uma febre que a manteve presa na cama durante semanas. Nem mesmo saber que mais uma das aparições da luz azul – que ela tinha se tornado especialmente obcecada – havia aparecido melhorou seu ânimo. Elliott cogitou levá-la ao hospital, é claro, mas havia visto os mesmos efeitos em soldados durante a guerra e sabia que, muito provavelmente, o que devia ter sido uma simples febre estava sendo agravado pelo estado mental deteriorado dela. Não havia muito o que pudesse fazer num geral, e o conceito de terapia estava apenas começando a ser falado.
Sem saber o que fazer, Elliott continuou ao lado dela durante esses dias. Segurava seu cabelo para trás quando ela vomitava. Preparava torrada e ovos no café da manhã e releu, por duas vezes, Noites Brancas e Irmãos Karamazov, do Dostoiévski, com ela, ouvindo os delírios febris dela adquirirem consciência pouco a pouco. Colocou Frank Sinatra e Elvis Presley e Ray Charles para tocar dia e noite, segurando a mão dela a cada vez que a ouvia cantarolar junto da melodia.
Quando Evie finalmente se recuperou o suficiente para se levantar sozinha e permanecer consciente por mais de meia hora, ela e Elliott estavam mais próximos do que nunca. Eles já eram, é claro, como se fossem uma família, mas aquela provação pareceu ter sido o suficiente para derrubar a última parede e os unir ainda mais. Elliott havia provado que estava lá para celebrar bons momentos e cuidar dela nas piores situações. E Evangeline retribuiu quando a hora certa chegou. Fez bolo e torta no aniversário dele. Comprava os principais exemplares de jornais conspiracionistas do velho maluco do outro lado da rua apesar dos olhares que recebia. Nunca reclamou da comida dele. E, quando os papéis oficiais do divórcio chegaram, esteve lá para apoiá-lo.
— Nada contra a Eleanor — ela falou certa tarde em tom casual enquanto virava uma panqueca na frigideira —, mas se ela for atropelada um dia, eu é quem vai estar dirigindo o carro.
Foi mais ou menos essa época em que eles passaram a acreditar que amizades poderiam estar escritas nas estrelas.
— Se existirem outros tipos de alma gêmea — Elliott disse a ela certa madrugada, com Bob Dylan tocando —, então acho que você é a minha.
Evie estava de vestido amarelo, com A abadia de Northanger aberta no colo. Estava sem as luvas compridas que se tornaram sua marca registrada entre os vizinhos do bairro, e a cicatriz de queimadura se estendia desde a ponta dos dedos até o cotovelo do braço esquerdo. Tinha uma expressão de profunda concentração no rosto, mas assim que ouviu aquelas palavras, sorriu de verdade, como se tivesse escutado a melhor coisa em meses, e fechou os olhos em apreciação.
— Eu também — replicou calmamente. — Tenho certeza de que não conseguiria viver sem nossas conversas até tarde da noite.
Eles sorriram um para o outro, compartilhando certa compreensão mútua que pouquíssimas pessoas podem realmente se gabar de ter. Elliott estava feliz. Gostava de Evangeline, não importava o nome que usasse – sendo Elizabeth ou não, ela continuava sendo a melhor amiga que tivera em muito tempo. A melhor irmã também.
Quando ele descobriu sobre a Shakespeare & Co., sua primeira reação foi a de contar para Evie. Ele nunca a viu tão satisfeita quanto nas vezes em que voltava para casa antes do sol se pôr, mais algum novo disco debaixo do braço e, mais tarde, um envelope com o primeiro pagamento pelo mês de trabalho. Mas também não perdia a forma como algo na expressão dela caía toda vez que a chamava de Elizabeth, ou mesmo de Libby. Em algum momento, ele começou a se incomodar, embora apenas muito brevemente, sobre o quão estranha era aquela garota, que morava debaixo do seu teto e comia da sua comida, não falar quase nada sobre si mesma ou sobre a sua família. Mas tão rápido quanto as suspeitas começaram, mais rápido ele foi em chutá-las para o lado. Dores de cabeça repentinas, dificuldade de concentração, a obsessão pelas luzes azuis e pela música, a forma como abominava o desperdício de todas as formas, os rabiscos incessantes nos cadernos que usava como diário, o jeito como se retesava toda quando ele a chamava de Lizzie… ele guardou tudo em uma caixa e a enterrou o mais fundo possível. Não queria aceitar que algo pudesse estar errado.
“Se você quer guardar um segredo, esconda-o de si mesmo.”
O dia em que Elliott Gussman descobriu que Evangeline mentiu para ele durante os dois anos em que moraram juntos o assombraria pelo resto de sua vida – o que, na verdade, não significava muita coisa, considerando seu assassinato inevitável, mas mesmo assim. Ver a garota aparecendo de mãos dadas com o garoto de mais cedo, um dos aliens que o encurralara mais cedo questionando sobre os irmãos… bom, isso foi certamente uma visão e tanto. Só não superou as explicações que Libby – ou Evie, como ele logo passaria a chamá-la – lhe deu. Uma família desestruturada, viagens no tempo, o Armagedom, uma organização secreta responsável pela manutenção do espaço-tempo, tudo isso pareceu empalidecer em comparação com a perspectiva de que Evie havia o enganado e manipulado. Por uma boa causa, é claro, mas ainda uma mentira, e ele precisou de horas para se recuperar – coisa nada fácil de se fazer quando se descobre que o presidente atual do seu país vai ser assassinado em seis dias, os estranhos das aparições atrás do beco surgem na sua porta, todos eles comentam sobre o fim do mundo que se aproxima e a garota que você achava que conhecia te revelou um mundo completamente novo.
Mas era Evangeline. Era Elizabeth. E ele escolheu perdoá-la. Especialmente depois que aquele garoto estranho, o que olhava para ela como se ela fosse uma obra de arte, o explicou cuidadosamente, com muito jeito, que eles iriam embora assim que resolvessem tudo. Elliott não queria passar os últimos dias brigado com ela. Não queria mesmo. E ele sempre foi bom em ignorar os problemas, mesmo quando eles estavam bem na sua cara. Então, como sempre, ele respirou fundo e aguentou firme. Porque queria ajudar o quanto pudesse. Porque queria ser um bom amigo. Se era para perder a última coisa boa que tinha, que fosse do melhor jeito possível. Que fosse sabendo que ela estaria em segurança e muito mais feliz do que já havia estado. Acho que a gente precisa mostrar que tem fé nas pessoas mesmo quando elas não merecem. Caso contrário não seria fé, certo?
E além do mais, dava para ver que Evie realmente amava aquele garoto. Ela o olhava como se ele tivesse pendurado as estrelas no céu, como se a voz dele fosse sua música preferida, mais até do que Can’t Help Falling in Love ou Be my baby ou qualquer outra do Sinatra ou do Dylan. E o rosto de Cinco parecia se iluminar cada vez que a via; dava para ver o quanto ele era fascinado por ela todas as vezes em que os dois estavam na mesma sala. Ficava em silêncio, deixava que ela falasse. E, quando Evangeline ria, era como se ele desejasse engarrafar aquele som e ficar bêbado com ele todas as noites.
— Você realmente ama ela, né? — Elliott havia perguntado naquela madrugada, enquanto sua amiga dormia no quarto de hóspedes.
Cinco o olhou de soslaio, como se Gussman fosse o louco, como se não tivesse dois fugitivos do manicômio dormindo debaixo de seu teto e uma gravação do futuro dentro de casa. Mas devia ter percebido que ele era alguém importante na vida de Evie, porque amaciou o tom na hora de responder.
— Acho que eu não sou o homem que a Ev acredita que eu sou. Mas eu quero muito ser. Quero muito ser alguém minimamente melhor, mesmo que não tenha tido as oportunidades certas até agora. E se eu continuar com ela, se eu me esforçar todos os dias para ser esse cara que ela vê, acho que posso chegar perto. Então sim, Elliott, é claro que eu amo ela. Mais do que você pode chegar a imaginar.
Elliott ficou em silêncio, e percebeu que tinha a mesma quantidade de motivos para detestar ele, mas também para gostar. E lá estavam os dois, sem absolutamente nada em comum além da garota que tentavam proteger a todo custo.
Ele se lembra disso agora. Elliott Gussman se lembra disso agora quando percebe os dois homens desconhecidos dentro de casa. E quando eles o nocauteiam e o torturam e o questionam incessantemente sobre cada um daqueles que hospedou em sua casa nos últimos dias. E Elliott permanece quieto, porque nunca houve nada que detestasse mais do que a covardia e a traição. E porque quer proteger Evie, quer que ela se lembre dele como um amigo leal, não como um covarde traidor. Você quer me proteger tanto quanto eu desejo isso para você, Elli, Evangeline havia argumentado meses atrás. Bom, você conseguiu, ele consegue pensar, em um último lapso de consciência.
Afinal, é o que dizem, não é? Nada é mais seguro do que a morte.
₍ 001 ₎ Meu Deus! Muito, muito obrigado pelos 4K de leituras, pessoal! Espero que vocês tenham gostado dessa história tanto quanto eu adorei escrevê-la ❤️ Hoje o capítulo foi mais curtinho porque não passa de um monólogo interno do Elliott, e pessoas mortas tendem a não ter tanto tempo para refletir sobre a vida antes de morrerem
₍ 002 ₎ Caso tenham gostado, curtam e comentem e me digam suas teorias! Estou ansiosa para trazer mais capítulos, então nos veremos o mais cedo possível.
©lovingclare.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro