Prólogo
"No Natal passado eu o conheci; nesse ano, o perdi. Espero que no próximo Natal estejamos juntos novamente." Aquela frase cortava o coração de Maria Fernanda. Escrita há tantos anos numa das várias folhas do diário de sua mãe; a saudosa Maria Eduarda; aquela antiga declaração emocionava a filha.
Ao contrário do que possa parecer, a jovem não era uma bisbilhoteira: aquela relíquia lhe havia sido entregue pelas mãos de sua própria dona, semanas antes da partida definitiva de Eduarda para os braços de Deus.
O poder que as palavras têm quando são escritas com verdadeira emoção é especialmente impressionante, pois apesar do período transcorrido desde que fora escrito até aquele instante em que Fernanda o lia; em pleno final de novembro de 1977; os sentimentos que emanavam através de cada letra ali contida transformavam seu conteúdoem algo quase palpável, como se a alma de quem escreveu permanecesse "presa" naquelas linhas, de alguma maneira. Fernanda sabia que aquele desejo de sua mãe não havia se realizado, fato que potencializava a sensação de tempo não transcorrido, de percurso estagnado.
Ele; o misterioso homem a quem Eduarda reservara o maior número de citações no decorrer daquelas páginas já amareladas pelo implacável tempo; provavelmente jamais soubera o quanto havia sido amado e; na mesma intensidade; odiado.
Ele nem sequer chegara a conhecer sua filha que, no caso, era a própria Maria Fernanda. Apesar de considerar o diário da mãe como sua herança mais preciosa, aquela não era, nem de longe, a única que restara à filha. Maria Fernanda Trindade - ou simplesmente "Nanda", para os mais íntimos - havia nascido no seio de uma das famílias mais tradicionais do Estado de São Paulo.
A garota de cabelos dourados e olhos azuis; quase uma cópia de sua mãe; completara 26 anos há alguns meses e não possuía nenhum parente vivo. Se existisse alguém com o seu sangue, esse alguém seria seu pai, mas se ele permanecia vivo ainda era uma incógnita... De qualquer modo, a possibilidade dele ainda existir não alteraria o fato de que Fernanda era a última remanescente de uma antiga linhagem, sendo consequentemente a única herdeira de uma valiosa fortuna, podendo assim dispor de seus bens quando e como ela bem entendesse.
Diferente do que alguns poderiam supor, se Fernanda pudesse optar entre a fortuna que estava à sua disposição ou a presença de sua mãe, ela escolheria, sem pestanejar, a segunda opção. A companhia acolhedora de Eduarda e seu abraço sempre apertado reprerepresentavam uma preciosidade de valor incalculável. Mas há algumas questões na vida que são irreversíveis e, sobretudo, inegociáveis, e a morte é uma delas.
Fernanda sabia perfeitamente que a realidade não dependia de sua vontade, mas sim da decisão de Deus, e restava a ela recorrer às lembranças nostálgicas reveladas em fotos distribuídas em vários álbuns, e aos manuscritos eternizados num envelhecido diário. Tornando a ele, inclusive, o que tornava a última frase que Fernanda lera especialmente triste para ela era o fato de que o seu namorado, Pedro Chagas - jornalista dos mais atuantes - havia desaparecido no início daquele ano: sumira sem deixar rastros. Desse modo, aquela frase que fora escrita por Eduarda bem que poderia ter sido escrita por Fernanda, caso ela houvesse conhecido (e/ou perdido) Pedro em algum Natal. Resumidamente, além da mãe, Fernanda também perdera a companhia do único homem que amara.
Aquele ano não estava sendo fácil para ela: pelo menos quanto a isso, não havia a menor dúvida. Mas apesar de tantas adversidades, queimava dentro dela a chama da esperança - assim como sua mãe também tivera um dia - de reencontrar o seu grande amor. "Mas esse desejo também não seria uma ilusão, como um dia fora o de mamãe?", Fernanda indagava para si mesma. A verdade era que ainda não havia sido descoberta nenhuma informação sobre o paradeiro de seu amado. Ser um homem engajado nas questões políticas em plena ditadura militar lhe trouxera graves consequências, pelo menos aparentemente.
Maria Fernanda não cogitava a hipótese de Pedro ter sumido sem que houvesse algum motivo muito forte por trás de tal desaparecimento, e ela possivelmente estava certa por pensar assim. Logo após o sumiço de Pedro, sua persistente namorada procurara por diversos lugares, colara cartazes nos pontos de maior circulação de pessoas na cidade e até chegara a questionar alguns colegas de trabalho dele, mas não obtivera êxito. Ana Maria; a governanta da casa e praticamente sua segunda mãe; a desaconselhara, pois considerava sua luta perigosa e, possivelmente, vã. Fernanda, após meses à procura de Pedro, finalmente decidira dar uma trégua em suas tentativas de reencontrá-lo, mas não por desinteresse ou por medo dos militares. Seu foco havia mudado, pelo menos temporariamente: em posse de valiosas informações sobre seu pai, ela não esperaria por muito mais tempo até conhecê-lo pessoalmente, de preferência antes do (literalmente) próximo Natal.
Seria necessário correr contra o tempo se quisesse conhecê-lo até o dia 25 de dezembro. Aquela data era especialmente importante, pois Fernanda descobrira - também por meio dasanotações de Maria Eduarda - que ele aniversariava no mesmo dia de Nosso Senhor. Fernanda achara linda tal coincidência, até porque o Natal sempre fora sua comemoração favorita. Começara desde então a pedir a bênção de Jesus em sua jornada.
A fé e a intuição de Maria Fernanda lhe faziam crer que os sonhos mais difíceis de alcançar são os mais prazerosos de serem conconquistados, e que para conquistar algo tão valioso quanto finalmente conhecer o pai e; ainda por cima numa época tão simbólica; ela não desistiria tão fácil.
Na verdade, Fernanda não desistiria nunca: ela devia a realização daquele sonho à memória de sua mãe e, principalmente, a si mesma.
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