Capítulo - 19
Eu não suportaria nem mais um segundo daquele olhar. Não aguentaria ter que passar a noite inteira sendo alvo daquela pena, da mudança de tratamento, do modo cuidadoso e zeloso.
Levantei-me levando meu prato vazio comigo, depois lavei tudo o que eu havia usado. E a todo momento Lorenzo não disse uma palavra.
Não vi quando ele saiu da cozinha, só notei que estava sozinha quando terminei de arrumar o lugar. Ele também não estava no salão, então supus que estivesse no escritório no andar de cima.
Me acomodei em uma cadeira próxima a janela. A chuva havia reduzido, mas ainda assim estava frio. O que se igualava um pouco à como eu me sentia agora.
Senti meus olhos pesarem pouco a pouco, até minha visão ficar um tanto turva. Ouvi os passos de Lorenzo na escada e depois no chão de mármore do salão.
— Tem um sofá no escritório, você pode descansar lá se quiser — disse ele depois de limpar a garganta.
Não me movi ao grunhir:
— Enquanto a você?
— Não estou cansado — respondeu-me.
O escritório era um cômodo não muito grande, havia uma mesa cor de mogno com objetos e papéis em cima, uma estante com livros, certificados emoldurados na parede e um sofá cinza no canto.
Não fiz cerimônia ao me jogar nele, minhas costas relaxando em agradecimento. Lorenzo caminhou até a mesa e se sentou na cadeira de couro atrás dela, carregando consigo o livro que lia mais cedo.
Deite-me de lado no sofá pequeno me aconchegando mais. Passei a encarar a foto pendurada na parede atrás de Lorenzo. Reconheci Martina e seu esposo, do qual eu já havia visto antes em algumas fotos na pensão, identifiquei a criança sorridente de cabelos claros e deduzi quem eram os adultos mais jovens que seguravam a mão do menininho.
— O que aconteceu com eles? — disparei.
Lorenzo levantou a cabeça e seguiu meu olhar. Quando virou estava novamente com aquela sombra sobre os olhos.
— Ele era arquiteto e ela era fotógrafa, ambos viajavam muito por conta do trabalho e quase nunca ficavam em casa — começou ele. — Meus pais não queriam ter filhos, acreditavam que assim estariam se prendendo em um lugar. Mas aí eu nasci e depois de cinco anos eles não suportaram mais esse peso, partiram durante a noite enquanto eu dormia. — Ele tinha o olhar fixo em suas mãos entrelaçadas sobre a mesa. — Eles sofreram um acidente de carro na estrada e não sobreviveram, então fiquei sozinho com minha avó.
Eu não fazia ideia daquela parte da vida dele. Ser deixado de lado pelos pais, ser considerado um peso, uma amarra. Não ter sequer uma despedida digna. Ele tinha apenas cinco anos.
— Sinto muito por ter passado por isso — falei baixo e sincera.
Ele levantou os olhos, agora acentuados pela luz amarelada do escritório. Estavam profundos e atentos.
— Eu sinto muito também — respondeu no mesmo tom brando. Ele se referia ao aneurisma e ao fato de eu não ter mais uma chance.
Inspirei o ar e fechei os olhos me deixando adormecer.
Acordei com um barulho ensurdecedor soando por todo o restaurante. Meu coração acelerado por conta do susto. Lorenzo dormia com a cabeça apoiada nos braços sobre a mesa.
Me levantei para acordá-lo, mas não foi necessário, porque ele também se assustou e despertou. No mesmo instante ouvimos Martina chamar nossos nomes no andar debaixo.
Descemos as escadas do escritório para ir de encontro ao salão, mas antes que Lorenzo pisasse no último degrau segurei seu braço.
— Por favor, não conte a ela — pedi apressada e nervosa. Na esperança de que ele entendesse o que eu estava pedindo.
Ele piscou algumas vezes e assentiu abrindo espaço para eu passar primeiro.
Martina nos cobriu de abraços e perguntas enquanto tentávamos explicar o que havia acontecido. Lorenzo decidiu por não abrir o restaurante enquanto o problema das travas de segurança não fosse resolvido. Ou seja, eu tinha o sábado inteirinho para descansar adequadamente.
Valenccio, que tinha acompanhado Martina até lá para nos socorrer, nos deu uma carona até a pensão. Convidamos ele para ficar e comer alguma coisa, mas ele preferiu ir embora e aproveitar sua folga.
Eu estava faminta, o que era meio irônico já que eu tinha ficado presa num restaurante a noite inteira. Devorei três dos vários sanduíches que Martina havia preparado, sem falar nos incontáveis copos de achocolatado.
— Ainda não entendo como pode comer tanto — Lorenzo disse enquanto comia seu próprio sanduíche.
Estreitei os olhos.
— Já disse que sou agitada e gasto mais energia — rebati, fazendo os cantos de sua boca se levantarem minimamente. Considerei aquilo um sorriso.
Agradeci a Martina pelo café da manhã delicioso e prometi que me juntaria a ela mais tarde para assistir "Laços do Amor". Nossa tão amada novela mexicana.
Bem, e por falar em mexicano...
Eu precisava carregar meu celular e checar se haviam mensagens de Jean, não que eu esperasse que tivesse... ou que estivesse ansiosa para ver se tinha ou não.
Conectei o aparelho no carregador e fui tomar um merecido banho, quem sabe meus pensamentos acumulados das últimas horas não escorriam ralo abaixo.
Agora eu teria que lidar com o fato de que Lorenzo sabia do meu aneurisma, e também com o fato de que ele poderia, possivelmente, mudar a forma de tratamento comigo ou o modo como me olharia dali em diante. Precisaria enfrentar esse pequeno obstáculo.
Após o banho me deitei na cama para descansar enquanto meu celular carregava, mas, não tão contra a minha vontade, adormeci.
Quando acordei eram três horas da tarde, passar a noite num sofá minúsculo surtia esse efeito. Me sentia bem e descansada, até animada por sinal.
E sim, haviam mensagens de Jean e algumas eram de horas diferentes. Ele perguntava se estava tudo bem e tudo mais. Não pude evitar o sorriso que brotou nos meus lábios diante da atenção dele.
Desci as escadas saltitando feliz da vida apesar de algumas coisas. Cheguei à conclusão de que se eu desse mais atenção às coisas ruins da vida passaria todos os meus dias pensando nos problemas ao invés de aproveitar o meu tempo e ficar bem comigo mesma.
— ... precisaremos ter cuidado com isso então — ouvi Martina dizer antes de eu chegar na sala de jantar. Onde ela estava sentada e Lorenzo de pé como se estivesse andando de um lado para o outro. Ambos me olharam no instante que parei na porta do cômodo.
Eu teria dito "oi" se não fosse pelo clima estranho.
Martina estava com a expressão cansada, a mesma que eu via quando ela estava preocupada com a saúde do neto. Os olhos abatidos, a testa franzida, os lábios cerrados em uma linha, um ar sério. Mas a questão não era a saúde de Lorenzo, que nesse momento estava com os braços cruzados e me encarava com culpa nos olhos.
Aquelas sobrancelhas grossas, agora arqueadas, denunciaram ele. Lorenzo contou sobre o meu aneurisma para Martina.
Minha respiração vacilou fazendo-o dar um passo na minha direção.
— Eu tinha pedido por favor — disparei para ele.
— Camila, não dava para...
Senti meus olhos arderem com as lágrimas que brotavam.
— Era um pedido, Lorenzo, só um pedido — retruquei começando a sair da sala.
— Camila, espera — chamou ele vindo atrás de mim, mas desistindo quando disparei escada acima.
Me tranquei no quarto e só então permiti que minhas lágrimas caíssem.
Como se tivesse adivinhado, Jean me liga. Não hesitei em atender.
— Sabe, eu estava pensando em chamar uma garota para sair, você acha que ela aceitaria? — disse ele assim que eu atendi. Um soluço escapou de mim, o que deve ter alertado ele. — Mila? Está tudo bem?
— Não — sussurrei.
Sentei no chão apoiando as costas na porta trancada torcendo para que nem Lorenzo e nem Martina viessem até aqui.
— O que aconteceu? — Sua voz carregava certa preocupação. — Mila, você quer que eu vá até aí?
Balancei a cabeça, ainda que ele não pudesse ver.
— Eu... não sei.
Ouvi uma movimentação vinda do outro lado da linha.
— Estou indo até você — Jean disse um tanto atrapalhado. — Chego num segundo.
Desliguei e apoiei a testa no braço inspirando fundo para acalmar minha respiração e lágrimas.
Não sei o quanto demorou, mas tempo depois recebi uma mensagem de Jean dizendo que estava quase chegando. Uma parte de mim se preocupou com a ideia de ele mandar mensagens enquanto dirigia.
Tentei ser rápida ao sair do quarto, descer novamente as escadas e chegar na porta da pensão.
— Ei, espera! — A voz de Lorenzo me seguiu.
Saí apressada, porém ele conseguiu me alcançar e segurar meu pulso.
— Me deixa explicar — disse ele quando o olhei.
— Lamento informar, mas você não está em condições de pedir nada — rebati com raiva.
Ele passou uma mão pelos cabelos loiros.
— Eu precisava contar, você não entende?
— Não, eu não entendo, Lorenzo. Não entendo qual é o seu problema em manter a sua palavra, em atender a um pedido — disparei furiosa. — Não entendo porque você não pode fazer algo que não seja para o seu próprio benefício!
Lorenzo balançou a cabeça.
— Isso não é para o meu benefício, ou seja lá o que você tenha pensado! — rebateu ele. — Contei para o seu bem.
Ri sentindo meu sangue ferver em minhas veias.
— Você, mais do que ninguém, deveria ser a pessoa que me entende. — Não consegui abaixar o tom da minha voz. — Sabe muito bem como é ser tratado com pena o tempo todo.
Seu olhar se suavizou, demonstrando um pouco de compreensão.
— Essa não é a questão. — Lorenzo levou as mãos à cintura.
Naquele momento odiei aqueles olhos verdes, odiei o modo como se fixaram nos meus, odiei o que havia neles e até mesmo o que não havia.
Foi a minha vez de balançar a cabeça.
— Por que temos que ser tão complicados? — Foi uma pergunta retórica, mas que calou tudo entre nós.
Me virei e segui andando rápido pela calçada. Sem fazer a mínima ideia de para onde iria.
Cinco minutos depois ao virar uma esquina avistei o carro de Jean na pista. Ele parou onde era permitido e desceu do veículo enquanto eu tinha congelado no lugar. Não sei o que me motivou, ou o que me levou a correr a pequena distância entre nós e abraçá-lo. Ele tampouco hesitou em retribuir apertando os braços ao meu redor.
Jean me levou para um lugar tranquilo, um parque chamado Giardino degli Aranci*. A movimentação no mesmo era pouca, em razão do horário, o que nos dava certa privacidade.
Nos sentamos em um dos muitos bancos de madeira, bem debaixo de uma laranjeira.
— Me sinto patética nesse momento. — Quebrei o silêncio.
— Você não é patética, só está chateada, eu presumo — respondeu ele, sentado ao meu lado. — Se quiser, pode me contar o que aconteceu.
A questão era essa, eu não me sentia tão segura para contar sobre a doença para ele.
— É só uma coisa idiota que Lorenzo fez — falei encarando minhas mãos.
Jean mudou de posição no banco, ficando de frente para mim.
— O que ele fez? — Ele ficou sério ao falar isso.
Pensei em como eu responderia as perguntas dele contornando o meu pequeno segredo. Mas não vi como. Não havia como ser sincera com ele dizendo meias verdades.
Foi o que me levou a dizer:
— Eu vou contar algo e você provavelmente vai reagir do modo como eu imagino, porque é o que as pessoas fazem — comecei, ganhando toda a sua atenção. — Eu tenho um aneurisma há um tempo e por falar em tempo eu não tenho muito. Pedi a Lorenzo que não contasse à Martina, mas acho que entrou por um ouvido dele e saiu pelo outro porque foi a primeira coisa que ele fez quando eu não estava por perto. Agora que descobri que ele ignorou meu pedido estou furiosa, afinal isso não é dele para que compartilhe. — As palavras saíram em disparada. — Ele tentou se justificar, mas eu não vejo como...
— Mila, respire... — Jean tocou minha mão me fazendo parar de falar e enfim respirar fundo. Depois da pequena pausa ele diz: — Por que você não queria que Martina soubesse?
Balancei a cabeça olhando para ele.
— Ouviu o que eu disse? É um aneurisma que logo vai se romper.
Ele abaixou os olhos.
— Eu... meio que já sabia.
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TRADUÇÃO DAS PALAVRAS COM ASTERISCO*
Giardino degli Aranci - "Jardim das Laranjas"; é uma praça localizada em Roma, da qual é vasta de laranjeiras.
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