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A autopsia

Numa conhecida e confortável sala fria e asséptica, Dr. Olavo preparou-se para a autópsia daquela manhã. Seus instrumentos dispostos com precisão militar, cada lâmina, cada sonda, posicionados como peças de xadrez em um tabuleiro de assepsia. O corpo estendido sobre a mesa de aço inoxidável, um homem comum cujo destino era, agora, decifrar os mistérios da morte.

A luz branca e impiedosa caiu sobre a mesa, revelando a nudez vulnerável do cadáver. Olavo, com serenidade profissional, começou a gravar suas observações no pequeno gravador pendurado em seu pescoço.

"Registro número duzentos e trinta e quatro, sujeito masculino, idade aproximada de quarenta anos. Causa da morte ainda desconhecida. Incisão medial no peito para iniciar a dissecação."

A lâmina afiada deslizou pela carne, revelando camadas de tecido até alcançar a caixa torácica. Olavo continuou a narrativa, descrevendo cada movimento com a destreza de quem faz da morte sua mais íntima confidente.

O som molhado da carne abrindo-se para a lâmina o felicitava tanto quanto o recebimento pelas horas extras. Sentiu o bisturi riscar algo rígido e torceu os lábios por se exceder.

"Costelas cortadas, expondo os pulmões. Inspecionando... não há sinais de patologia aparente. Próxima etapa: o coração."

A mão firme do médico legista extraiu o órgão vital, enquanto sua voz monótona ditava os detalhes.

"Coração aparentemente saudável. Nenhuma anomalia visível. Continuarei com a análise dos órgãos abdominais."

A rotina metódica prosseguia, cada incisão e cada sutura eram detalhadamente comentadas no gravador. No entanto, Olavo notou algo peculiar, algo que o intrigava mais do que a própria morte diante dele: a ausência do rosto do falecido.

"Registro de anomalia: incapacidade de visualizar o rosto do sujeito. Pele comum, olhos fechados, mas o rosto... evasivo. Incomum, mas procederei."

A mente do médico debateu-se entre o estranhamento e a lógica científica. Por mais que tentasse, não conseguia fixar na memória o semblante do homem. Mas seu treinamento e dever profissional falaram mais alto, e ele continuou, incansável.

"Órgãos abdominais sem sinais de patologia significativa. Avançarei para a análise das vísceras cranianas."

A incisão no crânio revelou o cérebro, o epicentro da vida, agora exposto à investigação. Olavo, mantendo a frieza característica de sua profissão, descreveu as estruturas cerebrais com minúcia.

"Exame cerebral iniciado. Lóbulos, sulcos, sem sinais de anormalidades. Um cérebro típico. No entanto, a anomalia persiste: não consigo entender esse rosto."

A inquietação crescia, como uma sombra que se insinua nos recessos da consciência. Cada palavra registrada aumentava o desconforto do médico, enquanto seu próprio rosto continuava a se esquivar de sua percepção.

"Encerrando a autópsia. Causa da morte ainda indefinida. Anomalia intrigante persiste: impossibilidade de fixar o rosto. Estou perplexo."

No momento em que Olavo terminou a última frase, um arrepio percorreu sua espinha. A sala, antes imperturbável, começou a distorcer-se à sua volta. As luzes vacilaram, e o som metálico de seus instrumentos tornou-se um murmúrio distante. Olavo percebeu, com horror, que algo transcendia os limites do entendimento humano.

Num último esforço de racionalidade, ele dirigiu-se ao espelho acima da pia, buscando a confirmação de sua própria existência. Entretanto, o reflexo mostrou-se evasivo, uma figura indistinta que se recusava a se revelar.

A sala, antes um ambiente estéril e organizado, agora não passava de uma sala ensanguentada, em ruínas, sem nenhum esmero ou cuidado.

"Anomalia atinge um novo patamar: a impossibilidade de ver a própria face. Inexplicável. Registro encerrado."

Ao pronunciar as palavras finais, a sala de autópsias pareceu dissolver-se ao seu redor. Olavo encontrou-se, subitamente, em um vazio etéreo, onde não havia limites nem horizontes. A sensação de ausência de corpo, de existir apenas como voz e consciência, o assaltou.

"Onde estou? Quem sou eu?" Indagou, mas suas palavras ecoaram sem resposta.

A realidade distorceu-se ainda mais, e Olavo percebeu que não estava mais no controle de suas ações. Era como se suas mãos, suas palavras, sua própria essência, estivessem sujeitas a uma força invisível.

Num último suspiro, o médico legista percebeu a verdade aterrorizante: ele esteve gravando a autópsia de si mesmo. Cada incisão, cada descrição técnica, era uma narrativa de sua própria morte.

"Registro final: Dr. Olavo, médico legista, idade indefinida. Causa da morte: anomalia cósmica. O corpo, instrumento da autópsia, agora sujeito à própria análise. O rosto, evasivo até o último suspiro. Encerrando o último protocolo."

A voz de Olavo desvaneceu-se, e o vazio consumiu tudo. A sala de autópsias, o corpo na mesa de aço, a luz impiedosa; tudo desapareceu. A anomalia cósmica reclamou seu tributo, levando consigo a narrativa de um médico que, inadvertidamente, decifrava os mistérios de sua própria existência.

No silêncio do vazio, restou apenas o eco distante da última gravação, uma voz que flutuava na eternidade cósmica, narrando uma autópsia que transcendeu os limites da compreensão humana.

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Texto escrito como parte do meu desafio pessoal de escrever um texto para cada dia do ano.

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