Capítulo 51
Abri meus olhos e fiquei confusa por um momento, tendo certeza de que não estava na minha casa e que a cama na qual eu estava deitada não era a minha. E então eu me lembrei. Lembrei do banco sob a árvore e dos beijos, da chuva que despencou sobre nós repentinamente e das nossas roupas encharcadas quando chegamos até o carro. Pietro tinha nos trazido para sua casa e agora eu vestia uma blusa de mangas compridas azul que era sua, um pouco grande para mim, e uma calça que peguei emprestada de Evelyn, que era curta demais e um pouco apertada. Eu estava enrolada em um grosso edredom preto e usando o braço de Pietro como travesseiro enquanto sentia sua respiração tranquila contra o meu cabelo. Eu nem me lembrava a hora que tínhamos pegado no sono, tínhamos ficado conversando depois de nos secarmos e estava me sentindo tão bem que chegou um momento em que apenas apaguei. Eu não estava acostumada a dormir com uma pessoa desse jeito, mas não era ruim. Para falar a verdade, essa tinha sido a primeira noite em meses em que eu não tinha nenhum sonho e que podia falar que dormi bem.
—Bom dia! - sussurrou uma voz rouca no meu ouvido.
Sorri sentindo os pelos da minha nuca se arrepiarem.
—Bom dia! - falei.
Com um único movimento, rápido demais para que meu cérebro ainda sonolento pudesse entender, Pietro girou meu corpo nos deixando cara a cara. Seu cabelo estava totalmente bagunçado e caindo em sua testa, os olhos parecendo mais claros que o normal enquanto ele sorria com uma leveza que eu nunca tinha visto.
—Dormiu bem? - perguntou ajeitando meus cabelos que deviam estar um ninho.
—Não tive nenhum pesadelo, se é a isso que está se referindo.
Eu me sentia um tanto constrangida pelo momento, e então revirei os olhos para mim mesma. Pelo amor de Deus! Eu não tinha porque estar com vergonha.
—Acho que isso é uma coisa boa.
—É que sua cama é muito mais confortável que a minha, por isso. - brinquei.
Ele estreitou os olhos para mim e um sorriso travesso cruzou seus lábios quando ele me puxou pela cintura com firmeza contra seu corpo.
—Tem certeza que é só por isso? - perguntou desafiador.
Ele me puxou mais para perto e para cima de seu corpo enquanto eu sorria, e olhando em seus olhos brilhantes eu podia vislumbrar um momento ótimo, algo que poderia acontecer se meu olhar não tivesse pousado no relógio que estava em seu criado mudo. Eram oito e meia da manhã e eu não só estava atrasada para a aula como tinha passado a noite toda fora sem avisar a minha mãe. Droga! Antes isso não teria sido uma grande coisa, mas depois de tudo que tinha acontecido, e principalmente no último final de semana, ela não estava muito disposta a deixar eu e meu irmão andando por aí, sua preocupação tinha dobrado e mesmo que fossemos ficar fora até um pouco mais tarde tínhamos que avisa-la antes.
—Ah, merda! - exclamei.
—O que foi? - perguntou Pietro me olhando confuso e me soltando pelo susto da minha reação.
—A minha mãe vai me matar. - falei tentando me livrar do edredom.
Eu girei para sair da cama, mas meu movimento foi rápido e mal calculado, o que resultou no meu pé enroscado na ponta do edredom e eu e ele indo juntos para o chão. O baque no chão de madeira foi mais alto e vergonhoso do que eu queria, e tive que reunir todo o meu orgulho enquanto me levantava desajeitadamente. Pietro estava sentado na cama parecendo serenamente alheio ao tempo, com cara de sono, bochechas ainda coradas que tornavam sua expressão confusa e divertida adorável. Eu me sentia um pouco melhor por ele não estar rindo, mas isso não diminuia a minha vergonha.
—Essa com toda foi a cena mais desastrosa do mundo. Que vergonha. - falei levando a mãos ao cabelo e sentindo meu rosto pegar fogo.
Ele sorriu e coçou os olhos.
—Não posso negar que foi uma cena hilária. - falou com um sorriso torto. - Mas essa com toda certeza foi a melhor manhã que eu já tive.
Eu podia me sentir tocada por sua declaração, mas o fato de eu estar tão ferrada apagou o momento. Meu celular estava numa das divisórias da prateleira de livros e minhas roupas estavam nas costas de duas cadeiras. Havia dez mensagens da minha mãe e uma ligação, uma delas tinha sido a poucos minutos. Merda! Ela não era de me mandar mensagem a não ser que fosse muito importante, então eu devia estar muito encrencada. Peguei minha calça que ainda parecia um pouco úmida e corri em direção ao banheiro, troquei a legging de Evelyn pelo meu jeans, puxei a blusa de Pietro até os cotovelos, amarrei meu cabelo em um coque frouxo e fiz um gargarejo com a pasta de dente que encontrei na gaveta. Dei uma olhada no espelho me sentindo um pouco mais apresentável, então corri para fora do banheiro. Pietro estava de pé perto da cama e olhava para minha agitação com certa diversão. Eu podia entender como ele me via naquele momento, parecendo uma louca desajeitada correndo de um lado para o outro. Calcei meus coturnos enquanto pulava em um pé só para me equilibrar e em uma velocidade que nem eu mesma sabia explicar.
—Porque você não senta pra calçar? - perguntou ele.
—Porque eu estou ferrada. - falei. - Minha mãe anda muito preocupada com as coisas que andam acontecendo na cidade e tem sido mais rigorosa na vigilância comigo e com o Jake. E eu esqueci de avisar a ela que não voltaria pra casa, ela deve estar surtando.
Terminei de calçar meu coturno e enfiei meu celular no bolso, verificando se não tinha ficado mais nada pra trás encontrei minhas chaves caídas encima da cadeira, eu não fazia a mínima ideia de como elas tinham ido parar ali. Minha jaqueta ainda estava um pouco molhada e eu tinha certeza que estava frio lá fora, então eu pegaria elas depois.
—Você precisa mesmo ir agora? - perguntou Pietro fazendo uma careta.
—Se você ainda quiser ter um par pro baile, preciso. - falei ficando na ponta dos pés e o beijando. - Agora tenho que ir. A gente se vê mais tarde.
Ele me roubou outro beijo e sorriu.
—Até mais tarde.
Sai como um foguete porta a fora, quase derrubando Adelaide na escada, que pareceu tão surpresa com nosso encontro quanto eu estava com pressa.
—Minha Nossa Senhora, menina, onde vai com essa pressa? - perguntou levando a mão ao peito.
—Desculpa Adelaide, mas eu estou muito atrasada.
Lancei a ela um sorriso de desculpas e voei escada abaixo.
*********
Cheguei na porta de casa mal conseguindo respirar. Meu rosto estava quente e provavelmente vermelho e eu só não estava mais suada por causa do frio glacial que estava fazendo. Com toda certeza eu tinha quebrado meu recorde de velocidade. O vento gelado chicoteava meus cabelos e olhando para o céu, mesmo que fosse bem estranho nessa época do ano, eu tinha quase certeza que até o final da noite estaria nevando. Ao que parecia o baile de hoje a noite ganharia mais um tema. Abri a porta com pressa e estanquei no meio da sala, ficando mais do que um pouco surpresa ao encontrar meu irmão sentado na cozinha tomando café, a cara de quem lutava para se manter acordado, embora tenha ficado um pouco mais desperto com o estrondo que a porta fez quando eu a abri. Nós dois nos encaramos.
—Jake, você não devia estar na escola? - perguntei.
—Você também não devia? - ele franziu a testa e olhou para minhas roupas franzindo a testa em uma careta desgostosa. - Você não dormiu em casa pelo visto e acho que não vou querer saber da história.
—Você falou certo, eu apenas dormi e nada mais que isso, então não me olhe com essa cara. - falei, embora ele ainda parecesse um pouco desconfiado. - E você, que horas chegou aqui?
Ele olhou no relógio da parede que marcavam nove horas da manhã. Droga! Eu iria perder pelo menos dois horários.
—Acho que mais ou menos a uma hora e meia. - falou abrindo um bocejo. - Estávamos ajudando o Peter a arrumar uma parte daquela bagunça, os pais dele chegam hoje a tarde.
—Você também não avisou a ela que ficaria a noite fora, não foi? - perguntei.
Jacob fez a mesma cara que um cachorrinho faria ao ser chutado, já prevendo o que estaria por vir.
—Acho muito bom que tenham consciência do que fizeram. - falou uma voz conhecida e furiosa as minhas costas que me fez congelar. - Porque eu realmente quero explicações, principalmente por eu ter ido ao quarto de vocês as seis horas da manhã e não ter encontrado nenhum dos dois na cama.
Em todos os meus dezessete anos de vida acho que nunca tinha visto minha mãe tão furiosa daquele jeito. Nada do que fizemos já tinha levado ela ao limite. Me virei lentamente para a porta e a encontrei parada na soleira, vestindo jeans, uma camisa social e um blazer, roupas que mostravam que ela tinha ido para o trabalho e voltado. Ela era uma das minhas maiores confidentes, então eu a conhecia tão bem quanto ela me conhecia, por isso eu via em seus olhos mais do que apenas raiva, eu enxergava a preocupação e o mais completo desespero. Ela tinha voltado para casa para conferir se tínhamos pelo menos passado por ali, para ter algum indicio de que estávamos bem. Minha mãe sempre foi uma mulher pequena, mas parada na soleira da porta com a turva luz da manhã iluminando sua silhueta ela parecia grande e assustadora. Engoli em seco.
—Mãe... - comecei.
Ela ergueu a mão me interrompendo.
—Vá lá para cima, tome um banho e se apronte pra escola. - falou olhando o seu relógio de pulseira de couro favorito. - Ainda podem chegar a tempo pro segundo período. Jacob, termine de tomar o seu café e pegue suas coisas.
Ela deu as ordens sem nem nos olhar direito.
—Mãe... - tentei de novo.
Dessa vez consegui que ela olhasse pra mim, mas preferia que ela não o tivesse feito. Seus olhos estavam cheios de mágoa e decepção.
—Não tem mãe, Safira. - falou com a voz tremendo. - Vocês têm noção do quanto me deixaram preocupada? Do quanto eu fiquei apavorada quando não os encontrei em seus quartos? - ela fechou a porta e o som ecoou pelo estranho silêncio que se abateu sobre a casa. - Aquelas pessoas que moram do nosso lado, que são nossos vizinhos e amigos, eles estão sofrendo pela perda horrível que sofreram. Pela cidade tem pais desesperado a procura dos filhos que desapareceram sem explicação. Eu não quero ter que passar por isso, eu não quero ter que acordar no meio da noite por receber uma ligação da polícia dizendo que um dos meus filhos sumiu, ou pior do que isso. Eu não quero... - sua voz se embargou. - Eu não quero passar pela dor dessas famílias porque não quero perder nenhum dos meus filhos, não de novo.
Meu coração se partiu. Todos os pais da cidade estavam apavorados com o que andava acontecendo e eu entendia, eu entendia a preocupação da minha mãe, o medo que ela sentiu. E ver seus olhos azuis cheios de lágrimas me destruiu porque eu ainda lembrava de sua dor. Antes de Stephanie minha mãe tinha ficado grávida, ia ser outro menino, mas ela perdeu o bebê quando estava indo pro quarto mês de gestação e aquilo acabou com ela. Eu ainda me lembrava perfeitamente de acordar com o som dos seus soluços e de sua voz me chamando apavorada para ligar para o meu pai. A culpa fez eu sentir o pior gosto de todos na minha boca. Sem que combinássemos nada, eu e meu irmão andamos ao mesmo tempo na direção da nossa mãe e fizemos o único ato que podíamos para tentar acalmá-la, a abraçamos.
**********
Eu tinha chegado em tempo para minha terceira aula graças a minha mãe que nos deixou na escola em tempo recorde. Ela tinha melhorado, nos deu uma bronca e nos castigou, mas depois disso não disse mais uma única palavra a não ser quando se despediu de nós para voltar ao trabalho. Ela não era muito de gritar, na verdade ninguém em casa além da minha irmã era, então quando estava brava com um de nós o que ela fazia era uma greve de silêncio e isso vindo dela era pior do que se passasse uma hora seguida gritando com a gente.
—Sua mãe ficou muito brava? - perguntou Marisol chamando minha atenção.
Eu estava distraída mexendo no canudo do meu suco como se fosse uma atividade fascinante. Meu humor não estava dos melhores desde que eu tinha chegado, mas como nossa mesa estava bem mais tranquila hoje só com Marisol e eu, a atualizei de boa parte dos acontecimentos da noite anterior e desta manhã.
—No começo ela ficou furiosa de um jeito que eu nunca tinha visto na minha vida. Depois ela começou a chorar por termos feito ela passar por um susto daqueles. - fiz uma careta para minha comida ficando sem apetite. - Isso me destruiu, ver ela chorando foi pior do que qualquer castigo. E me sinto tremendamente culpada. - me debrucei na mesa e enterrei o rosto nos meus braços. - Eu estava me divertindo tanto que nem por um momento me lembrei de mandar nem que fosse uma mensagem pra ela.
—Foi feio assim? - perguntou com uma expressão perturbada.
Marisol amava minha mãe como se fosse a sua própria.
—Ela conhecia Tâmara desde pequena, os pais dela são os padrinhos da minha irmã e ela vê a dor deles todos os dias. Então aquela garota morreu no rancho onde fomos e dois garotos desapareceram, dois garotos que estavam comigo pouco antes de isso acontecer. Eu achei um milagre ela não ter explodido antes por causa disso. - expliquei. - Todos os pais estão apavorados com essas mortes e esses sumiços.
—Eu entendo. - falou dando uma mordida em sua maça. - Esses dias eu cheguei duas horas depois do meu horário e encontrei minha mãe sentada na sala de pijama prestes a ligar para a polícia. Agora ela quer eu mande mensagem avisando se vou chegar atrasada em casa nem que seja dez minutos.
Não podíamos culpar nenhum deles pela preocupação.
—Mas então, - falou Sol desviando um pouco do assunto. - vocês ficaram de castigo?
—Não podemos ir para lugar nenhum que não seja a escola, trabalho ou casa por no mínimo três semanas, sem exceções. Foi por muito pouco que ela não nos proibiu de ir ao baile também.
—Ainda bem. - falou parecendo aliviada. - Porque falei com Anna e ela disse que podemos pegar nossos vestidos depois da aula. E eu não ia querer que você perdesse esse baile.
Sorri de sua animação. Para Marisol nunca era um tempo ruim para festas.
—Ainda vai se arrumar lá em casa? - perguntei arrumando minha bandeja.
—Claro! - falou se levantando. - Ainda mais se sua mãe puder fazer um dos maravilhosos penteados que ela sabe fazer no meu cabelo.
Ela estava mais animada do que nunca com aquele baile, ainda mais por Diego tê-la chamado para ser seu par, para o descontentamento de Raymond e alegria da minha amiga. Me deixei dominar pela sua animação e sorri enquanto a seguia para fora do refeitório. Jogamos o conteúdo de nossas bandejas no lixo enquanto Marisol tagarelava animada sobre o que iria vestir e foi então que, talvez apenas por instinto ou um reflexo da luz que me chamou a atenção, eu o vi. Parado do lado de fora das janelas da cantina estava Noah, ainda com as mesmas roupas de uma semana atrás, os cabelos um pouco desarrumados e um sorriso no rosto. Ele estava igual a última vez que eu o tinha visto e por mais estranho que fosse, no meio de tantos alunos andando de um lado para o outro, os seus olhos estavam focados diretamente em mim enquanto sorria. Eu não sabia o que era aquilo, se era uma ilusão ou delírio, mas eu não conseguia desviar meus olhos.
—Safira? Safira?
Marisol parou na minha frente bloqueando meu campo de visão, os olhos verdes questionadores enquanto me encaravam de forma séria. Eu não sabia por quanto tempo tinha ficado encarando aquela imagem por trás das janelas, mas pela preocupação em seus olhos não devia ter sido pouco tempo.
—O que disse? - pisquei para reorientar meu foco.
Ela olhou para as janelas que eu encarava e depois voltou a olhar para mim com uma expressão confusa.
—Eu perguntei se você está bem. - repetiu. - Estávamos conversando, ai do nada você parou, ficou branca como um fantasma e começou a encarar a janela. Estava começando a ficar preocupada.
Olhei por cima do seu ombro, para ver se ainda estava lá, mas onde eu pensei ter visto Noah não havia mais nada, nem sombras e muito menos indicios de que alguém estivesse lá em algum momento. Fechei meus olhos por um instante e chacoalhei a cabeça. Se já não bastasse os pesadelos agora eu também estava vendo coisas quando estava acordada.
—Está tudo bem. - falei sorrindo para ela da forma mais convincente que pude. - Eu apenas achei... Achei que tinha visto alguma coisa.
Ela estalou a língua e chacoalhou a cabeça, mas voltou a sua animação anterior quase que instantaneamente. Eu não queria estragar seu bom humor com coisas como aquela, não hoje.
—É porque sou sua melhor amiga que tenho que falar, você é muito estranha as vezes. - falou voltando a andar.
Olhei para a janela mais uma vez e abri um sorriso sem humor. Eu tinha passado a saber, já a algum tempo, que existem rostos nas sombras, formas que desvaneciam em meio a névoa entre a realidade e o sonho. E eu, agora, dormindo ou acordada, era capaz de enxergá-las, mesmo que isso me apavorasse. Então não podia discordar da lógica da minha amiga, embora mesmo a palavra "estranha" parecesse um eufemismo comparada a toda a esquisitisse que eu vinha enfrentando.
—Gostaria de poder discordar de você.
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Nota da autora:
Olá pessoal, sei que faz um século que não posto nada aqui e sei que vocês devem estar me odiando. Sinto muito por isso, de verdade. Mas as vezes, com toda a loucura e correria que fica na faculdade, com trabalhos e projetos, com todo o cansaço, eu me vejo sem motivação, e na grande maioria das vezes, sem tempo também, para postar ou escrever qualquer coisa. Odeio isso, e também odeio deixar vocês na mão e ter que ficar pedindo para que tenham paciência. Mas espero que possam me compreender.
Sei que esse não foi um dos meus melhores capítulos, mas espero que gostem. Falta pouco pro final deste início.
Boa Leitura!
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