Capítulo 20
A viagem foi tranquila, rápida e com pouca conversação. Era um dia quente e mesmo o vento forte das planícies não era capaz de aplacar o calor. Isso somado ao sacolejar do cavalo e à minha barriga ainda empanturrada do almoço - porque Nita faz comidas tão gostosas? - fez eu me sentir terrivelmente mal. Claro que não demonstrei tal coisa nem mesmo por um segundo sequer. Apenas controlei minha respiração fazendo o meu maior esforço para manter o alimento no estômago e rezando silenciosamente para que chegássemos em casa logo.
Finalmente os deuses atenderam minhas preces e logo avistamos a fazenda Kedard ao longe. Afrouxei um pouco as rédeas e com um movimento dos pés coloquei o cavalo num galope um pouco mais rápido, já sentindo que logo eu perderia os sentidos. Ao chegar na entrada principal, desmontei imediatamente quase pulando do lombo do animal e sentei-me na escadaria, respirando profundamente. Não demora e sinto uma mão quente acariciar minhas costas.
-- O que houve, Missy? Sente-se mal? -- ouço ao longe Ian perguntar, preocupado.
Uso o restante de minhas forças para estampar um sorriso no rosto e respondê-lo.
-- Preciso me deitar um pouco, está um dia muito quente hoje. -- murmuro -- Onde está Agnes?
-- Levando os animais até o estábulo.
Percebo então que realmente meu cavalo não está mais ali. Ian me ajuda a levantar com firmeza e delicadeza e seguimos até meu quarto, no caminho começam novas contrações em meu estômago e sei que não conseguirei segurar por muito tempo. Avisto minha porta com alívio.
-- Aquele é seu quarto, Ian. -- aponto o mesmo quarto de hóspedes que usou naquela noite -- Porque não se acomoda enquanto eu descanso um pouco?
Desvencilho-me de seus braços e corro ao meu quarto, indo direto para a bacia de louça vazia no canto, onde despejo meu almoço num grande jato.
-- Pelos deuses, Missy! -- Ian diz entrando no cômodo vindo até mim.
-- Não! Saia daqui, Ian. -- grito limpando a boca com mão trêmulas e sentindo ainda muita náusea.
-- Mas você está doente, deixe-me ajudá-la. -- ele pede.
Uma pontada de dor faz com que eu me dobre, uma dor diferente, agora em meu ventre.
-- Se quer me ajudar traga Agnes aqui. Agora vá. -- Ian permanece relutante -- Inferno, Ian, saia!
Meu grito estridente faz com que ele saia apressado e faz também com que uma nova rodada de vômito e dor se iniciem. Depois de finalmente esvaziar meu estômago deito-me no chão frio onde espero por Agnes, que não demora a chegar.
-- Senhorita! -- ela corre até mim -- Missy, o que houve? Está pálida e suando frio.
-- Não me sinto muito bem, Agnes. -- digo, fraca -- vomitei tudo que comi hoje e… ai!
Uma nova pontada em meu ventre faz com que me contorsa em dor e seguindo algum instinto primitivo ergo minhas saias e ali, em minha feminilidade, vejo uma pequenina porção de sangue escorrer, rapidamente sinto lágrimas inundarem meus olhos.
-- Senhor Mackenzie! Senhor Ian! -- Agnes grita abaixando minhas saias.
A porta é abruptamente aberta e ouço passos pesados e rápidos.
-- Encontre algum empregado e peça para que chamem um médico. Imediatamente!
Nossos olhares se encontram por um instante, e como num espelho, ambos mostram o medo que sentem. Eu assustada por esse bebê que eu não sabia o quanto queria até estar tão perto de perdê-lo, e Ian assustado por mim.
-- Agora, senhor Mackenzie! -- ela berra novamente.
-- Vai ficar tudo bem, querida. -- ele me garante antes de sair correndo.
Agnes ajuda a me levantar e sigo até a cama, ela retira meu vestido e me enfia numa camisola verde escura. Madalena chega totalmente apavorada e peço que ela retire aquela louça cheia de dejetos dali e ela o faz rapidamente.
-- Aqui, para a senhorita se limpar.
Agnes me estendeu um tecido branco levemente úmido que passo entre minhas pernas, retirando o sangue. Não é uma grande quantidade, mas ainda é assustador.
-- Vou perder esse bebê, Agnes? -- pergunto sem deixar transparecer muita emoção -- Talvez ele já esteja morto aqui dentro.
-- Bata nessa boca, senhorita! Ele está vivo e não, a senhorita não vai perdê-lo. Eu disse que a viagem seria esforço demais, que deveríamos pelo menos ter usado uma carroça, mas não me ouviu, não é? -- ela me acusa.
Sim, ela sugeriu isso porém me recusei pois nunca havia sentido nenhum dos males que a gravidez causa. Portanto pensei que seria seguro me arriscar dessa maneira, já que a razão desse esforço era nossa sobrevivência. Depois de alguns minutos de silêncio tenso, uma batida se faz ouvir da porta e Madalena entra, acompanhada pelo médico.
-- Boa tarde, senhoritas. -- diz, animado demais, retirando seu chapéu.
-- Madalena, faça companhia ao nosso convidado, por favor. -- peço.
-- Mas, senhorita Missy...
-- E me prepare um chá para acalmar o estômago. -- insisto novamente com súplica.
Isso funciona e ela se retira rapidamente, ansiosa por fazer algo de útil para sua patroa. O médico rechonchudo e com uma careca brilhante se aproxima da cama.
-- E então, qual a razão de ter enviado aquele homenzarrão para me retirar praticamente à força de minha casa? A senhorita me parece bem, apenas um pouco pálida.
Esse não é o médico da família, porém é o que mora mais perto da fazenda, bem no limite da propriedade. Um aproveitador, o que ele é.
-- Quantas moedas de ouro o farão esquecer que esteve aqui quando sair pela porta, doutor? -- pergunto direta.
Os olhos pequeninos se iluminam à menção do dinheiro, e ele nem tenta disfarçar o sorriso que lhe surge nos lábios finos.
-- Cinco moedas de ouro, senhorita Kedard.
-- Lhe darei sete. Agora faça o seu trabalho, eu suspeito que esteja prestes a sofrer um aborto.
O homem não esconde a surpresa, porém diante da promessa da pequena fortuna que receberá, não tece comentários. Depois de lhe relatar minuciosamente meus esforços e emoções intensas dos últimos dias, desde a morte de meu pai, e depois de me examinar apalpando meu abdômen, o médico diz que meu bebê não corre perigo.
-- O senhor tem certeza? Eu senti muita dor, e saiu sangue!
-- Senhorita, sei que está assustada, mas a quantidade de sangue foi mínima. Uma ou duas semanas de repouso, junto do chá que lhe receitarei e seu bebê estará forte novamente, assim como a senhorita.
-- Duas semanas sem sair da cama! Doutor eu preciso trabalhar para reerguer minha fazenda!
-- Não precisa ficar presa à cama, apenas não pegue peso, não caminhe muito, e nada de cavalgar, entendido? Se não tiver mais dor ou sangramento na próxima quinzena pode abandonar suas preocupações. Mas, senhorita, tenha em mente seu estado e não abuse novamente.
Aceno afirmativamente com a cabeça enquanto Agnes paga o médico e o acompanha até a saída. Ele me cumprimenta na porta, passando os dedos nos lábios, me garantindo de que estes estarão selados sobre o que aconteceu hoje, porém a leve expressão de escárnio em seu semblante me lembra que, mais cedo ou mais tarde, a minha condição virá a tona. Bem, isso é o que veremos. De acordo com minhas contas, ainda não completei a terceira lua dessa gravidez, portanto tenho ainda cerca de um, e se tiver sorte, dois meses até que minha barriga me denuncie. Até lá a fazenda já estará estabilizada e Ian Mackenzie estará longe daqui, seguindo com sua vida enquanto eu me isolarei dos olhos de todos, administrando tudo à distância com a ajuda de Agnes até que essa criança nasça, e eu a tome perante a sociedade como "minha protegida". Afinal, o que poderia dar errado?
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