Capítulo 9 - A pedra
A casa a qual Lorena agora se encontrava não se parecia nada com o lugar que as crianças-judias ficaram. Por um momento, tinha certeza de que estava na casa de Ella. Era feita de madeira e havia as mesmas duas portas – uma na frente da casa e a outra atrás. Era também a mesma mesa e o mesmo fogão a lenha. Mas no fundo do quarto havia mais camas e ainda mais livros nas prateleiras que ela se lembrava. Sobre a mesa, havia muitos potes feitos de barro. Dentro de eles, tinha um líquido verde – alguns mais claros outros mais escuros – que exalavam um cheiro forte e estranho, quase como o cheiro de um remédio.
Não havia ninguém na casa. Lorena percebeu, então, que havia entrado pela porta dos fundos, que estava fechada naquele momento. Ela não se lembra de ter fechado, mas a porta da frente – do outro lado da casa – estava aberta, e Lorena correu para alcançá-la.
Estava esperançosa em encontrar o campo e a colina que a levaria de volta à casa dos avós de Jim, mas não foi isso que viu. Estava no meio de um bosque, com enormes árvores de troncos grossos e folhas muito verdes. Várias pedras cinzentas - quase verdes por conta dos musgos – estavam espalhadas em volta dos troncos. Havia também pedras menores e mais redondas colocadas em frente ao jardim da casa até as escadas que levavam à varanda; como um caminho de pedras.
Lorena atravessou a varanda e seguiu pisando nas pedras. Então, à sua direita, ela viu quatro mulheres sentadas à margem de um pequeno lago. Todas usavam vestidos até os tornozelos. Três delas eram mais novas, mas a quarta era bem mais velha; mas não tão velha. Uma delas, uma mais jovem, tinha belos cabelos castanho-escuros, e era muito bonita aos olhos da menina. Esta foi a primeira a vê-la.
- Olha só – disse ela para as outras. – Que garotinha linda.
As outras se viraram para observar Lorena.
A primeira moça levantou-se e se afastou do lago. Lorena caminhava em passos hesitantes em sua direção. Quando a moça estava perto o suficiente, ela se agachou para ficar na altura da menina. Ela tinha olhos castanhos que, no fundo, lembrava Lorena alguém, mas não sabia quem.
A jovem mulher pegou nas mãos de Lorena. Suas mãos eram iguais: Brancas e de aparência delicada.
- Qual é o seu nome, querida? – ela perguntou.
- Lorena. – respondeu ela, tentando lembrar-se de quantas vezes já falara seu nome em um dia.
A moça sorriu.
- Pode me chamar de Ella. – disse ela.
- Ella? – perguntou a menina, confusa.
A moça assentiu.
- O que faz sozinha no bosque? – perguntou ela. – É perigoso!
Lorena deu de ombros. As outras mulheres se aproximaram, curiosas.
A mais velha delas perguntou:
- Está fugindo, menina?
- Eu...hã...- Lorena hesitou. – Acho que sim.
Ella sorriu.
- Todas nós estamos. – disse ela, levantando-se, mas não soltou uma das mãos de Lorena.
A menina franziu o cenho.
- Por quê? - perguntou.
Não foi a jovem Ella quem respondeu. Outra mulher, ruiva e com olhos muito azuis, disse:
- Caça às bruxas.
A mais velha lhe lançou um olhar de advertência.
- Por favor, Marie. Ela é só uma criança.
Marie olhou para a menina, e Lorena olhou para ela.
- Você é uma bruxa? – perguntou a criança. – Você não parece uma bruxa.
- Teoricamente, somos. – Ella disse. – Mas não vamos fazer mal a você. Que tal um chá? Você gosta de chás?
Ella começou a levá-la de volta para a casa de madeira, e Lorena não resistiu. Deixou que a jovem mulher a guiasse, seguida pelas outras três.
- Sim. – respondeu a menina, subindo as escadas da varanda. – Obrigada.
Então, ela serviu chá à menina, oferecendo uma cadeira para que ela se sentasse. Lorena observou novamente os potes e os pedaços de folhas sobre a mesa.
- O que são essas coisas? – perguntou a menina.
- São remédios. Fazemos com ervas.
- Remédios? – perguntou ela. – Não se parecem com remédios.
Ella riu.
- Somos curandeiras. – disse ela.
- Mas você disse que vocês eram bruxas – lembrou Lorena.
Ella deu de ombros.
- Dizem que curandeiras são bruxas. – disse a moça.
- Quem disse? – perguntou a menina.
A mulher mais velha riu, enquanto fazia algo no fogão a lenha. Provavelmente mais chá.
- Essa menina é curiosa. – disse ela – Cuidado com o que ela pergunta, Ella. É muito nova para saber certas coisas.
- Ela só quer saber. É uma menina inteligente. – retrucou Ella, voltando a olhar Lorena com seus gentis olhos castanhos. – Bem, a Igreja é quem disse.
Lorena bebeu um pouco do chá, que estava muito bom.
- Mas a igreja é só um lugar. – disse ela. – Ela não fala.
Ella balançou a cabeça, rindo.
- Ah, não. Não a Igreja. As pessoas da Igreja.
- Ah... – murmurou Lorena. – Então as pessoas acham que vocês são bruxas? Mas vocês não são más.
- Nem todas as bruxas são más. – afirmou Ella.
- Não é isso que a Igreja diz. – disse Marie.
- A Igreja está contra todos nós. – murmurou a outra moça, amassando as ervas na mesa.
- Não entendo. – disse Lorena. - Vocês são bruxas ou não são?
- A Igreja diz que todas as mulheres são influenciadas pela bruxaria – Ella disse. – Mas não é verdade...
A mulher mais velha voltou-se para Ella.
- Não fale bobagens, Ella. Não se pode contradizer a Igreja!
- Como assim? – perguntou Lorena, olhando para Ella. – Então todas elas têm poderes mágicos?
A mais velha revirou os olhos. Ella parecia estar se divertindo.
- Sim. Poderes mágicos fazem a Igreja morrerem de medo! – ela fez uma careta engraçada, mostrando em como a Igreja se sentia em relação a mulheres-bruxas.
Lorena riu, mas a mulher mais velha não parecia achar graça.
- Isso não tem graça, criança. – disse ela. - E você está dizendo bobagens mais uma vez, Ella. Diga à menina: Nós, mulheres, somos criações do Diabo para perturbar os homens. Por isso somos inclinadas à bruxaria e à magia negra.
Ella revirou os olhos.
- Lorena, querida, você vê chifres de satã em mim? – perguntou ela.
A moça das ervas soltou uma gargalhada. A mulher mais velha ficou vermelha de raiva, e Marie bateu palmas.
- Oh! – exclamou Marie. – Tia, por que o Diabo criaria uma criatura tão bela como eu?! Aliás, todas nós somos irresistíveis.
- Fique calada, ruiva. – disse a tia. – Se formos pegas, você vai ser a primeira a queimar no inferno!
Marie deu de ombros.
- Já disse que vou dar um jeito no meu cabelo antes disso acontecer. – murmurou ela. – E eu não tenho medo. Se formos mesmo criações do Diabo, ele vai no receber bem no inferno.
Lorena estava confusa.
- Diabo? Mas ele não existe!
Ella olhou para a menina indignada.
- Ignore, minha querida. – disse ela. – Joana está ficando velha e enjoada. E a cada dia que passa acredita ainda mais das afirmações da Igreja, pelo que eu estou vendo.
Joana, a mulher mais velha, apenas bufou.
- Se a Igreja diz essas coisas, ela é que é má! – disse Lorena, séria. – Vocês não têm chifres!
Marie e a outra mulher riram.
- Viu, Joana? Até a menina concorda. – disse Ella.
- Diga isso aos bispos – murmurou Joana. – Diga a eles para acabar com a Inquisição. Só assim vou ficar tranquila em relação a isso.
Ella deu um sorriso triste.
- Ela tem razão. – disse a moça. – Muitas de nós já morremos por causa disso.
- Ah. Eles vão matar vocês? – perguntou Lorena, com um pouco de medo, pois havia gostado muito delas; principalmente de Ella.
- Eu espero que não, Lorena.
- Então a Igreja não gosta de meninas? – perguntou Lorena. – Meninas pequenas e adultas?
Ella assentiu.
- Não. Eles não gostam. Mas nós, curandeiras, somos as principais vítimas. Há curandeiros também, e vários deles morreram. Mas as moças são maioria. Muitas, muitas já foram queimadas e enforcadas.
- Só por que vocês são bruxas? – perguntou a criança.
Ella balançou a cabeça em sinal positivo.
- Sim. – ela se inclinou da cadeira para sussurrar no ouvido de Lorena: - Como eu disse, a Igreja tem medo de nós. E, quando morrermos, eu acredito que nasceremos de novo. E tudo isso terá acabado.
Lorena sorriu. Ainda não entendia algumas coisas, mas o otimismo de Ella a deixou feliz. Ela achava que ''tudo isso'' poderia se referir a todas as coisas horríveis que ela tinha visto.
Alguns minutos se passaram. Ella conversava com Lorena, perguntando-a de onde ela veio e o que estava fazendo ali. A menina disse a verdade: sobre a casa de madeira no meio do campo e sua missão de achar dez chaves para uma velha que também se chamava Ella – e que, a cada porta que atravessava, se via em um lugar diferente.
Para a surpresa de Lorena, a moça não se surpreendeu. Ao contrário: Pareceu acreditar em cada palavra dela. Depois se levantou, caminhou para o fundo da casa e abriu uma das caixas perto das camas. Quando voltou ao encontro da menina, Lorena viu que ela tinha algo em uma das mãos.
Em seguida Ella disse, baixinho, estendendo a mão com uma chave dourada:
- Talvez esteja procurando isso. – ela sorriu, enquanto Lorena pegava a chave. A moça então acariciou seu rosto em um gesto maternal.
Lorena estava prestes a colocar a chave na velha bolsa quando percebeu que não estava com ela. Então, colocou-a no bolso de sua calça de pijama.
- Obrigada. – a menina agradeceu, e Ella sorriu novamente.
De repente, ouviu-se um forte estrondo na porta da frente da casa, que permanecia fechada. Parecia que alguém a chutava.
Joana correu para fechar as janelas. Marie ficou paralisada, com os olhos arregalados, e a outra moça se afastou. Ella parou de falar de repente e agarrou o braço de Lorena, protegendo-a. A criança apertou sua mão, sem desgrudar os olhos da porta.
Joana fez um movimento com as mãos para que as outras fugissem pela porta dos fundos. Ela tinha uma faca na mão direita, preparada para proteger todas elas.
Marie foi a primeira a alcançar a porta, seguida pela outra moça e Ella, que ainda segurava Lorena.
A porta não aguentou e se rompeu na quarta batida. Lorena olhou para trás enquanto corria e atravessava pela porta, observando Joana enfrentar cinco homens. Dois deles a agarrou, tirando a faca de sua mão, enquanto ela se debatia e gritava cheia de fúria. A menina arregalou os olhos, enquanto tentava acompanhar o ritmo de Ella.
- Olhe para frente! – a moça gritou para ela, agarrando sua mão com força. Lorena obedeceu, correndo ainda mais rápido. O terreno ficou íngreme, e elas desceram com dificuldade pela terra enquanto passos pesados e determinados as seguiam. A menina tinha que salvá-las, mas não sabia como. Afinal, ela era apenas uma criança de seis anos.
Repentinamente, a menina ouviu um grito. Era Marie. Um dos homens havia alcançado ela, e ele a dominava com certa dificuldade. A mulher era mais forte que imaginavam. Ella parou, pronta para defender a outra, mas algo fez com que Lorena a puxasse para continuar. Ao fazer isso, a moça tropeçou e Lorena se viu rolando encosta abaixo, ainda segurando Ella.
Quando elas se soltaram, se viram perto de algumas pedras grandes e cinzentas. A moça fez com que Lorena entrasse entre uma delas; e elas ficaram ali, com a respiração irregular. Ambas tinham cortes pelo corpo devido à queda.
A menina achou que elas tinham conseguido distrair os perseguidores, mas estava enganada. Elas ouviram passos descendo o terreno acima delas.
- Procure-a! – uma voz gritou, e Ella se encolheu e abraçou Lorena. A moça tremia de medo, e seu coração batia forte.
Lorena se afastou um pouco dela. Se saíssem dali, os homens malvados da Igreja iam pagar Ella e matá-la, como ela mesma contou. Mas, se não saíssem, aconteceria o mesmo.
A menina lembrou-se de que não estava com sua velha bolsa. Talvez lá tivesse alguma coisa que pudesse ajudá-las, mas agora não era mais possível. Então, em um impulso desconhecido, a criança tirou o colar de pedra lilás do pescoço, enquanto Ella a observava em silêncio. Os passos pareciam se aproximar cada vez mais.
Lorena olhou para o cordão com pedra brilhante e colocou-o no pescoço de Ella, dizendo com a voz trêmula:
- Seja corajosa.
A pedra pareceu brilhar por um segundo, como uma estrela. Então, quase que imediatamente, duas mãos fortes e grandes agarraram os braços de Ella, e a moça foi arrastada para fora do esconderijo de pedras. Lorena reprimiu um grito de susto e fechou os olhos e os ouvidos para não ver o desespero da nova amiga e nem ouvir seus gritos abafados.
Lorena tremia. Uma sensação horrível invadia seu peito, e ela se esforçou para não chorar. Uma visão terrível veio em sua mente: Ella, Joana e as outras duas moças amarradas e sendo engolidas pelo fogo, enquanto várias pessoas assistiam sem fazer nada. Ela ouviu pessoas gritando de triunfo e as mulheres gritando de agonia, enquanto estas eram queimadas vivas.
Todos os sons desapareceram de repente. Quando a menina saiu do meio das pedras, completamente atordoada, começou a correr em direção à casa de madeira. As árvores estavam mais escuras e sem folhas. Não havia ninguém no bosque – nem as quatro mulheres e nem as pessoas malvadas da Igreja. Lorena corria rápido como o vento, e, quanto alcançou a casa, ela parecia muito, muito mais velha. O lago havia secado e as pedras que levavam à varanda estavam ocultas pelo mato. Quanto tempo havia se passado? Lorena não sabia.
Querendo sair dali rápido, ela pulou as escadas da varanda e passou correndo pela porta arrebentada. Ela achou que teria que passar pela porta dos fundos, mas estava errada. Ao passar pela porta da frente, a escuridão tomou conta de sua visão e ela não sentiu mais seus pés sobre o chão.
Depois de alguns segundos, ela caiu de joelhos, ouvindo o som de tiros.
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