Capítulo 6 - O pão
No meio da noite, quando Tales e Kerina dormiam profundamente, Lorena se levantou da cama lentamente e caminhou até a porta, tentando não fazer barulho no chão de madeira. A chave que achara debaixo dos lençóis estava guardada na velha bolsa, mas não foi preciso pegá-la. Na porta do quarto não havia fechadura.
A menina imaginou que, mesmo sem a chave, ao passar por aquela porta ela estaria em outro lugar – como acontecera nas últimas vezes. Mas não foi isso que aconteceu. Estava na mesma casa. Mesmo assim, ela caminhou pelo corredor até encontrar o quarto da mãe das crianças. A porta estava aberta, e a moça dormia tranquilamente, com o corpo de lado e o rosto em direção à porta. Seus cabelos negros e cacheados continuavam penteados.
Por um momento, Lorena não sabia o que fazer. Só sabia que não podia ir embora sem se despedir daquela mulher.
Delicadamente, a menina colocou a mão no ombro dela. Lembrou-se então que não sabia seu nome.
- Tenho que ir embora. – a menina sussurrou. – Meus pais estão me esperando. Ella também.
A mulher mexeu a cabeça, mas não acordou. Lorena, no entanto, não queria acordá-la. Já havia se despedido.
Ela saiu do quarto e atravessou corredores, entrando em algumas salas por engano. Finalmente, achou a porta de entrada e viu o que eles usavam para trancar as portas – uma prancha de madeira atravessada entre a parede e a porta.
Lorena arrastou a madeira e abriu a porta, passando por ela. A rua estava vazia e silenciosa naquela hora, a não ser por um barulho distante que a menina não conseguiu identificar de imediato. Mas, ao andar pela rua e passar pela praça, o som foi se tornando cada vez mais claro: o choro de uma pequena criança.
A menina olhava para todos os lados, mas não via nada. Decidiu, então, seguir o som. No começo foi difícil saber se estava vindo da esquerda ou da direita, mas algo a fez seguir em frente.
O som abafado ficava mais alto à medida que Lorena se afastava do mercado. A casa de Kerina e Tales não estava mais a vista – ela havia andando mais do que tinha imaginado. Então, no fim da praça e próximo a uma rua que não havia casas, ela viu um vaso. Lorena correu, com o coração batendo forte.
Dentro do vaso, feito de argila, havia um bebê. Ele estava enrolado em um pano fino e velho, chorando e fechando as mãozinhas. Lorena estava com os olhos arregalados de horror. Ela tirou a pequena criança de dentro do vaso, se perguntando que tipo de pessoa faria uma coisa daquelas com uma criatura tão pequena e frágil.
Ela carregou o bebê e, ao tirar o pano para enrolá-lo melhor, descobriu que era uma menina.
- Tenho que achar a mãe dela! – ela exclamou, olhando para o vaso de argila. A menininha continuava chorando.
Ela está com fome e com frio, Lorena pensou. Logo desistiu de procurar a mãe da criança. Se a mãe realmente a quisesse, não teria a abandonado.
Lorena ficou com raiva daquelas pessoas, e queria sair logo dali. Abraçou a criança, fazendo-a para de chorar. Enquanto isso, ela atravessava a praça e ia em direção ao mercado. Ela não se lembrava exatamente de qual porta ela chegou à aquele lugar, mas jurava de ter visto uma entre as pessoas que transitavam entre as colunas.
Segurando o bebê do melhor jeito possível e tentando não tropeçar, Lorena chegou ao mercado, agora vazio. Então, ela achou a pequena porta, também sem a fechadura.
Percebeu, então, que seus olhos estavam cheio de lágrimas. Estava triste, muito triste. Ela sentiu a menininha gemer em seu ombro, e Lorena segurou sua mãozinha. Apesar de ser menina, Lorena nunca gostou de brincar de bonecas. Elas eram sempre sem graça. Mas a menina não deixava de gostar de bebês – esses eram de verdade, apesar de dar muito trabalho para os pais e as mães – principalmente para as mães. Quem sabe a mãe daquela menininha não queria ter trabalho de cuidá-la?
- Está tudo bem. – sussurrou Lorena. – Estou com você.
Apertando-a levemente contra o peito, Lorena empurrou a porta do mercado. Estava aberta. Quando passou por ela, com o bebê em seus braços, tudo ficou escuro por um momento.
De repente, Lorena viu uma luz tênue e amarelada. Sabia que aquela era uma saída a qual ela tinha que seguir, pois a porta atrás de si não mais existia.
E a criança não estava mais em seus braços.
●●●
A luz foi se aproximando à medida que Lorena se dirigia a ela. De repente, a escuridão desapareceu e deu lugar a uma paisagem de terra, lixo e árvores secas. As casas ao redor dela pareciam ser feitas de barro, como as casinhas de João-De-Barro que havia na casa dos avós de Jim. Crianças, mulheres e homens magricelas e escuros como a noite transitavam por ela, sem vê-la. Como aquelas pessoas eram estranhas e magras! Pareciam cansados e doentes, mas, mesmo assim, alguns adultos levavam grandes baldes nos ombros e na cabeça. As crianças, a maioria delas nua no meio das ruas cheias de lixo, brincavam. Ou, pelo menos, era isso que eles pareciam fazer a primeira vista. Havia um garotinho, especificamente; sozinho no meio do lixo, enquanto a suposta mãe carregava um recém-nascido e segurava pelas mãos outra criança magricela. A mulher mal parecia ter leite para amamentar seu bebê.
O garotinho, no entanto, não brincava sozinho no meio do lixo. Ele procurava por algo no chão, entre aqueles entulhos. Lorena caminhou em sua direção, tentando ignorar o fedor do lugar.
Então, quando chegou perto o suficiente, viu o que o menino nu e magro procurava: comida. Lorena viu, um pouco enjoada, os ratos gordos e feios transitarem pelos detritos no chão, passando rapidamente por eles. O garotinho tentou pegá-lo, mas o rato foi mais rápido.
O garotinho então olhou para Lorena, com seus olhos pequenos e selvagens – mas ao mesmo tempo desesperados por algo que seu corpo exigia. A menina não precisou pensar muito para saber o que fazer. Ela se agachou na frente dele, dizendo:
- Não coma o rato.
Enfiando a mão na bolsa, ela lhe entregou o pão. Lorena havia achado que Ella havia colocado aquele pão na bolsa para o caso dela sentir fome, mas, depois daquilo, a menina não tinha mais tanta certeza.
O garotinho agarrou as mãos de Lorena, abrindo a boca e mordendo o pão com ferocidade. Ela achou que o menino fosse morder sua mão também, por isso tentou se afastar – mas não conseguiu. Quando viu, mais três, quatro, cinco crianças estavam envolta dela.
O pão caiu no chão quando ela se afastou e, como animais selvagens brigando por um pedaço de carne, as crianças – mais novas do que ela – empurraram uma contra as outras, algumas delas chorando e gemendo.
Lorena se afastou, com os olhos arregalados. Nunca havia visto uma coisa tão terrível. Aquelas crianças estavam com muita fome, e Lorena sabia o quanto era ruim ficar com fome. Agora, ela entendia porque sua mãe sempre dizia para não desperdiçar comida, pois existiam muitas pessoas que não tinham o que comer. Mas Lorena nunca havia visto essas pessoas. Apenas cães, procurando nos lixos alguma coisa para comer. Sempre que os via, sentia-se triste pelos cachorrinhos. Mas e aquelas crianças, aquelas pessoas magras e frágeis? E ela havia somente um pão. Apenas um pão! Lorena deu as costas paras as crianças e correu, entrando em qualquer casa de barro que aparecera na sua frente. Seus olhos estavam cheio de lágrimas. Crianças choram à toa, era o que os adultos diziam. Mas Lorena não se importava. Ao entrar na casa, ela se sentou no canto e, sem olhar ao redor, colocou o rosto entre os joelhos e segurou as lágrimas, abraçando suas pernas. O que ela desejava, naquele momento, era um milhão de pães; muitos, muitos pães para dar a aquelas crianças desconhecidas.
Ela sentiu algo caindo sobre seu ombro, atingindo o chão logo em seguida. Quando levantou a cabeça e olhou para o lado, a quarta chave dourada estava lá, no chão ao seu lado. Lorena olhou para cima em seguida, notando panelas e vasilhas de plástico penduradas em um suporte de madeira com vários pregos. A chave esteve ali, esperando pela menina.
Lorena queria sair logo daquele lugar feio e melancólico; e, por isso, agarrou-se logo à chave e olhou para os lados, analisando a casa pequena e de aparência desconfortável. Não havia ninguém lá dentro. Ela viu apenas uma mesa velha e pedaços de galho no chão para fazer fogueira. Mas, bem no canto de uma das paredes, a menina viu uma abertura retangular baixa e escura.
Rastejando pelo chão de terra abatida da casa, Lorena se encolheu e entrou na abertura da parede. Apenas uma criança ou um adulto muito pequeno conseguiria se encaixar ali. Não parecia ser muito fundo, mas, ao se afastar cada vez mais da entrada, percebeu que ali havia uma escada, feita de metal enferrujado. Quando ela olhou para baixo, para onde a escada levava, viu o quanto era alto e escuro.
Lorena ouviu barulho de batidas de asas e viu vultos passando por ela. A menina tinha que admitir que estava com muito medo, mas ela era corajosa. A pedra cor de violeta que Ella havia dado a ela estava ali, pendurada em seu pescoço, debaixo da camisa escura e grande. Lorena a pegou, colocando-a sobre a camisa. A pedra brilhava, dando a ela ainda mais coragem para seguir o caminho; pois havia pelo menos uma luz para guiá-la.
Apoiando o pé no primeiro degrau abaixo dela, Lorena começou a descer. Os degraus estavam úmidos e sujos, e água pingava em sua cabeça e em sua roupa. O chão lá embaixo não parecia chegar nunca. Morcegos passavam por ela, guinchando e batendo na escada e nas paredes. A menina tremia e suava frio, e tentava não se escorregar e nem se assustar com os morcegos que voavam em sua volta.
Mas a luz arroxeada da pedra continuava a brilhar em seu peito; e Lorena não parou nem mesmo quando o medo pareceu ser maior que sua força.
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