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Capítulo 2 - A Salvadora de Ella










À noite, quando a chuva começou a cair sem parar, o vovô Edgar contou histórias para Lorena e Jim. Ele chamava aquelas histórias de mitologia grega.

Como estava chovendo constantemente e eles escutavam os trovões, Edgar contou sobre Zeus; e, depois, dos outros onze olimpianos. As crianças adoravam imaginar como seriam os deuses. Para Jim, o deus dos trovões tinha cabelos cinza espetados – provavelmente ele associou ao choque - e olhos amarelos faiscantes. O garoto parecia gostar daquele deus. Lorena, entretanto, alimentou um afeto maior pela deusa do amor e da beleza.

Enquanto isso, os três comiam mais rosquinhas com suco de laranja. Lorena sentia o ruído do vento e o ar frio que passava por debaixo da porta. Havia uma goteira no canto da sala, mas nada que atrapalhasse a noite deles.

Quando ficou tarde demais para ficarem acordados, as crianças foram para o quarto. O vovô Edgar dormiu no sofá logo depois de contar a última história. Ayla os acompanhou e, assim como no dia anterior, cobriu e beijou Lorena como se fosse sua neta.

O grande quarto escureceu quando a vovó Ayla apagou as luzes e fechou a porta. Lorena estava com os olhos pesados de sono, mas sua mente não a permitia relaxar. Pensava constantemente na casa de madeira que não existia.

- Jim? – ela chamou pelo amigo na outra cama.

- O quê? – ele respondeu.

- Eu vi a casa. Não estava mentindo. – desabafou ela. – Depois ela sumiu de novo.

A menina falava tão sério que Jim dessa vez não riu. Ele pareceu pensar por um momento e depois disse:

- Talvez seja Zeus pregando uma peça em nós.

- Quem sabe... - murmurou a menina, inconformada.

Lorena não disse mais nada. Virou-se para um lado da cama e fechou os olhos. Apesar do sono, ela não conseguia dormir. Meia hora se passou e a menina já tinha desistido de tentar encontrar uma posição melhor na cama. Àquela hora Jim já dormia profundamente.

Mesmo na escuridão, Lorena saiu da cama e se dirigiu à janela. Através das cortinas, ela viu que havia parado de chover. Ela conseguia ver claramente a colina. Determinada a seguir o que a sua curiosidade mandava, ela pegou seus chinelos e foi lentamente até a porta do quarto, abrindo-a.

Ayla e Edgar dormiam no outro quarto. Lorena passou por eles com passos lentos até chegar à porta da sala. A chave estava lá.

Tentando fazer o mínimo de barulho possível, Lorena pegou na chave e a girou até ouvir o clique. Olhou para trás para se certificar que não havia ninguém observando e girou a maçaneta.  A porta se abriu e, sem pensar em mais nada, saiu da casa. Desceu as escadas da varanda e pisou na grama molhada. Seus pés sobre o chinelo escorregavam enquanto ela corria pela noite escura e úmida. Apesar da chuva anterior, não havia nuvens cinzentas no céu. Uma lua brilhante apareceu, guiando-a colina acima.

Quando chegou no topo, seu coração bateu mais forte. A casa estava lá, e havia alguém dentro dela. Ela viu, de longe, a luz da casa atravessar as frestas das janelas e da porta fechada.

A menina desceu a colina em direção à casa de madeira. Quando subiu no degrau da varanda, ela ouviu um barulho. Sua razão dizia que era melhor ela voltar para a cama e dormir. Mas outro sentido dizia para que ela ficasse ali e descobrisse quem morava naquele lugar – e porque a casa tinha desaparecido na tarde anterior.

A porta se abriu antes mesmo de Lorena se aproximar o suficiente. Ela deu um pulo e se deparou com um par de olhos escuros desbotados de uma velha mulher. Ela era bem mais alta que a menina e tinha longos cabelos grisalhos.

- Minha criança! – a velha exclamou. – Há quanto tempo eu estou esperando por você!

Lorena estava confusa, pois nunca tinha visto aquela velha antes.

- Entre, minha querida. - a mulher colocou a mão em seu ombro e a guiou para dentro da casa. Não era separada por cômodos, como em uma casa normal. Na frente dela, havia uma mesa de madeira com algumas frutas, uma lareira e uma espécie de cozinha – um fogão a lenha (que não parecia ser muito usado) e algumas prateleiras. No fundo da casa, uma pequena cama, um sofá verde velho e uma estante com poucos livros. Mas o que mais lhe chamou atenção foi a porta do outro lado.

Nas paredes, havia vários papéis antigos com desenhos de plantas e anotações antigas.

A menina estremeceu quando ouviu a porta se fechar atrás de si.

- Desculpe. – disse a criança em um tom gentil. – Mas eu não conheço a senhora.

- Ah, sim, você não me conhece. Mas eu conheço você. – disse a velha, puxando uma das cadeiras. – Sente-se, minha menina. Não vou fazer mal a você.

- Preciso voltar. – disse Lorena. – Vovó Ayla vai ficar furiosa.

Mesmo assim, ela se sentou em uma das cadeiras.

- Mas logo agora? Você mal chegou! – protestou a velha. – Esperei tempo demais até você aparecer. Não pode ir embora agora.

- Por quê? Você me conhece?

- Ah, sim! – exclamou a velha. – Vi você em meus sonhos. Será minha salvadora. Qual é seu nome, querida?

- Lorena – respondeu a menina.

- Lorena... Belo nome, criança. Tem um forte significado. É de você mesmo que preciso! – a mulher observou-a com os olhos atentos. - Sabe, já fui uma moça muito bonita. Assim como você. É uma das únicas coisas que me lembro.

- Qual é o seu nome? – perguntou a menina.

- Pode me chamar de Ella. Acho que esse é meu nome. Quer comer alguma coisa, querida?

- Não, obrigada. – disse Lorena, levantando-se. – Só vim ver se alguém mora aqui. Preciso voltar.

O sorriso de Ella desapareceu. Lorena não queria deixá-la triste, mas não podia ficar com ela. Sua mãe sempre dizia para não confiar em estranhos. E aquela velha era uma estranha muito estranha.

- Mas, criança, preciso de sua ajuda! – disse Ella. – Ou não vai ajudar uma pobre velha? Não farei mal a você. Ah, esses adultos que ficam inventando histórias sobre bruxas más!

- Não estou com medo de você. É que eu não poderia estar aqui.

- Por que não? Você veio aqui por algum motivo, não? – disse Ella. – Por favor, minha cara Lorena. Ajude a velha. Posso até ser uma bruxa, mas não sou má!

A menina se virou e olhou para a velha. Olhou para seus pés e o par de chinelos, molhados e sujos de terra.

- Como posso ajudar a senhora? – perguntou ela.

Ella abriu um sorriso.

- Sabia que você era uma boa menina! – ela pegou na mão de Lorena e a levou para o outro lado da casa. Ela fez a menina se sentar no sofá. – Tem certeza de que não está com fome? Só não poderei fazer nada quentinho. Tenho medo de fogo!

- Não precisa, senhora Ella.

Ella se sentou ao lado dela do sofá.

- Preciso muito da sua ajuda – ela repetiu. – Ninguém nunca notou minha presença antes. Por isso, não posso ser desonesta com você. Minha cara Lorena, você é corajosa?

- Acho que sou.

- Ótimo! Guarde isso com você – ela tirou um colar com uma pedrinha lilás do pescoço. A pequena pedra era quase do tamanho do dedão de Ella. Na verdade, ela era roxa com uma tonalidade amarelo-escuro e transparente.

A velha colocou o cordão ao redor do pescoço da menina e bateu palmas.

- Ficou lindo. – disse ela. – Um dia, alguém me presenteou com esse colar. Há muito, muito tempo. Não me lembro quem foi... Mas essa pessoa disse: Seja corajosa. Digo o mesmo pra você.

- Por quê? – perguntou Lorena.

- Pois vai precisar se quiser me ajudar. Você é uma menina muito inteligente, não é? Vejo em seus olhos que tira boas notas na escola!

- Tiro, sim. – confirmou a menina.

- Mas a verdadeira sabedoria fica aqui – Ella colocou o dedo no coração da menina. – E não aqui. – ela apontou para a sua cabeça.

- No coração? – Lorena estranhou. – Como assim?

- Apenas não se esqueça disso. – disse Ella.

Ao lado do sofá, havia um baú velho. Ella o abriu e pegou alguns objetos, colocando-os em cima do sofá. Lorena viu uma moeda, um par de sapatos velhos, uma rosa vermelha, um ursinho de pelúcia e uma caixinha de música. Depois, colocou tudo em uma velha bolsa de couro esverdeado com uma longa alça.

- Já ia me esquecendo... – ela foi à cozinha e pegou um pão. Olhou para Lorena e piscou. – Caso sinta fome!

Ella enrolou o pão em um pedaço de pano e coloco-o na bolsa. Lorena observava tudo com curiosidade. O vento frio batia em seus braços nus, e ela percebeu que tremia.

- Está com frio, querida? – perguntou Ella.

- Estou. – respondeu a menina.

Ella abriu o baú novamente, pegando uma blusa de manga comprida grande demais para a criança. Era preto, feito de lã grossa.

- Obrigada. – Lorena disse, vestindo a blusa. Apesar de quase cobrir toda a sua perna, estava ótimo. Logo ela não sentia mais frio. – Por que não acende a lareira? A senhora não está com frio?

- Ah, não! Não sinto frio.

A pedra cor de violeta pendurada no pescoço de Lorena começou a esquentar junto com seu corpo.

- A senhora ainda não disse o que devo fazer para ajudá-la.

- Ah, sim! – exclamou Ella. – Está vendo aquela porta?

Lorena olhou para onde Ella estava apontando. Ela se levantou e se dirigiu à porta, pois vira algo que a deixou perturbada.

- Sim. – respondeu a menina. – Por que ela tem tantas fechaduras?

Lorena observou as várias fechaduras na porta; em cima, no meio e embaixo.

- Pois há dez chaves – disse Ella, como se fosse óbvio. – Mas só tenho uma, que está desgastada demais. Preciso de todas elas para abri-la.

- Por que dez chaves? E para onde a porta leva?

- Para o lado de fora. A liberdade! – disse Ella.

- Mas...e a outra porta? – Lorena apontou para onde ela entrou.

Ella balançou a cabeça negativamente.

- Não posso passar por ela, querida.

- Mas você passou por ela. Quando me puxou para dentro.

- Sim, mas não me leva para onde quero ir!

Lorena balançou a cabeça.

- É só dar uma volta na casa. Vou te mostrar.

Ella não impediu a menina. Quando ela atravessou a casa e passou pela mesa, girou a maçaneta e abriu a porta.

Lorena deu um passo para trás, com os olhos arregalados.

Não havia campo, nem árvores, nem a lua e nem a colina. Estava de dia. Havia uma rua de pedra e várias casas. Pessoas com vestimentas estranhas passavam pelas ruas. Cavalos, mulas e coches passaram pela menina parada na porta.

Lorena fechou a porta rapidamente e se afastou. Depois, olhou para Ella encolhida no sofá velho. Ela queria perguntar várias coisas, mas não conseguiu. Sabia o que ela tinha que fazer: atravessar a porta.

Mesmo assim, Ella disse:

- Vá em frente e siga sempre o seu coração, criança.

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