A casa de campo
~em parceria com a Apenas_Kaari~
Odiava ir para a casa da vovó durante as férias. A velha casa ficava enfurnada no meio do nada na Ilha Jeju, o sinal de internet era péssimo e havia muitos barulhos esquisitos durante a noite. Eu repudiava tanto aquele lugar que sempre dava um jeito de escapar, até que a vovó adoeceu e me vi indo passar o final de semana com ela, mas nunca imaginei que aquela poderia ser a experiência mais bizarra que já tive em toda a minha vida.
— Eu falei ao seu pai que você não precisava vir, Hanui. — Vovó tornava a dizer enquanto eu olhava ao redor, contemplando o marasmo que delimitava a casa e a pequena vizinhança dispersa — Eu só estava sentindo uma dor na coluna, mas deve ser a lua cheia.
Tudo estava exatamente igual à última vez que eu estive ali, há muito tempo. Contentada com a distância entre mim, a cidade e qualquer sinal de celular, voltei-me a senhora em minha frente.
— Está tudo bem, vó. — Comentei, analisando mais uma vez a barrinha de sinal do meu smartphone, totalmente zerada. — Queria te ver antes do Natal.
Ela sorriu deixando com que várias rugas se formassem nas extremidades dos seus olhos já quase fechados. Costumava ver minha avó quando ela nos visitava em Seul, o que significava que eu não ia àquele lugar a uns bons sete anos.
Deixei minha mochila no quarto de hóspedes e desci até a cozinha, esperando que minha avó precisasse de ajuda. No entanto, ela só me analisou por um segundo como se eu estivesse prestes a atrapalhar o seu processo de cozer.
— Vá dar uma volta. — Sugeriu enxugando as mãos no avental. — Acho que você pode ter um pouco de sinal nos fundos da casa.
Roubei um pedaço de cenoura que tinha acabado de ser cortado. — Tem certeza?
— Claro, estou acostumada a cozinhar sozinha e sem plateia. Chamo você quando estiver tudo pronto. — Hesitei um pouco antes de sair. — Vá logo, Hanui! Só não adentre muito a floresta, senão não saberá voltar.
Assenti rapidamente sabendo que se mamãe soubesse que eu não estava prestando a devida companhia e ajuda, eu ouviria poucas e boas quando voltasse. Não ficaria de castigo, é claro. No auge dos meus 20 anos, meus pais já tinham descoberto que fazer com que eu me sentisse culpada dos meus erros era bem mais eficaz do que me punir com um castigo físico.
Saí pela porta dos fundos, encontrando um quintal vasto, onde não havia demarcação exata entre o fim da propriedade da vovó e o início da floresta. Mas eu só queria um pouco de sinal para falar com o Dongyul.
Andei sob o olhar daquela manhã fria e depreciativa. O céu não esboçava cor, era de uma claridade lívida e monótona, os ventos sopravam contra meus ouvidos como se uivassem, e todo o som que eu poderia ouvir num raio de dez metros era o som das minhas botas pisando na grama seca e gritos de pássaros esquisitos, piando ao longe.
Era apenas um fim de semana, Hanui! 48h. Eu conseguia sobreviver àquilo.
Continuei andando até que uma das barras de sinal aparecesse, andei mais um pouco, e então duas apareceram. Meu celular tocou logo em seguida, anunciando a ligação do meu namorado.
— Já quero ir embora! — Foi a primeira coisa que eu disse quando atendi e ouvi sua risada do outro lado da linha.
— Você mal chegou. — Contestou simplesmente. — Passe um tempo com sua avó, você sabe que ela está se sentindo sozinha.
Deixei um suspiro fundo escapar.
— Seria mais fácil se ela morasse na cidade, ou num local que pegasse internet.
Dongyul riu mais uma vez. — Aproveite o contato com a natureza.
— Eu tenho alergia à picada de mosquito e tenho fobia de aranhas.
— Você vai sobreviver, baby... — Interferência — Só espere... — Interferência.
O sinal começou a abaixar de novo e eu precisei ficar andando em círculos, de um lado a outro, para conseguir entender metade das palavras que Dongyul estava dizendo. Continuei andando e olhando sempre para trás para ter certeza de que eu não estava me distanciando muito da casa.
— O sinal está ruim. — Avisei.
— Hanui? — Ouvia sua voz sendo picotada. — Está aí? Não consigo ouvir nada.
Andei para a esquerda. — O sinal.
— O que tem?
Voltei para a direita.
— Está me ouvindo agora?
— Hanui, o que você disse?
Retornei à esquerda e continuei dando passos até lá.
— O sinal está ruim! — Elevei o tom da minha voz. — Está me ouvindo?
— Sua avó fez pudim?
— Não, quer dizer, sim! Mas não é isso!
Quanto mais eu andava para a esquerda, dava para ouvi-lo melhor, mas não numa linha reta. Tinha que andar para a esquerda e dois passos para a frente, depois esquerda e três para trás. Sentia que estava jogando campo minado.
Eu estava tão entretida em tentar me comunicar que só depois de alguns segundos que escutei alguma coisa diferente. Pareciam passos vindos da floresta, botas quebrando galhos secos debaixo de suas solas pesadas. O vento até parara de assobiar e o silêncio afogou toda a imensidão daquele lugar. Tive um mau pressentimento.
Continuei vidrada na floresta densa, com árvores enormes escondendo o interior do mal. Dongyul continuava tentando me entender do outro lado da linha, mas eu não consegui falar nada enquanto esperava que algo pulasse em minha frente, talvez um lobo, não sei.
Quando minha nuca começou a se arrepiar, virei rapidamente em direção da casa, mas acabei soltando um grito e caindo no chão ao me deparar com alguém bem atrás de mim. Porém não era bicho, era gente mesmo.
— Desculpe, eu não quis assustar você! — Ouvi sua voz ainda com o rosto tampado pelas mãos. — Você está bem? Se machucou?
Aos poucos, consegui olhar para suas feições e me deparei com um homem agachado em minha frente, com fios de cabelo negros bagunçados e olhar de preocupação.
— Quem é você? — Perguntei imediatamente.
— Eu sou o dono da casa. — Contou tranquilamente e eu notei que já estava invadindo a propriedade de outra pessoa.
— Ah, me desculpe! Eu só queria fazer uma ligação. — Tentei me explicar. — Eu sou a neta da Hyunae, e não sei andar sozinha por aqui.
O homem se levantou, apresentando-me um corpo alto e em forma escondido atrás de um suéter folgado, de cor azul petróleo. Ele me estendeu a mão e sorriu, mostrando todos os dentes brancos e alinhados, e como seus olhos se fechavam completamente com o movimento.
— Tudo bem! Eu não vou chamar a polícia.
Deixei uma risada de tensão escapar e aceitei sua mão, que me colocou de pé numa puxada só, sem qualquer esforço.
— Não sabia que a srª Min tinha uma neta. — Comentou, se abaixando para pegar meu celular que eu tinha deixado cair com o susto.
— É porque faz muito tempo que eu não venho aqui.
— Entendo, não há muito que uma jovem possa fazer por aqui.
Assenti com a cabeça, olhando ao redor. — Pois é.
— E decidiu vir agora por quê? — Ele perguntou de forma inconveniente, o que me fez arquear as sobrancelhas e ele sorriu desconcertado. — Desculpe mais uma vez. Não é da minha conta, eu só fiquei curioso mesmo.
— Vim visitar minha avó. — Respondi, virando-me sutilmente para a direção que eu tinha vindo.
— Que belo momento escolheu para vir! — Disse ainda sorrindo e coçando o cabelo, mas eu não entendi o que ele quis dizer.
Antes que eu perguntasse, vovó despontou na varanda da casa.
— Hanui, está tudo bem? — E caminhou até onde eu estava, abrindo um sorriso ao ver o rapaz ao meu lado. — Jinki, como está? Vejo que já conheceu minha neta!
— Sim! — Ele afirmou gentilmente e se virou para mim. — Ela estava me falando sobre sua estadia aqui.
Jinki acabou almoçando conosco. O rapaz era muito bem humorado e fácil de se comunicar, o que era bom, porque eu costumava ser introvertida e pouquíssimas pessoas e situações conseguiam me deixar confortável.
— Então, você não gosta do campo? — Perguntou enquanto olhávamos nuvens se encontrarem no céu pálido, sentados na varanda.
— Estou acostumada com a cidade, com o barulho dos carros, a correria, sabe?
— Não muito. — Ele respondeu e me sorriu quando eu o encarei. — Acho que prefiro o campo justamente por tudo isso que você citou.
Vovó tinha dito rapidamente enquanto colocávamos os pratos na mesa que ele havia se mudado para lá há uns anos. Fora com a mãe, que mais tarde acabou morrendo e deixando um jovem filho gentil.
— Não sente vontade de retornar à cidade? — Perguntei, olhando a barra de sinal do celular ainda zerada.
Jinki negou com um aceno enquanto retorcia uma tira de capim seco entre os dedos.
— A cidade é assustadora.
— Assustador é esse lugar quieto e cheio de árvores. — Argumentei. — Na cidade eu não preciso me preocupar em ouvir meus próprios pensamentos. Mas aqui? Aqui eu ouço até o que não quero, e tudo range, as camas, o assoalho, as portas...
O rapaz continuou com um sorriso brando, como se tivesse pena de mim.
— Acho que o mundo tem uma forma de agradar cada um de seus habitantes. —Contou e eu me senti uma idiota esnobe.
— Mas aqui não tem nada nem ninguém. — Sibilei. — Não se sente sozinho?
Deu de ombros. — Às vezes, mas é exatamente isso que me faz apreciar companhias inesperadas, como a sua. — Dei um sorriso de complacência. — E aqui eu não preciso provar nada a ninguém, sou livre para ser quem sou.
Não quis mais elencar o meu ponto de vista que faziam a cidade ser melhor do que o campo. A minha companhia parecia já ter muitos argumentos para se defender, e por um momento, senti-me inferior pela minha forma de pensar. Mas mesmo assim, eu não conseguia estar contente de não poder me comunicar com qualquer outra pessoa que não estivesse ali.
Jinki foi embora quando vovó acordou do seu cochilo e eu passei o resto do tempo, que deveria ser útil, vendo minha avó fazer crochê e olhando as fotos da minha galeria. Incrível como ficamos desnorteados sem internet a ponto de o tão prático celular não ter muitas utilidades.
À noite esperei que o vizinho aparecesse novamente, porque não é como se eu pudesse ter uma conversa de jovem com minha avó que perguntava sempre as mesmas coisas e repetia sempre as mesmas coisas, isso quando ela não estava cochilando ou entretida com o crochê. Com o tédio me mordendo as entranhas, peguei-me concentrada em sua rotina pobre, seus movimentos, tarefas e reações. Pensei também no que Jinki tinha dito sobre o campo, e quase cheguei à conclusão genuína de que as pessoas que moravam ali tinham uma espécie de paz interior da qual eu nunca poderia compreender. Meu cérebro era ligado a 220km/h e abastecido por cafeína, eu simplesmente não conseguia parar e apreciar o tempo.
Às 22h, vovó anunciou que dormiria. Meu corpo não tinha gastado metade das energias para poder dormir naquele horário. Havia tantas coisas que eu poderia estar fazendo, ou achando que estava fazendo, já que a maioria se resumia a estar com o celular na mão. Sem pensar muito, eu peguei meu cardigã vermelho e calcei minhas botas, me dirigindo aos fundos da casa, na esperança de conseguir um pouco de sinal.
O breu da noite engolia tudo a minha volta, inclusive eu. A noite na cidade era muito diferente, a vida continuava acontecendo, só que com o céu escurecido. Mas ali parecia que tudo tinha morrido, um completo vazio ensurdecedor. Respirei fundo e liguei a lanterna do celular, dando passos curtos e trêmulos até conseguir um ponto de sinal.
Andei um pouco sem saber para onde eu estava indo, mas não prestei atenção, pois comecei a receber várias notificações das redes sociais. Quanto mais eu andava, melhor o sinal ficava, me dando a satisfação instantânea de ver o que estava acontecendo no mundo afora dali. O que eu não percebia é que estava adentrando cada vez mais a floresta escura e desconhecida.
Mas a felicidade acabou quando o sinal foi perdido novamente e não havia passo que eu desse ou altura que eu levantasse o celular, que pudesse recuperá-lo. Então, eu me deparei com a presente situação. Olhei para todos os lados cercados por árvores altas e iguais sem saber de que direção eu viera.
Todo o pânico caiu sobre mim à medida que eu andava e me perdia ainda mais. A floresta não parecia mais tão morta devido aos sussurros do vento, dos murmúrios dos morcegos e dos galhos que balançavam sozinhos. Meu coração era só medo e meu cérebro também estava sem sinal, impedindo-me de pensar com coerência. Minha primeira reação foi gritar, chamar por ajuda, mas não parecia que alguém se aventuraria a andar pela floresta aquela hora da noite. Todos da região deveriam dormir cedo como a vovó, e era o que eu deveria ter feito também.
O tempo para me arrepender das minhas imprudências foi sanado por um ruído estranho a minha esquerda. Era algo que eu nunca poderia identificar, soava como uma mistura de farejo e rosnado. Na cidade não havia lobos. E foi o que se projetou em minha frente, um raivoso lobo cinzento, com olhos trajados de fome que refletiam contra o escuro da noite.
Meu corpo entorpeceu e eu não consegui nem gritar nem correr. Acordei naquela manhã sem imaginar que algo do tipo poderia acontecer comigo. Eu só tinha 20 anos e uma bagagem leve, quase vazia, de experiências vividas, e um livro inteirinho de expectativas e metas futuras. Mas morreria ali mesmo, devorada e estraçalhada por um lobo qualquer.
Saí do transe quando ele rosnou. Dei passos para trás e tropecei num galho seco, caindo de costas na terra fria e úmida. O animal se aproximou a ponto de eu sentir seu bafo quente e sua saliva cair em meu jeans. Só consegui enxergar seus dentes pontiagudos antes de olhar para cima e contemplar o céu envolvido de estrelas, constelações que não podiam ser vistas na cidade, e aquela lua cheia saindo detrás das nuvens, iluminando todo o ambiente, permitindo que eu pudesse ver que estava numa clareira. Pelo menos eu saberia onde seria minha sepultura.
Não fechei os olhos, porque tinha alcançado um nível de pavor que não deixava com que eu mexesse um músculo sequer. Então, continuei vidrada no céu e na lua enorme que parecia assistir todo aquele desastre. Achei que o lobo pularia em minha garganta no segundo seguinte, mas não. Um uivo alto ressoou por toda a clareira e eu pensei que meu predador tivesse chamado um amigo para compartilhar a refeição, porém o lobo passou a choramingar e se afastar aos poucos.
Não sabia nada sobre lobos, mas tinha quase certeza de que aquele comportamento não era normal. Sentei-me a tempo de ver o lobo correr para longe, voltando para suas origens, mas meu coração parou novamente ao enxergar uma outra coisa atrás de mim. Parecia outro lobo, mas era maior e seus pêlos eram negros como a noite. Cambaleei para longe, ficando agora frente a frente com ele. A criatura era duas vezes maior do que a anterior, mas não rosnava tampouco salivava.
Ele não se aproximou, apenas continuou me encarando. Meu coração estava na garganta e eu quase achei que fosse vomitar, mas o lobo maior simplesmente me deu as costas, parando para me olhar por cima dos ombros.
Deus, parecia que ele estava tentando falar comigo! Minhas pernas mal conseguiam se manter de pé. Com o focinho comprido, ele apontou para a frente e deu dois passos até lá, observei tudo sentindo minha cabeça rodar, mas não me movi temendo que ele pudesse atacar.
Entretanto, o animal continuou gesticulando numa direção. Ele queria que eu fosse até lá? Como eu poderia confiar num lobo estranhamente estranho? Por que minha mente estava pensando em confiar num lobo?
Dei alguns passos para longe e, então, ele rosnou, me imobilizando novamente. Devo ter ficado uns cinco minutos parada no mesmo lugar, até arriscar outra direção, e ouvir seu rosnado de novo. E ele continuou apontando para a frente com o focinho que deveria ter o comprimento do meu antebraço.
Respirei fundo e avancei na direção que ele indicava. Nenhum rosnado, então era um sinal verde? O lobo continuou caminhando em minha frente e parando para olhar para mim, como se não quisesse me perder de vista. Sem forças para raciocinar ou fugir, eu só continuei seguindo a fera, sentindo minhas pernas amolecerem a cada passo que eu dava. Será que ele estava me levando para sua alcatéia?
A lua continuava a iluminar nosso caminho. E por um momento, meus batimentos se normalizaram, como se estivessem se contentando com aquele destino, com aquele medo. Afinal, não havia algo mais assustador ali do que aquela fera que me levava para um caminho desconhecido, e que continuava olhando para mim vez ou outra.
De repente, a criatura parou e eu pensei que aquele fosse o meu fim. Contudo, ela se virou para mim, mais uma vez, e gesticulou para frente. Forcei meus olhos a encontrar o que ele estava tentando me mostrar e avistei a casa da vovó, iluminada pelo luar. O lobo abriu espaço para mim e continuou a me olhar.
Não sabia se aquela era uma ordem para que eu fosse embora. Minha mente queria arriscar, mas meu corpo não respondia devido ao medo. O lobo, apontou mais uma vez para a casa. Calculei mentalmente que se eu corresse muito rápido, talvez alcançasse a varanda e gritaria bem alto. Com certeza os vizinhos ouviriam.
Juntei coragem sob o olhar incompreensível daquele canino e passei por ele, correndo, esperando o momento que eu seria alcançada e esquartejada. Mas eu cheguei à varanda em segurança e não olhei para trás até entrar na casa. Por um segundo a imagem daquele lobo enorme invadindo a casa da vovó me deu arrepios, ele era grande o suficiente para quebrar a porta de madeira velha. Esperei um segundo depois de trancar a porta por dentro. Aguardei o ataque. Mas não houve nada.
Pela janela, eu pude visualizar a ponta da floresta de onde eu tinha vindo. Pela luz da lua cheia, consegui enxergar o par de olhos brilhantes ainda embreados nas árvores. Ele não me seguira, por quê? Quando eu pisquei, não havia mais nada lá fora.
Caí no chão em prantos, sem conseguir sentir minhas pernas. Minhas mãos ainda estavam sujas de terra só para comprovar que acontecera mesmo o que aconteceu, e não fora coisa da minha cabeça.
Vovó acabou acordando e eu não consegui contar metade das coisas, porque continuava soluçando e chorando, mas isso não impediu que ela me abraçasse como se soubesse exatamente o que aconteceu.
— Você está salva agora, querida! — Disse me ninando. — Está tudo bem!
Eu estava salva, sim! Não. Eu fora salva por um lobo.
Acabei pegando no sono em algum momento em que vovó me contava alguma história, como se eu tivesse voltado aos meus dez anos de idade. Mas o sono não durou muito, ou pelo menos, foi o que pareceu, uma vez que acordei com um sobressalto, me sentindo péssima, com a cabeça latejando.
Minha janela estava aberta e as cortinas dançavam ao vento. Levantei para fechá-las e avistei uma figura humana se distanciar da casa, como se tivesse acabado de sair dali. Então, o alguém se virou parecendo saber que eu o observava, e nossos olhares se encontraram. Não vi o Jinki, vizinho gentil da vovó, mas sim o enorme lobo que me salvara. Parecia loucura, porém eu via tamanha semelhança que achei que poderia estar dormindo ainda. E assim como o lobo fizera na noite anterior, Jinki se virou e continuou andando para longe.
Quando me voltei para o quarto, meus olhos se prenderam na imagem do meu celular sobre o criado mudo. Eu me lembrava de tê-lo derrubado quando o lobo cinzento apareceu, mas não lembrava de tê-lo pegado de volta. Ainda havia grãos de terra presos nas bordas da película, dizendo-me que alguém o teria trazido de volta. Voltei rapidamente para a janela, mas não havia mais ninguém ali.
Não consegui contar tudo o que aconteceu à vovó nem a ninguém. Parecia estranho demais e a narrativa ia se desfazendo em minha cabeça toda vez que eu ameaçava contá-la, como se eu estivesse enfeitiçada. No entanto, ainda pela manhã caminhei até a casa vizinha e bati na porta. Não poderia acusar Jinki de ser um lobisomem, porque não fazia o menor sentido, mas pelo menos eu poderia vê-lo e ter a certeza de que não fazia sentido mesmo. Todavia, ele não estava. E não apareceu até a hora que eu fui embora no dia seguinte.
***
O acontecido ficou gravado em minha cabeça por muito tempo, incapaz de ser compartilhada, mas também de ser esquecido. Revivi-o tantas vezes em meus pesadelos que deixei de ter medo, e passei a ter angústia e curiosidade, ambas sensações que não conseguiam ser sanadas.
Nas férias daquele ano, fiz questão de voltar à casa de campo. Pensava que só assim conseguiria me libertar daquelas lembranças. A casa e todo o lugar permaneciam da mesma forma, com exceção do vizinho da vovó, que se mudara há uns meses.
— Não sei o que você viu naquela noite, — vovó disse me servindo uma xícara de café — mas saiba que não verá novamente.
— Como a senhora sabe?
Ela sorriu de forma complacente. — É um dos atributos de viver no campo. Você sabe quando uma coisa nunca mais acontecerá.
— Era o Jinki? — Deixei escapar.
— Oh não, querida! O que está dizendo? Era só um lobo cinzento. A alcatéia foi caçada semanas depois que você foi embora.
Minha animação se esvaiu. Não foi um lobo cinzento. Foi o Jinki, disso eu tinha certeza, mas não tinha como provar. Então, decidi que seu segredo morreria comigo já que ele impediu que eu morresse naquela noite. Era a única forma de retribuir o favor.
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