Capítulo 4
Cheguei no ponto na mesma hora que o ônibus. Agradeci internamente por não ter perdido minha condução. Seria péssimo ter que esperar mais uma hora ou ter que ir embora a pé.
Guga já estava na frente. Ele esticou o pescoço e, quando me viu na fila para entrar, acenou. Eu acenei de volta, sentindo meu estômago se revirar - e não de uma maneira boa.
Eu sentia ânsia de vômito só de pensar que talvez Guga gostasse de mim. Não queria me tornar um clichê! Muito pelo contrário, estava bem satisfeita em saber que eu jamais havia sentido nada além do que amor fraternal pelo meu melhor amigo. E agora ele começava a me mandar bilhetes românticos? Isso ia acabar mal.
Felizmente, Guga foi empurrado pelos passageiros até o fim do ônibus. Assim, podíamos voltar separados e eu teria tempo para pensar em como abordar o assunto com ele. Até porque outra coisa chamou minha atenção. Aliás, outra pessoa.
Bruna estava sentada em um dos primeiros bancos, com os fones de ouvido plugados em um MP3 azul.
Eu passei por algumas pessoas - empurrando-as com mais força que o necessário para abrirem espaço para mim, confesso - para parar ao seu lado. Ela ergueu os olhos quando me aproximei e então fez uma careta.
— Sério, essa perseguição está começando a me assustar — falou, tirando um dos fones.
— Já falei que não tô te perseguindo — retruquei, revirando os olhos. — Mas queria te dizer que pensei no que você disse ontem. E sim, você tinha razão. Não vou me desculpar por ter te defendido, porque Roberta não pode falar daquele jeito com as pessoas. Mas vou me desculpar por ter exigido que você me agradecesse, como se eu fosse uma salvadora. Prometo não me meter mais nos seus assuntos.
Ela piscou algumas vezes. Eu já tinha reparado que seus olhos eram grandes e redondos, mas só naquele momento vi que Bruna tinha cílios longos e escuros, que destacavam ainda mais o seu olhar.
— Bom, fico feliz que você tenha caído em si — respondeu, abrindo um sorriso tímido.
Não pude evitar: sorri também.
Ficamos assim por alguns instantes, uma olhando para a outra enquanto sorríamos sem qualquer motivo aparente. E então meu estômago se revirou de novo, mas dessa vez de um jeito muito bom.
— O seu gato está bem? — ela perguntou. Por que fiquei feliz em saber que Bruna queria continuar a conversar comigo?
— Sim. Mas sinto que já está mandando em tudo. Até roubou meu travesseiro ontem a noite.
Bruna riu.
— Sinto em te dizer, mas agora ele é o novo dono da casa.
O homem que estava sentado ao seu lado, perto da janela, pediu licença e se levantou. Deixei que ele passasse e então Bruna sentou em seu lugar, oferecendo-me o dela.
Contente, sentei-me também. Era o segundo dia seguido que eu fazia pelo menos metade da viagem sentada e eu considerava isso uma sorte. Disse a mim mesma que minha felicidade só tinha a ver com o banco vago, não com o fato de eu me sentar ao seu lado.
— Gostei do seu MP3 — falei. — O que você está ouvindo aí?
— Marjorie Estiano. Quer ouvir comigo?
Fiz que sim e Bruna me passou um dos fones. A música que ficou famosa por causa da Malhação, Você Sempre Será, tocava seus primeiros acordes. Não era exatamente o tipo de música que eu escutava, mas até que não era tão ruim.
Passamos o resto da viagem em silêncio, ouvindo a playlist eclética de Bruna, até que ela me informou que havia chego ao seu ponto.
— Bom trabalho — desejei. Desde que a encontrara no pet shop ontem, havia me dado conta do porquê Bruna pegar o mesmo ônibus que eu.
Ela abriu um sorriso.
— Te vejo amanhã.
Meu estômago se revirou com a possibilidade. Já imaginava nós duas sentadas ouvindo música de novo. Talvez pudéssemos conversar e então eu descobriria mais sobre ela. Estava carente de uma amiga. Guga era ótimo, mas sentia falta de uma companhia feminina.
Estiquei o pescoço para ver quando ela desceu do ônibus e acenei até o veículo começar a se movimentar mais uma vez.
— Então agora eu tenho um gato — finalizei a história do que havia acontecido no dia anterior para a minha psicóloga.
Keila sorriu, ajeitando os óculos. Já havia percebido que ela fazia muito daquilo, quase como se fosse um tique nervoso.
— E como ele se chama? — perguntou.
— Ainda não tem nome. Mas considerando o tanto que ele é chato, estou pensando em chamá-lo de Roberto.
— Em homenagem à Roberta, a menina da sua sala que você não gosta? — adivinhou.
Fiz que sim. Keila suspirou, ajeitando os óculos mais uma vez. Sério, eles estavam perfeitamente encaixados em seu rosto, sequer escorregavam. Por que ela continuava empurrando a armação para cima?
— Sâmia, você não acha que deixa essa menina fazer parte da sua vida mais do que ela gostaria? E é isso que acaba te machucando?
Franzi o cenho.
— O quê? Claro que não! Você não ouviu o que eu te falei? Ontem ela que começou a conversar com o Guga, quando eu estava do lado dele. Ela que me provocou. Eu devia ter feito o quê, ficado quieta? — bufei, cruzando os braços.
Keila deu de ombros. Ela era uma mulher alta, tão alta que mesmo sentada parecia capaz de tocar o teto. Tinha sempre uma expressão serena em seu rosto também, o que, por vezes, eu achava frustrante. Quase como se Keila fosse uma psicóloga-robô e não demonstrasse outras emoções.
— Talvez você devesse tentar não responder a essas provocações. Quando você faz, acaba dando espaço para Roberta continuar.
— Na verdade, estou mostrando que eu não quero que ela continue. Se eu ficar em silêncio, não vai ser mais um tipo de aceitação do seu bullying?
— Não necessariamente. Pode ser uma maneira de mostrar que as palavras dela não te afetam, como você diz não afetar.
— E não afetam mesmo! — Não sei porque estava tão na defensiva. Então parei, pensando no estranho e breve diálogo que tivemos hoje mais cedo.
Contei a situação para Keila, que ajeitou os óculos durante toda a história. Ainda bem que foi um causo rápido.
— E por quê você acha que ela foi gentil? — ela perguntou, quando finalizei.
— Eu sei lá. Deve estar aprontando alguma. — Dessa vez, quem deu de ombros fui eu.
— Já parou para pensar que talvez ela esteja procurando uma maneira de se redimir?
Eu ri. Realmente ri alto, porque a possibilidade era mesmo muito engraçada. Nem me dei ao trabalho de responder. Até parece que isso iria acontecer!
— Mas não quero mais falar sobre ela. Tenho outra coisa para contar... — mudei de assunto, tirando o bilhete do bolso de trás da calça.
Expliquei como encontrei o papel na mochila e compartilhei minhas desconfianças sobre ser Guga o autor do bilhete. Nessa parte, já fiquei mais aflita, esperando que Keila dissesse que eu estava louca.
— E se for do Guga? — ela perguntou, ajeitando os óculos. De novo. Era um hábito bem irritante, para falar a verdade, e eu só gostaria de nunca ter percebido. Parecia que agora eu não conseguia não perceber. Até me desconcentrei um pouco e demorei para entender a pergunta que ela me fez a seguir: — O que você sente ao pensar que, talvez, o seu melhor amigo goste de você além da amizade?
Novamente, senti meu estômago embrulhar. Eu mal havia conseguido comer no almoço, porque não conseguia parar de imaginar o que faria se o bilhete fosse mesmo do Guga. Lembrei-me da sensação de ânsia que tive mais cedo, só de imaginar nós dois nos beijando. Sério, a imagem, para mim, equivalia ao incesto.
— Desconforto — respondi, embora esse não fosse o sentimento exato. Tentei explicar melhor: — A questão é que eu não quero que o bilhete seja dele. Nunca olhei para ele dessa forma romântica e, toda vez que sequer penso em beijar o Guga, tenho vontade de vomitar. Sério. E se ele me amar? Nós não vamos mais conseguir ser amigos, o clima já ficou estranho hoje quando vi o bilhete. Aí eu vou ficar sozinha. Então eu me sinto desconfortável ao pensar que talvez o bilhete seja dele, pois eu sei que, se for, vai desencadear um monte de outros problemas.
Eu estava hiperventilando quando terminei de falar, tanto que até tive que prender os cabelos. Sentia-me sufocada.
— Mas você não sabe se o bilhete é dele ou não. Então não seria melhor perguntar? — Keila falou. Havia um jarro de água na mesa de centro e ela serviu um copo, me oferecendo logo em seguida.
Peguei e bebi tudo de uma vez. Pelo menos a água pareceu me acalmar um pouco.
— Mas e se eu perder o meu melhor amigo? — perguntei. — Vou ficar sozinha.
Sem conseguir me conter, lágrimas se formaram em meus olhos. No entanto, fui forte e não deixei elas escaparem.
Essa era a grande questão. Minha solidão. A depressão me tirara todos os meus antigos amigos, pois quando eu estava mal, não conseguia sequer conversar com ninguém. As pessoas se afastaram e eu não julgo. É muito difícil manter relações com uma pessoa apática, que não se interessa pela vida, que só fica deitada na cama.
Mas o Guga não. O Guga ficou. Ele me ligava quando eu faltava na escola, só para saber se eu ainda estava viva. E quando eu não queria conversar, respeitava o meu espaço. Ele aparecia lá em casa e me ajudava com a lição. Sem ele, provavelmente eu sequer teria aceitado ir em um psiquiatra, para começo de conversa.
Foi por ele que eu quis melhorar.
Então se ele me amasse e eu não correspondesse ao sentimento, com certeza o perderia. E aí eu não teria ninguém por quem melhorar.
Tentei pensar em Bruna e na talvez-amizade que estávamos construindo. Mas eu mal a conhecia e com certeza não diria para ela todos os meus problema de cara. Não, Guga era a pessoa mais importante da minha vida naquele momento.
E se eu o perdesse... Não, não gostava nem de pensar nessa possibilidade. Portanto, quando minha sessão finalmente acabou, saí do consultório com meus olhos ainda brilhando pelas lágrimas contidas e sem saber o que fazer.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro