Parte III
A manhã brilhava entre as águas do mar. Acordo sentido o corpo latejando. As torturas continuavam com menos intensidade, mas ainda assim me feriam.
Fiz todo o serviço que tinha que fazer naquela manhã. Queria um tempo de tranquilidade para repensar tudo e ordenar novamente as imagens. Faltavam algumas peças que não me lembrava completamente. Sei que com o tempo tudo será explicado, mas por enquanto, prefiro ficar atenta a qualquer possibilidade de invasão.
As águas que invadiram a embarcação na noite passada colaboraram com a limpeza do convés que agora não cheirava tão ruim como antes.
A ancora se abaixa. Haverá uma pausa para os marujos descansarem depois da tempestade.
Olhar para todos que estavam ali fez meu peito apertar.
Merda! Quanto mais tempo eles demorassem para chegar em algum porto, maiores são as chances de me descobrirem.
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Redes foram jogadas ao mar. Peixe! Novamente o aroma logo invadiria o navio.
Aproximo da borda disfarçando que lixava um ponto lascado pela tempestade. A calmaria das águas me convidava para um banho. Seria imprudência minha se fizesse isso.
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Os espinhos e as escamas dos peixes cutucaram e machucavam minhas mãos conforme os limpava. A barrigada sendo jogada no balde de madeira. Céus! Onde estávamos mesmo? Quanto tempo essa maldita viagem vai durar?
Ao terminar, limpo minhas mãos na água e a seco no pano encardido.
— É sua primeira vez em um navio, não é?
— Sim — respondo ao homem baixote e careca.
— Vai se acostumando, o mar tem um monte de aventuras e perigos. — Seu sorriso podre me causa ranço. — Agora vá levar a refeição do capitão, e, depois volte aqui, vou te ensinar como se limpa e faz um peixe saboroso.
Me afasto para não pegar a faca e enfiar em sua traqueia.
Ando pelo corredor malcheiroso e escuro, seguindo para a porta. O convés dessa vez não estava tão abarrotado de marujos.
Bato na porta do camarote.
— Entre — a voz do capitão ressoa de dentro.
O homem de barba ensebada, casaco escuro e com a camisa que um dia podia ser considerada branca, agora não passava de um pano encardido. Estava debruçado sobre um mapa. Aproximo e coloco a bandeja.
Disfarçadamente tento expiar os contornos das terras.
— Está esperando o quê, seu inútil? Saía!
Apresso os passos e deixo o lugar.
Havia algo errado. Aquele não era o mesmo mapa que bisbilhotei da última vez que fiz uma limpeza no chiqueiro.
Sem muito o que fazer, desço até o porão e me encosto em um barril. Precisava dormir um pouco, meu estado de vigia constante estava causando letargia.
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Pesadelos e mais pesadelos.
Algo viscoso parece descer por minha garganta e me sufocar por dentro. Passo as mãos no pescoço tentando limpar aquilo, mas sinto as escamas que se mexem e deslizam até meu estômago.
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Pulo do chão sem antes puxar a arma da bainha. Não havia ninguém por perto.
A peçonha se mexia no estômago daquela que a devorou ainda viva. E nem as picadas internas a afetam. Entretanto, eu sentia as presas grudadas entre meus tecidos, o corpo que se debatia entre o líquido estomacal. O alimento demoraria a ser digerido, e eu não podia nem ao menos reclamar da sua má escolha.
Guardo a arma afiada em seu lugar de origem, não antes de vê-la cheia de sangue. Uma miragem do passado, uma de muitas. As visões aumentavam e se encaixavam melhor. As lacunas estavam sendo preenchidas conforme as águas se remexiam com a navegação que desbrava o território para mim desconhecido.
Ajeito o pano que prendia meus cabelos e coloco o chapéu. Pego a caderneta e a folheio novamente, reparando nas constantes respostas que procurava.
Um braço forte puxa minhas mãos para trás, minha cabeça acerta seu nariz. O homem urra de dor. Abaixo e pego a caderneta no chão.
— Eu vou te matar! — grita com o sangue escorrendo do nariz deslocado.
Que inferno! Tanto cuidado para nada!
Corro sem olhar para trás. Os passos me seguem com afinco.
Merda, merda, merda!
— PEGUEM ESSE MOLEQUE!
Alguém entra em meu caminho, o emburro para longe.
— INVASOR A BORDOOO!
Tarde demais, ao sair no convés havia vários deles. Amontoados e esperando para esfolar minha pele.
Eu estou encrencada, e a culpa é minha. Tinha que me descuidar tanto a ponto de ser encurralada por um monte de marujos sedentos por sangue.
Mãos apertam meus braços e sinto a corda sendo amarrada em meus pulsos.
A tendência é piorar se descobrirem o fato que me trouxe aqui.
— Que bagunça é essa em meu navio? — O capitão pergunta ao atravessar a multidão.
— Esse fedelho deslocou meu nariz! — O grandalhão ralha ao me apontar. Seu rosto já era feio e agora está pior. — Andei o observando. — Ele se aproxima e suas mãos fedorentas tocam meu corpo a procura da caderneta.
Me debato na tentativa de o afastar.
A lâmina de uma espada toca meu pescoço.
— Amarrem as pernas dele e o dependure de ponta cabeça no mastro central — o capitão ordena quando o couro bem detalhado é entregue. — De onde é isso? — O porco ensebado pergunta ao se aproximar, seu hálito fedido invade minhas narinas. Se ainda não sentisse a cobra se mexendo em meu estômago, certamente vomitaria em sua cara.
— Me solta e eu te digo — falo desafiadoramente.
O homem de idade sorri e defere um soco em meu estômago. Meu corpo se curva com a dor, a ardência nada comparada as que me acompanham constantemente.
Os homens gritam, agitados pela surra que certamente irei tomar.
O pé que acerta meu ombro me derruba deitada ao chão. Inspiro para encontrar a brecha em meio ao alvoroço.
Uma bota está prestes a se enfiar em minha cabeça quando viro o corpo instantaneamente e antes que reagissem, consigo me por de pé.
Um punho tenta me acertar e acaba pegando o azarado detrás.
Entre meus movimentos para escapar dos ataques, consegui soltar a corda que me prendia. Eles ainda se dizem piratas e nem sabem dar um nó descente.
Retiro a lâmina que escondia entre minha veste e pressiono a artéria central do primeiro imbecil que vejo.
— Devolva meu caderno e se afastem.
— Ou o quê? Vai matá-lo. — O capitão diz ao atravessar o peito do homem e quase me espetar com sua espada. — Marujos são substituíveis. Agora peguem esse desgraçado antes que eu mate todos VOCÊS!
Eles avançam.
Olho ao redor.
Pulo sobre um barril e me dependuro na amurada do castelo da popa. Os infelizes logo sobem as escadas e antes que conseguisse pular no chão da popa, já estava completamente cercada.
— Inferno! — sussurro em frustração.
— Não tem para onde fugir. Aceite uma morte rápida ou sofra com a bem lenta — diz um desgraçado que leva um chute no pescoço. A força exercida em minha perna foi forte o suficiente para derrubá-lo no chão.
Não havia como fugir.
Os passos pesados sobem a escadaria. O capitão se aproximava com a espada em punho.
As cordas da vela não estavam tão altas e com um impulso consigo pular e me agarrar a uma. Não antes de levar um ferimento na panturrilha. O sangue encharca minha calça.
— Atirem — um arpão quase acerta meu ombro. Sua ponta rasga o tecido da vela. Ouço o ranger no metal na madeira. A boca do canhão apontando em minha direção. Eles vão tentar me matar e no processo vão destruir a embarcação.
Solto da corda e caio no convés. Ao bater o pé direito no chão não consigo evitar um gemido. Aquele ferimento estava doendo mais que os outros. O sangue escorria para dentro de minha bota e ao tentar andar, solto um grito de dor.
As risadas ao fundo. O canhão apontado para meu peito. Os arpões direcionados para onde estava, e um besteiro se prostrando no castelo da popa. Qual daqueles materiais será menos dolorido ao se atingir em meu corpo?
Dou um passo para trás, me encostando na amurada.
— Se renda e seja castigado pelos seus crimes — o cara de porco fala ao parar na frente de seus marujos. — Não tem para onde ir. Ser dilacerado por tubarões antes de morrer afogado é pior do que levar uma surra por roubar seu próprio capitão.
A besta é atirada e a flecha atinge meu estômago, meu corpo tomba para trás e só consigo sentir às águas que me puxam.
— Alguém agora terá que tomar o lugar desse miserável na limpeza — é as últimas palavras que escuto como um murmúrio ao fundo.
O caderno que tanto tomei cuidado para anotar as imagens que perturbavam meu ser, deslizava agora para o fundo comigo. Os escritos ali não eram importantes para o capitão. Havia apenas palavras agonizantes e descrições macabras.
A escuridão engolia toda a vida. Meus pulmões estavam explodindo e nem que tentasse voltar a superfície, serei capaz.
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