Parte III
O batalhão do Imperador foi encerrado em 1831. Já não tinha mais utilidade ou o Imperador estava muito entediado e queria algo que lhe desse maior emoção, talvez.
Dois anos depois, vi-me obrigado a me casar com uma jovem quatorze anos mais nova que eu: Ana Luísa Carneiro. Convenientemente.
A cerimônia foi realizada na manhã do Dia de Reis no Rio de Janeiro. A mãe de minha noiva não aprovava a união, mesmo porque nutria uma enorme antipatia por Dom Pedro I e pelo seu batalhão. Não só, mas aquela senhora se aborrecia com o fato de eu não ter vindo de uma família nobre.
Anica – como passei a chamá-la – era paciente e compreensiva. Procurava agradar-me em tudo que fazia. Era caprichosa com as tarefas domésticas e sempre me ouvia contar-lhe como houvera sido o meu dia ou a minha campana com meus homens.
No início de nosso casamento chegara a me pedir que me desligasse do Exército para ser-lhe mais como marido. Sabia que eu teria que me ausentar muitas vezes e por muito tempo, dependendo das guerras em que teria que participar.
No entanto, algum tempo depois ela percebeu que eu não abriria mão daquilo e se resignou a aceitar e me apoiar na carreira militar.
Com o passar do tempo aprendi a amar Ana Luísa e não posso evitar que as lágrimas rolem ao me lembrar dela.
Lembro-me do dia em que me contara da gravidez, um ano após nosso casamento. Todo pai sonha em ter um filho homem e comigo não foi diferente.
Anica estava deitada na cama com uma camisola branca de algodão e seu rosto estava molhado de suor. Tinha acabado de dar à luz.
A parteira, descendente indígena, banhava a criança.
— Aluízio, é uma menina. – disse-me ela ofegante após o parto. – Sinto muito por não ter podido dar-lhe um varão, mas nossa filha lhe trará muito orgulho. Há de ser uma linda moça.
Acariciei o rosto de minha esposa e ela sorriu.
— Não se preocupe, meu bem. Nossa filha é linda, como a mãe. Eu a amarei e a ensinarei a ser uma dama para que seja respeitada por todos.
A parteira pediu que eu me retirasse, pois Anica precisava de descanso.
Obedeci ao pedido e saí.
Quando finalmente fui pai de um menino eu o perdi numa certa primavera. Ele faleceu após se afogar em um rio. Tinha quatorze anos. Levava o meu nome nas costas e o levou também para os fundos da água do rio.
Luizinho era um garoto peralta e serelepe. Deixava-nos de cabelos em pé com as suas travessuras. Também era inteligente e talentoso nos estudos, assim como as irmãs.
Nossa família foi feliz, mas tudo mudou com seu falecimento.
Outrora Ana ia à beira do rio e gritava o nome dele como se fosse voltar. Meus amigos a achavam louca. Que poderia eu fazer? Não há nada que possa acalmar o coração turbulento de uma mãe que não pôde salvar o filho. Viu-o perder o fôlego. E quando mergulhou já era tarde demais. Tudo que se ouviu foi o seu choro desesperado e vimos o corpo do menino, já sem vida, boiando. O que restou foi a saudade.
A saúde de Anica já não era mais a mesma e assim ficou convalescente. Ter perdido nosso Luizinho fora um golpe duro. Passava dias trancada em seu quarto e mal comia. Dessa forma, contraiu uma pneumonia e faleceu. Deixou-me viúvo com duas meninas a criar. Nem meu amor lhe foi suficiente para lhe abrandar e eu me desesperava por vê-la sofrer tanto. Eu também sofria e sofro até hoje pelas saudades que sinto dele.
Permiti-me chorar como criança como quando fui embora de Montevidéu e deixei Ângela para trás. De repente duas mãos macias tocaram a minha face. Ana Maria, a caçula, estava ali e demonstrava compaixão por mim.
— O que foi desta vez, meu pai? Por que choras?
— Apenas saudades do meu passado, da sua mãe e de seu irmão. Eu estou velho, minha querida. Velhos só pensam no passado.
— O senhor sabe que não gosto de vê-lo chorar. Parte-me o coração. Mas entendo que mamãe e Luizinho ainda hoje fazem falta. Aposto que ela adoraria ensinar bordado para as minhas meninas e meu irmão ensinaria suas brincadeiras apenas para aborrecer-me. Ele adorava me deixar nervosa.
— Com certeza. É bom vê-la novamente. Esse casarão ficou vazio depois que você e a sua irmã foram embora.
— É verdade. E sobre seu passado, creio que o senhor não se lembrava de mamãe e de meu irmão apenas, certo?
— Está certa. Houve uma mulher a quem muito amei.
— Conte-me mais sobre ela. Alzira nos trará um chá agora mesmo. Suponho que a história seja longa.
— Nem tanto assim, querida. Conheci Ângela Furriol em Montevidéu, uma Província chamada de Cisplatina, na época. Foi a minha primeira paixão. Mas eu era escravocrata e ela abolicionista. Não pude me casar com ela porque não poderia continuar morando naquele lugar. Fui requisitado a voltar ao Brasil e ela não viria morar aqui. Nosso amor foi como um amor de verão.
Ana Maria ajeitou a barra do vestido branco que usava e cruzou as pernas, absorta no meu relato.
— E o que houve com ela?
— Soube que ela se casou com o Coronel Eugênio Garzón. Tive o prazer de conhecê-lo e soube que Ângela estava bem casada e feliz. Já me era mais do que suficiente. Encontrei os dois no Acampamento do Arroio quando tive que viajar para lá novamente. Tiveram uma linda filha. Chama-se Paula. Escrevi um poema dedicado a ela enquanto estive de passagem por lá. Ter retomado minha amizade com Ângela fora prazeroso e construir uma com Eugênio também me agradou bastante.
— Não foi estranho vê-la com outro?
— De modo algum. Muitos anos se passaram desde que tivemos um envolvimento. Ela construiu a sua vida ao lado do Coronel e eu a minha com Anica.
— Pai, o senhor nunca mais os viu?
— Nunca mais tive notícias deles.
Alzira nos entregou uma xícara de chá de hortelã e eu tomei devagar.
— O senhor é mesmo uma caixa de surpresas, meu pai. Quando penso que já o conheço, logo descubro que há mais a saber. Tu foste um grande cavaleiro imperial e com certeza será lembrado por muitas gerações. Esteve ao lado de Dom Pedro I e de seu filho. Quando olho sua farda fico fascinada com as suas condecorações.
Ana observou as medalhas e honrarias presos ao traje em meu corpo e passou as mãos pelos semblantes. Usava-o naquele momento, a fim de voltar ao passado. Já fazia muito tempo desde que estive com ele.
— Grão-Cruz da Ordem Imperial do Cruzeiro do sul, da Ordem da Rosa, Ordem de São Pedro, e Ordem de São Bento de Avis. Ganhou medalha pela Guerra da Independência, recebeu medalha pela rendição do Paraguai e por bravura. Meu pai sempre será o meu maior herói.
— Ah, minha querida! Só me arrependo de não poder fazer mais nada agora. Os republicanos estão cada vez mais amotinados e convictos de que derrubarão a coroa. E isso me preocupa. Por isso mantenho a segurança nesta casa e tenho homens de confiança para proteger vocês. Temo que o pior aconteça e eu já não tenha mais o vigor de antigamente para lutar para defendê-las.
— Isto é verdade. Cada dia que passa me preocupo mais. Mas estaremos seguros. Até agora nada de mal nos sucedeu. E quero aproveitar o ensejo e mais uma vez lhe agradecer por tudo que me ensinaste. Embora eu seja mulher, o senhor me instruiu a usar uma arma e uma espada. Acredito que eu e minha irmã saberemos nos defender caso algo saia do controle. És um grande homem e eu muito me orgulho de ser sua filha, Duque de Caxias.
Levantei-me da cadeira de balanço e passei as mãos pelos meus cabelos brancos. Aproximei-me de Ana Maria e a abracei como se aquela fosse a última vez. Ela cresceu muito! Tornou-se uma linda mulher valente.
O amor que sinto pelas minhas filhas sempre será grande. Ana Maria é parecida comigo na forma de pensar e na teimosia, enquanto sua irmã é semelhante à Anica.
Já fui um cavaleiro imperial, mas hoje sou apenas um colecionador de memórias aguardando o fim dos meus dias. Como será meu amanhã? Não faço ideia. Só sei que eu tive uma vida boa. Vi o Brasil sair da barra da saia de Portugal e crescer. Agora, na velhice, vejo soldados querendo derrubar o rei e a rainha como num jogo de xadrez.
Posso morrer tranquilo porque tudo que pude fazer eu fiz.
A noite chegou e fui agraciado com a visita de Ana Clara e meus netos. A casa estava cheia novamente e passei a contar para Anita, Maria, Luiz e Francisco as histórias de um garoto sonhador que conquistou cargos na sua carreira militar e viveu diversas aventuras.
Eles adoravam as histórias que eu contava, e assim foi-se mais um dia.
Fim!
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