🖋️ • Sol
Querem saber uma história engraçada? Até meus oito anos eu acreditei que a nota "Sol", na realidade, se chamava "Só". Então me senti mal por ela, porque cantava aquela musiquinha das notas da forma errada e acreditava que "Só", era, de fato, só. Não era amiga das outras notas e não tinha ninguém. Então, por pena, eu fiz de "Só" minha nota favorita. Para que ela não ficasse mais sozinha e para que "Só" tivesse uma amiga para apreciar a leveza e graça de seu som, tão comum e tão presente.
Mas aí a professora de artes, que acreditava ser musicista mas mal conseguia apreciar uma música da maneira correta, colocou em vídeo uma canção infantil com letrinhas divertidas. E, quando cantamos em conjunto aquele refrão que eu acreditava saber de cór, me surpreendi. "Dó - Ré - Mi - Fá - Sol - Lá - Si". "Só", não era só. Ele tinha companhia e adoração, pois o Sol é uma estrela, e estrelas já são adoradas há séculos. Então compreendi que, na realidade, era eu quem caminhava sozinha.
E foi aí que senti essa dor solitária pela primeira vez. Eu era só. Que coisa esquisita para uma garotinha, isso de não ter ninguém. Passar o recreio sozinha enquanto outros têm seus grupinhos, odiar festinhas de crianças, ser a última a ser escolhida para os grupos de trabalho coletivo.
Não é como se eu fosse cem por cento só, eu tinha pessoas. Eu tinha meu pai, com quem passava o dia todo ao meu lado na loja de instrumentos, e também tinha minha mãe, que chegava do trabalho às 17:00 e lanchava pão torrado na manteiga e leite caramelizado comigo, quase todas as tardes. Havia também uma agradável jardineira perto de casa que sempre me dava um alegre "bom dia" quando eu estava indo para a escola de manhã. E bem, não menos importante, eu tinha meus livros e a música. Eles conversavam comigo, falavam minha língua. Eu não precisava fingir gostar de boneca, e nem precisava repetir o que aprendi na escola o tempo inteiro quando estava com eles. Eu lia as cenas de guerra e tomava um choque, mas, apesar do medo... eu estava lá. Estava lutando e sangrando, dando meu grito de vitória, vivendo vidas diferentes.
Nunca senti falta de um amigo. Os livros juntavam palavras que me tocavam, que me colocavam na pele de uma princesa que sabia manusear uma espada. Experimentar como construir mundos que eu amava só me fez ainda mais completa para mim. Minhas conversas nunca foram interessantes para outras crianças; elas apenas se afastavam cada vez mais e me deixavam... só. Não me recordo desde qual momento na minha vida eu realmente parei de me importar em correr atrás de gente de verdade. Apenas sei que, a partir de um ponto, eu era mais fictícia do que deveria ser para alguém real. E isso não me machucava, porque não se pode machucar uma alma poderosa pelo poder que ela controla.
Mas as coisas mudam com o tempo. Meus pais morreram, a jardineira mudou de cidade com os filhos, e a música... não sei mais o que é música. Nem reconheço o poder dessa palavra, meu Deus... não sei mais tocar violão. Não sei mais tocar violão.
Tem por aí essa frase famosa que os terapeutas dizem; esse papo de "ninguém é completamente feliz sozinho". Nunca tive coragem de perguntar pras minhas psicólogas antigas se estava tudo bem comigo mesmo. Eu nunca me esforcei para manter uma amizade intacta, e nem me esforcei para ganhar novas pessoas na minha vida. E se as pessoas que eu tenho me mandam mensagem ou deixam de me chamar para uma festa, não faz diferença alguma. Eu continuo vivendo como se fosse comum.
Mas se algum personagem dos livros que amo ler morre... um pedaço meu morre e renasce junto disso. Desde quando pessoas fictícias se tornaram tão reais a ponto de substituir qualquer pessoa real? Isso me assusta pra um cacete. E eu não sei se estou bem. Não sei se é comum. Não quero parecer dramática ou forçada dizendo ser antissocial, ou dizer que prefiro ficar em casa do que ir para uma festa pra chamar atenção. Eu odeio chamar atenção. Mas humanos me cansam quando falam. Eles abrem a boca e de lá só sai asneiras, nada com nada, e, pra piorar, a maioria tem essa mania de pegar nos seus braços enquanto falam. É repugnante pra mim.
Eu me prendi a essas emoções, essa preguiça sociável, por anos. Eu ainda a tenho comigo. Fantasio o dia todo, a todo momento. Sempre estou imaginando cenas lindas, e criando na cabeça parágrafos novos para escrever mais e mais. É o único jeito que sei viver. A solidão tem um gosto elegante, uma fonte de mistério e conhecimento imensurável. Claro, isso pra quem sabe ser sozinho. Quem não sabe se perde no meio do caminho e tudo vai pelos ares. Mas estar na própria pele é uma arte feita para ser domada, e quando isso acontece... o corpo entra em um estado de conforto próprio. É difícil sair dele, porque nada parece bom o suficiente para competir comigo mesma.
Mas houve uma noite em particular, uns três anos atrás, em que surtei. Fiz um macarrão de forno e chamei Bruna Luana para jantar comigo, e ela trouxe um sorvete para a sobremesa. Bruna nunca questionou porque eu negava tanto ir aos passeios que ela me chamava, nunca me obrigou a ir nas festas porque ela sabe que a música alta pode me matar por dentro. Mas, nos meus momentos silenciosos que para ela podem ser chatos, ela nunca negou vim me visitar.
Eu chorei naquela noite, depois do jantar. Ela me abraçou e fez carinho nos meus cabelos, mas Bruna sabia que eu não iria dizer nada. Não conseguia.
"— Só tenho você, sabe? Só tenho você." — Eu queria falar, mas a voz estava travada na garganta.
Medo. Era muito medo. Não medo de ficar sozinha pra sempre, mas medo de ser tão fictícia pra esse mundo que me tornei incapaz de sentir coisas reais e aceitar que isso é humano pra mim.
Tudo o que Bruna fez foi sorrir e pegar minha mão, me apertando bem forte.
— Tá tudo bem, ok? Tá tudo bem.
Ela entende. Acho que Bruna sempre entendeu, no fim das contas, que eu não sabia sentir.
Eu tenho pessoas. Tenho mesmo. Não posso substituir as que já se foram, e não preciso me forçar a procurar pessoas novas, sendo que isso não vai me acrescentar muito na vida. Mas tenho Bruna, e isso faz a situação um pouco mais leve, certo? Amizades vem do natural. Do acaso, do bom dia ou do boa tarde. Não dá pra se obrigar a ter amigos. Eles só vêm.
Não sei ser natural. Na verdade, sou mais explícita. Me abro muito nas letras. É difícil separar as letras de quem as escreveu, principalmente para escritores da minha espécie: os que dão um pedaço de si para cada personagem. Eu jamais entregaria meu livro para alguém, e diria: "Leia este pedaço de nada, por favor. Escrevi asneiras, mas não se preocupe, eu apenas imagino muito". Que desacato comigo mesma, eu pensaria se dissesse algo assim. Mesmo que a história não seja tão boa, ela jamais seria um nada. Eu sou a maior parte das minhas histórias. Sei que sou medrosa, e não viveria muito das aventuras que já escrevi. Mas os arrepios descritos são meus. A graça de lutar e matar e coroar, são minhas divindades. As minhas paixões, meus sentimentos. Eu sou meus livros. Sou cada um deles, sentindo as letras correrem no meu DNA. E não posso virar para um suposto amigo e aceitar sua amizade se ele não suporta o que escrevo. Isso é xingar meu corpo. Maltratar minha alma. E eu nunca deixo que maltratem minha alma.
Tenho medo. Caramba, que medo imbecil de não saber conversar. Ainda estou presa nas coragens da minha Cecília criança. Corajosa como uma leoa — até que me forcem a falar com a boca.
Por favor, deixem minha boca fechada.
♬
Quero chocolate quente.
É disso que sabia quando abri os olhos essa madrugada. No relógio em cima da mesinha de cabeceira, os números brilhavam mostrando 03:40 da manhã, o que me deu agonia. Eu não costumo dormir cedo porque funciono melhor na parte da noite, até às quatro da madrugada, por aí. Dormir nesses horários é desperdiçar tempo bem gasto pra mim. Até fiquei feliz de acordar naquele instante, na realidade. Significava que meu corpo ia fazer algo.
O cheiro do chocolate com leite e canela estava por toda cozinha em poucos instantes. Me sentei na cadeira confortável da minha pequena mesa redonda, e olhei ao redor, tomando o primeiro gole. Eu gosto muito da minha cozinha. É toda verde com branco, tons mais coloridos que o restante do apartamento.
Quando os livros começaram a vender bem e eu sentia que precisava sair da casa de meus pais (mesmo quando eles já nem estavam lá), eu comprei esse lugar. Foi o primeiro apartamento que entrei, e nunca mais quis sair dele. É aconchegante, e em um cômodo onde supostamente costumava ser uma suíte, havia uma janela imensa que ia do chão ao teto. Amsterdã sempre foi bela, mas ficou ainda mais perfeita através daquela janela. Eu sabia que escreveria páginas e páginas naquele lugar, então a primeira coisa que fiz ao me mudar pra cá foi montar meu escritório.
Depois montei minha sala, e a enchi de quadros. A cozinha é aberta, então posso ver a sala daqui. Amo meus sofás e amo minhas cortinas. Tudo fica ainda mais lindo quando acendo um incenso de cheiro fresco. Cheiros bons também fazem as casas mais bonitas.
Eu observo cada detalhe porque sei que eu precisava de uma casa quando me mudei para cá. Precisava de refúgio, de conseguir dominar o vento forte do meu peito que não aquietava nunca. E esse lugar... eu amo esse lugar.
Sensações boas cruzam meu peito, e me deixo levar. Olhei para as chaves em cima da bancada e sorri. Umas vinte e cinco horas atrás eu estaria chegando em casa, com os pés doendo depois de tanto andar com os saltos, mas a boca doce pelo sabor do sorvete. Sem batom, porque havia comido pizza. E com o peito tão aliviado que mal conseguia acreditar que era meu peito mesmo.
Conversar com Jimin foi uma das coisas mais bonitas que já me aconteceu. Foi bonito mesmo, porque eu não sei conversar. Sei do veneno das pessoas, de suas mentiras, e sou arisca. Mas ter uma conversa normal foi quase um passo tão grande quanto escrever um livro inteiro. Falei dos meus gostos, escutei os dele. Falei o que não sabia fazer, e ele me contou o que não conseguia fazer também.
Quero ser escrito por você, Cecília.
Deus. Mal sabem as pessoas o poder de uma frase ao ocupar seu cérebro por horas e horas e horas.
Eu gostaria de começar a escrever sobre ele neste exato momento. Mas quero ser justa. Jimin é uma arte viva, e eu preciso entregá-lo às letras como tal. Preciso de estudos. Não se pode fazer uma pintura sem a tela adequada. Sou uma tela, e estou prestes a pintar-me. Preciso estar preparada.
Estudos são como amoladores de facas. Você passa o metal, uma vez e outra, e repete o processo até que tudo esteja bem afiado. O ser humano necessita de estudos. Às vezes é demorado encontrar qual assunto te faz ser mais afiado, mas ele está ali. Em alguma língua, em alguma conta matemática, em alguma história da vida humana na Terra, ou em alguma pessoa.
Olhei para um dos quadros da sala e tomei outro gole do meu chocolate.
♬
Minhas mãos doíam, meus braços ardiam e minha boca estava seca. Mas o ar condicionado estava na temperatura mais baixa possível, e Amsterdã continuava linda com o nascer do sol pela janela. A sala estava quieta, exceto pela angústia dos meus dedos batendo no teclado e o som baixinho de vento que deixei tocando no celular.
Escrevia e apagava escrevia e apagava escrevia e apagava.
Inferno.
Apesar das memórias e da voz dele ainda recentes na minha cabeça, Jimin não fluía em nenhuma nota. Não era palavra ainda. Eu não sabia o que colocar, o que fazer com sua pessoa, que história inventar. Talvez ele nem fosse história mesmo.
Arrastei com a cadeira para o meio da sala e encarei o teto. Minhas costas doíam e meu cérebro já não estava funcionando mais. Pelas primeiras horas, tive certeza de que escrever os detalhes que conheci dele ontem me dariam alguma ideia. Escrevi muitos deles e os colei acima da tela do computador. Mas, não importa o quanto eu tente, não consigo escrever Park Jimin. Maldito seja.
Virei as rodinhas para a janela de novo. O sol surgindo no horizonte, atravessando pelas folhas das árvores altas que ficavam na praça, os carros saindo logo pela manhã e toda a cidade acordando.
O despertar de uma manhã é tão superestimado. Não é confortável. É desesperador. Como conseguem viver uma rotina todos os dias sabendo que um dia vão morrer e não poderão mais voltar para desautomatizar o automático? Coisa esquisita essa, de ser controlado por todo um sistema até que você morra.
De toda e qualquer forma, não consigo imaginar Jimin vivendo uma rotina. Consigo vê-lo dançando diferentes passos, usando diferentes roupas e falando com muitas pessoas. Consigo vê-lo fazendo muitos amigos, conquistando metade do mundo com aquele sorriso doce e voz calma.
Mas ele não é esse personagem. Jimin não é preso a um papel. Como fazer um personagem que já é livre voar mais alto? Tenho esse poder?
Virei a cadeira preguiçosamente um pouco mais para o lado, olhando os cantos da janela, onde preguei os post-its coloridos com frases avulsas escritas sobre ele. Frases bonitas, mas não contam nada.
Estava pronta para reclamar e levantar para fazer outro leite quente quando o celular tocou. O barulho de Bruna Luana provavelmente preparando o café da manhã em sua cozinha se fez antes que ela começasse a falar.
— Bom dia pra você. Acordou cedo ou nem foi dormir ainda?
Sorri.
— As duas coisas. Bruna, como se faz para escrever o que já está escrito?
— Se copia — disse a médica. — Se faz cópia de algo que já está escrito.
— Não sou plagiadora. — Deitei mais contra a cadeira, rodando devagar ao encarar o teto. — Me sinto idiota. Já escrevi cenas de tortura com mais facilidade do que escrever esse menino.
— Olha... — ela riu, arrastando uma cadeira ao fundo. — Você não me contou como foi. Quer contar?
Apertei os dedos na tampa de uma caneta, marcando a forma pequena e redonda no meu dedão.
— Não sei. Comemos pizza.
— E foi bom?
— Foi — sorri. — Foi muito bom. Ele sabe dançar valsa e dança de salão, mas não dançamos. E também tira fotos de plantas diferentes que encontra na rua, tem um álbum específico para elas. Nunca me senti tão pequena.
— Ele é muito mais alto?
— Não — olhei para o telefone, segurando uma gargalhada. — Na verdade tem praticamente meu tamanho. Acontece que ele é muita coisa, sabe? Faz muita coisa, conhece muita coisa. Eu só sei inventar. E pelo visto, nem isso sei direito. Não consigo inventar algo que o complete, ele já parece estar cheio de tudo.
— Você se subestima. — Disse Bruna, ao mesmo tempo em que eu conseguia ouvir barulhos de pratos ao fundo. — Pode escrever qualquer coisa. Você pensou no gênero que quer colocá-lo?
— Não — joguei a cabeça para trás. — Ele combina tanto com uma crônica. Uma bem forte, bem bonita. Cheia de detalhes e completa de características incomuns. Não parece fantasia porque é a realidade que o faz tão belo. Mas capítulos longos sobre ele ficam... não sei. Bagunçados.
— Ora, faça um poema.
— Credo — me vi retrucando antes de pensar.
Longe de mim falar mal de qualquer gênero literário, todo meu respeito aos poetas e seus sentimentos aflorados. Mas escrever poesia...
— Você disse que ele é bonito e mais mil e um adjetivos. E disse que capítulos longos ficam bagunçados. Pronto, faça dele um poema e siga a vida sem mais dores de cabeça.
— Não sei rimar — murmurei, olhando a tampa da caneta como uma incógnita.
— Não seja sonsa. Você sabe que não precisa dessa coisa de rima pra isso.
Quis gritar. Joguei a cabeça para trás e encarei meu teto. Inferno. Como cansa pensar demais. Gostaria de conseguir controlar esses burburinhos de vontade. Tem uma frase que conheço, em defesa aos poetas, que diz: "Faz tempo que, para pensar sobre Deus, não leio os teólogos. Leio os poetas". Bonita. Emoções à flor da pele falam mais de divindades do que algo físico e mecânico, certamente. Eu tornaria minha escrita mecânica caso forçasse Jimin a se encaixar onde eu quero, e não onde seu nome me diz o que é? Seria Jimin poesia, mesmo que eu não seja poeta?
Ou será que me rotular como poeta me tira o título de escritora? Bobagem, claro que não. Ser escritora me dá o poder de escrever e me tornar qualquer coisa que eu quiser. E, estando tão rendida como estou, posso criar estrofes por ele. E criarei. Nada me rotula.
— Bruna? — Chamei.
— Sim?
— Escreverei poemas. — Disse a ela. — E também vou fazer terapia.
♬
Esperei alguns momentos no carro, e quando faltavam quinze minutos para as 15:00, chequei a maquiagem. Preferi usar um laranja claro nos olhos hoje, achei que precisava acordar um pouco. Os cachos estavam leves, sem muita definição, cheirosos como nunca. Deus abençoe o 3A. Respirei fundo e peguei minha bolsa, os fones já estavam nos ouvidos. Saí da minha Mazda já sentindo o cheiro das pipocas doces de carrinho e o sol quente no rosto. Hoje não estava tão frio.
Na rua de frente ao teatro tinha um pequeno campinho de tulipas com uma fonte. Era uma graça, provavelmente o que salvava aquele lugar de toda ruína visual. É tão menos assustador sair de casa quando olho para os lados e as vejo. Amsterdã me ganhava um pouco mais a cada tulipa enfeitada nas ruas. As pessoas andando, sozinhas ou de duplas, braços entrelaçados e almas sorridentes. É uma cidade que sorri muito, o silêncio através dos fones não pode me tirar a beleza dos sorrisos.
Encostei na porta do carro, e alguns minutinhos curtos se passaram até que meu celular vibrou. Não precisei checar, apenas virei a cabeça para trás, para o teatro, e o vi saindo de lá.
Lindo. É tão lindo. Jimin vestia uma camiseta de mangas curtas larga e preta, uma calça jeans da mesma cor. O maldito anda como se encantasse o mundo, e se eu parar para pensar muito, ele encanta mesmo. Olhou um pouco para os lados, até encontrar meus olhos, então sorriu. Iluminando tudo, acendendo tudo, como se um único sussurro seu fosse capaz de dominar um reino inteiro. E, nas minhas páginas, ele dominaria.
— Oi! — Alegrou ele quando chegou perto. Afastei os fones do ouvido.
— Oi. — Eu sorri, tentando ser tão terna quanto ele.
Combinamos de nos encontrar após o treino que ele tinha no teatro até as 15:00. Perdi quatro horas tentando decidir como eu me portaria e como reagiria, rezando para que fosse tão bom como ontem. Que ele ainda me olhasse como ontem, e não visse o quanto me perco de mim rápido.
— Como passou?
— Tentando lidar com você. — Sorri ao encostar outra vez no carro, cruzando os braços. — Já te falaram que seu nome gruda muito fácil na cabeça?
— Não. — Mordeu o lábio inferior. — Mas acordei hoje cedo com vontade de te ver de novo, então não acho que só meu nome circula muito por aí.
Ele colocou as mãos no bolso da calça, de uma forma tão comum e tranquila, a calma repassando todos seus movimentos, pleno controle de tudo o que ele fazia. Deitou a cabeça um pouco para o lado e me analisou.
— Você tá linda. — Sussurrou. Vencendo reinos.
— Obrigada — quase gaguejei, voltando a me sentir uma criancinha perto de um grande desafio. — Não esperava sua ligação.
— Nem eu. Quero dizer... só... só liguei. — Ele deu de ombros, rindo consigo mesmo. — Você quer andar por aí? A Albert Cuypmarkt¹ está aberta hoje.
— Quero — sorri na hora, dando um passo um pouco tímido para a frente, para perto dele.
Jimin permaneceu com a feição tranquila, esse jeito de manter qualquer um confortável por perto. Menos eu. Não conseguia ficar tão confortável com as mãos suando o tempo todo. Mesmo depois de passar tanto tempo com ele ontem, meu corpo ainda agiria como uma criança perto dele? Isso é normal?
— Ei, eu descobri algo legal. É uma história, acho que você não conhece. — Levantei o rosto para ouvi-lo enquanto passávamos no meio de um pequeno campinho de tulipas brancas para atravessar a avenida.
— Conte. — Olhei pra ele, os ventos gelados de Amsterdã ficando um pouco mais forte conforme andávamos em direção ao centro da cidade.
— Não sou contador de histórias como você, então tenha paciência, por favor. Vou chegar no final, eu prometo. — As bochechas dele brilhavam com um leve vermelho tímido, e eu sorri, concordando com a cabeça.
Os fios molhados do cabelo dele estavam um pouco bagunçados. Ele provavelmente acabou de sair do banho ou algo do tipo. O cheiro de sabonete não estava tão forte quanto a noite anterior, mas eu ainda podia sentir. O mesmo cheiro: erva doce, lavanda. Jimin pigarreou antes de começar a falar, talvez um pouco nervoso ao notar meus olhos o assistindo com tanto cuidado:
— Descobri que, na Roma antiga, alguns estudiosos acreditavam que as pessoas cegas, por não conseguirem ver o mundo com os olhos, "viam" tudo com os ouvidos. Ouviam muito, atentamente. — Nós viramos a esquina, andando em conjunto na mesma calma em que ele conversava. — Caecus era como chamavam os cegos, mas essa mesma palavra está fortemente relacionada com sabedoria, já que, num significado mais profundo e bonito, eles "sabiam mais do que pessoas com a visão comum" — ele imitou as aspas com os dedos.
Tentei raciocinar se eu conhecia aquela história, mas não me era comum. Nunca ouvi falar em nada parecido, e nem tinha ideia se esse conto tinha algum propósito. Nós prosseguimos caminhando, andando pela calçada, até que eu pude ver as barracas que davam início à feira de Albert Cuypmarkt. Consegui ver já de longe algumas pessoas andando por lá, mexendo com artesanatos e roupas, e muitos com comidas.
— Uma família romana adotou o nome — continuou ele —, querendo registrar na família essa ideia do nome ser forte e filosófico, algo impactante o suficiente para que lembrasse a outros o quanto sua linhagem era sábia, como os cegos. Um tempo mais tarde, na idade média, uma mulher que foi considerada Santa ficou famosa depois de terem dito que ela havia morrido cantando. Ela tinha esse nome: Caecus. Com muito carinho pela Santa, a população passou a dar o nome para suas filhas em homenagem a ela, dizendo que a sabedoria também aumentava o amor pela dança e pela música. Adaptado, o nome passou a significar "A guardiã dos músicos e da sabedoria".
A guardiã dos músicos. Essa frase eu conhecia. Não me lembrava de onde, mas conhecia. O cheiro da feira com diversas comidas me invadiu o nariz. Não havia comido direito o dia inteiro, então logo senti meu estômago reclamar pela fome. Fazia muito tempo que eu não colocava os pés naquele lugar.
— Você gosta de Kip Saté ²? — Perguntou o Park, no momento em que entramos dentre as barracas. Felizmente, as pessoas conversam alto aqui. Ninguém pensou em colocar ou cantar nenhuma música, e, por uma sorte de tempo, os fones deixaram de ser necessários.
— Sim! — Sorri, e tenho certeza que meus olhos brilharam de alguma forma. Minha mãe sempre fazia Kip Saté. Eu tento cozinhar, mas... enfim. Pelo forma que tenho observado nos últimos anos, a única coisa que sei cozinhar é direito é macarrão. Pelo menos isso, eu acho. Seria um pouco humilhante para mim, competitiva como sou, não saber cozinhar nada de bom.
A feira estava vazia em comparação a um dia normal. Alguns turistas ainda estavam por aqui, mas haviam muitos nas barraquinhas de Krocket. Jimin andava em direção a uma das primeiras barracas, um pouco mais para frente da entrada. Bandeiras Holandesas estavam penduradas em todos os cantos, e o cheiro de comida se misturava. Panquecas, Waffles, Croquetes de carne e pastéis. Tudo em um lugar só. Haviam vasilhas de porcelanas coloridas, típicas da Holanda, e também colares e roupas. As cores eram vivas ali dentro. Alguns turistas riam com seus grupos, e havia algumas famílias tirando a tarde para lancharem juntos também. Fiquei feliz ao ver que, pela primeira vez, em um lugar cheio de grupos, eu não estava sozinha. Não que fosse ruim se eu estivesse, eu... apenas acho que gostaria de ter mais experiências assim.
— Dois, por favor — pediu Jimin ao gentil senhor que preparava o salgado, o molho para a carne sendo feito na hora. O cheiro de frango temperado me ganhou no exato momento.
— Pois bem. A Guardiã dos Músicos chegou ao Brasil. — O dançarino voltou a falar, um pouco mais baixo, apenas para que eu ouvisse. — O nome ficou famoso, mas eles não a chamavam mais por Caecus. Criaram a própria versão. Sabe como chamam uma pessoa sábia e guardiã dos músicos, danças e sabedoria no Brasil? — Ele perguntou, pegando os dois Kip Saté e pagando o senhor da barraca, agradecendo-o e me entregando o salgado com molho.
— No Brasil? Ahm... não sei. — Sorri, curiosa.
— Cecília.
Parei de andar. No meio da rua, entre as barracas. Jimin, vendo que parei de caminhar ao seu lado, também parou para me olhar. Um sorriso surpreso banhava meu rosto, e eu não sabia se ria por ser tão inesperado ou se achava graça do cuidado dele de ter pesquisado por meu nome.
— Ontem você disse que tinha medo de saber o significado do seu nome. Disse que seria sem graça se não fosse tão interessante quanto a pronúncia, por isso nunca pesquisou o significado... — disse ele, mordendo o lábio inferior num sorriso brincalhão. — Achei que gostaria de saber que seu nome carrega uma história.
Eu ri e olhei para o chão.
— A guardiã dos músicos, hm? — Que irônico; lembrar a música mas não saber ouvi-la. É bom saber que pelo menos uma parte de mim ainda tem trilha sonora. — Eu gostei. — Olhei para Jimin, me perdendo um pouco dentro daquele brilho. — Obrigada.
Ele sorriu, e olhou para cima um pouco, o semblante curioso.
— Ce.cí.li.a. — Falou bem devagar, baixinho. Pensou um pouco e sorriu. — Lembra mesmo uma música. Cecília.
Cecília. Como é lindo quando ele fala meu nome. A voz calma e doce, o lábio inferior bem desenhado subindo levemente para cima, ao passo que a língua raspa o céu de sua boca ao terminar de chamar-me com "li", e a boca se abrindo novamente para finalizar com "a". Cecília. Cantando. A guardiã dos músicos, a guardiã das danças, da sabedoria. Não sou sábia, mas sou dele. Alguma parte aqui dentro, desde as primeiras noites em que eu o vi dançar, sempre quis ouvir o "lia" saindo de sua boca. Um cântico, sagrado e divino, me chamando, adentrando minha carne.
"Que abra os lábios
E me chama
E me canta.
Cultiva meus ouvidos,
Lava meu chão,
Eu me ajoelho.
Que abra os lábios
E me chama
E me ensina a escrever meu nome,
Rouba meu silêncio.
Que abra os lábios,
E seja minha música:
divino como Sol."
♬
Notas:
¹: A Albert Cuypmarkt é um mercado/ feira aberta em Amsterdã. Há muitas barracas de comida de rua, além de roupas e artesanatos típicos holandeses.
²: Kip Saté se trata de espetinhos de carne (normalmente frango), servido com molho de amendoim.
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