
🖋️ • Mi
Passei os últimos quarenta minutos refletindo se não estou fazendo algum tipo de merda.
E bem, espero que eu não esteja. Porque, veja só: estou tão acostumada a escrever alguns roteiros que estejam prontos na minha cabeça, que falar de algo em que eu vivi de verdade chega a parecer trágico. Clarice Lispector disse que amar não mata. E meu Deus, que perigo citar essa mulher aqui, porque concordo tanto com ela mas não sei explicar como e porquê.
Amar não mata, mas é tão difícil de falar sobre. Porque viver parece fácil, mas escrever é tão ridiculamente difícil. Escrever sobre amor deveria ser tão gracioso e bem dito como se estivesse soletrando o alfabeto; de cór, sem stress, coisa que se sabe desde que aprendemos a ler. Mas que maldito sentimento confuso e cheio de agonia é este tal de Amor. E eu o detesto!
Preciso confessar que estou com medo. Já li tantos livros de romances, clichês e não clichês, e por mais que eu ame como eu escrevo, parece que minhas letras jamais chegarão aos pés de nenhum desses livros. Fico pensando: "Será que isso não está parecido com os sentimentos de uma menininha?", Mas volto a perguntar a mim mesma como resposta: "E que mal há ser menininha?".
Quero me sentir como uma grande mulher. Não há problema, eu não tenho medo de sentimentos. Mas por quê parece tão difícil retratá-los sem que eu me sinta inferior? Sou mulher. Posso sentir tudo. Mas sou também humana, e portanto não sei sentir nada. Homens escrevem romances o tempo todo, e são maduros por isso. Tenho medo de falar que estou amando e ser jogada no lixo, porque palavra de mulher nem sempre parece real o suficiente para ser vivida. Ou parece?
De qualquer forma, preciso parar com isso. Se for clichê ou não, mal me importo. Só quero escrever da forma mais humana que eu conseguir. Ser humana é se igualar a ouro, e eu não ligo se tiver que ser menininha para isso. E que Deus arranque minha pele dos meus ossos se eu me impedir de tentar.
♬
O nome dele era Jimin. Park Jimin. Eu descobri quando folheei o papel do ingresso amassado na minha bolsa, fuçando o nome dos dançarinos principais. Cheguei a testar como o nome soava na minha língua, o som suave e bonito que gritava a beleza de algum personagem implorando para ser escrito. O processo criativo tem dessas; meus personagens chegam até mim e não posso mudá-los. Eles vem com desejos profundos para estarem nas frases, e eu sou boba o suficiente para ficar com dó e escrevê-los. É aí que eu me acabo de vez. Agora não sei se eu o escrevo como personagem ou como sentimento. Essa confusão ainda vai me sufocar qualquer hora dessas.
Sou tão burra.
Fui àquele teatro dois dias depois, e um dia depois deste. E repeti a mesma rotina por um bom tempo. Eles apresentam a peça três vezes por semana, e eu comprei os ingressos e continuei assistindo à maldita apresentação — à ele — durante quase um mês. Mas sou uma criatura inquieta, não consigo ficar com sede de nada. Precisei ligar para Bruna e pedir a ela ajuda, porque é para isso que amigos servem no fim das contas.
— Vai, me diz o que eu faço. Crio vergonha na cara? Paro de procurar coisas fúteis e vou trabalhar de verdade? Preciso escrever. Talvez beber até sair gritando...
— Terapia. — Os olhos focados em mim brilharam na certeza de sua fala. — Você deve fazer terapia, Cecília.
— Então devo beber, certo.
Ela ainda me assistia levar a taça de vinho outra vez aos lábios, completamente em silêncio. Tomou um suspiro, se ajeitando mais nas almofadas e também bebendo da dela. Prestamos atenção nas legendas da tevê de som mudo, sem prestar de verdade. Bruna começou a batucar o dedo na taça, mas parou antes que eu precisasse pedir.
— Sabe, você poderia chamá-lo para sair. — Disse ela, por fim.
Estalei a língua e segurei um riso. Há uma teoria (eu mesma a inventei) de que existem dois tipos de amores para um artista. Um deles é o amor de dentro, onde dá pra colocar na arte, se encontrar e se perder, escrever e pintar e fotografar e fazer mil e uma coisas que demonstrem a mínima força desse amor. Ele é estrondoso, destruidor, e bate forte na alma como a sensação de banhar na água gelada do mar quando a alma não sente nada. Sensação de perda de controle do corpo, grito da alma, vontade de beijar o não beijável. É esse tipo de amor que me faz passar a noite acordada, abraçando as tintas da caneta, escrevendo de jeitos bonitos e egoístas de minha parte tudo aquilo que eu decido ser bom. E é vivo; e é colorido. É tudo aquilo que mantém o gosto da comida na minha boca.
E tem aquele amor de fora. Ele é... bem, de fora. Seco. Sem intensidade. Onde o artista vive o amor, mas não é forte como o de dentro, pois está em contato com uma pessoa real. Então surge a afirmação: "mas que grande bosta, sério que era isso?". Porque vem o baque de não ser como eu gostaria que fosse, porque não pode ser guiado por mim. Depende de outro ser também. E essa dependência me faz entender que meu mundo não é o que eu escolhi para mim, e isso me quebra um pouco sempre que penso a respeito. Porque amar aqui fora é um desafio. Amar é duelar, aguentar, respirar juntos. Sei somente respirar por mim. E esse mundo oco e real me mata sempre que tento viver de acordo com as regras dele, pois é um grande incompetente.
Apenas sei admirar quem vive com o amor de fora. Sendo oco ou não, é amor de qualquer jeito, e mata como deve ser. Só prefiro amar o meu de dentro, porque é a única coisa que me mantém viva nesse mundo. A única cera que mantém minha chama acesa na vela.
— Chamá-lo para sair... — Suspirei, olhando para o canto do tapete da sala. — Isso acarreta encontros. O que acarreta lugares cheios. O que acarreta eu lavar minha cara para dizer a ele que tudo o que ele dança me toca de um jeito que me faz perder o sono à noite. O que acarreta muitas coisas que sou cagona demais para ter coragem de dizer. — Hipócrita. Sou uma hipócrita e muito desgraçada.
— Deveria mesmo chamá-lo para sair. — Bruna repetiu após um tempo, aquele sorriso maldito brilhando nos lábios e os olhos de cor prateada piscaram na minha direção. — Realmente deveria, porque nunca vai deixar de ser cagona se não tentar.
— Você insulta as inseguranças dos seus pacientes também, doutora? — Ela sorriu.
— Só de vez em quando.
Não vou dizer que pensei muito a respeito disso. O papo com Bruna resultou em um novo post it pregado no meu guarda-roupa: "talvez eu o chame pra sair", mas foi um talvez bem provável de impossibilidade.
Não sei bem o motivo. Misturar meu amor de dentro com o de fora nunca passou nem perto de ser uma opção. Já usei amores antigos para inventar personagens, mas nunca os disse ou mencionei o que havia escrito. Apenas usei o sentimento, porque fica mais forte no papel. Ou talvez o problema seja comigo. Minha incapacidade de abrir meu peito para alguém que, de fato, goste de mim. Meu único insuportável medo é quebrar algum coração; porque isso é feio. É maldição. Fazer outro chorar de propósito é o ápice da ignorância e desperdício de sentimentos bons, e sou incapaz de me aceitar sendo babaca assim.
Na madrugada fria horas depois, eu me via na frente do espelho testando maquiagens que normalmente sou muito preguiçosa para usar. A taça do vinho branco continuava por perto, e eu desperdiçava os tons de vermelho e marrom que estava testando na boca. Chegou a um ponto que parei, metade do rosto pintado e o outro limpo, e fechei os olhos por um momento.
Acorde Mi.
Eu ainda me lembro do vácuo de seu som no violão. Meu pai tocava na varanda de casa, quando eu era pequena. Ele era um viciado em café. Então me lembro de que, em algum horário perto das dez da noite, eu costumava levantar da cama e olhar pela janela do quarto. Ele sempre estava lá, balançando naquela cadeira de madeira barulhenta e com a garrafa térmica do café na mesinha ao lado. Me lembro que ele costumava imitar algum som que ouvia no rádio, e procurava reproduzir do seu próprio jeito. Ficava ainda melhor, como mágica. Uma dessas noites eu saí do quarto e fui me sentar ao seu lado na varanda.
" — Para este, você deve colocar um dos dedinhos aqui. — Dizia ele, me mostrando como fazia. — Nesta corda. E segurar firme. O som ficará errado se mudar a posição dos dedos, certo?"
Ele costumava falar com graça sobre as coisas. Me lembro de como ele me apresentava cada nota, e o mi estava entre elas. Seu som é característico, não tão forte, mas também não tão fraco. Engraçado como a música funciona, cada som precisa estar presente para tudo estar completo. De certa forma, a escrita também é assim. Até as vírgulas fazem diferença, não dá pra subestimar nada. Mas não consigo diferenciar as notas como ele, nunca fui capaz disso.
Mal me recordo de verdade todas as notas e acordes. A lembrança de seus sons ainda me invade, mas meu cérebro por vezes bloqueia a memória. Algumas delas eu não gostaria de esquecer, muito pelo contrário. Gostaria que seguissem comigo. Mas é bem fácil desviar o foco quando uma música toca, até mesmo a lembrança. Não estou digitando isso agora à toa, sabe. Ainda tento ouvir algo que me lembre meu pai de vez em quando. Mas não consigo. Não consigo, e eu quase me odeio por isso.
Virei a taça de vinho e tirei a maquiagem do rosto. Park Jimin. O que um rapaz movido à música faria com uma mulher como eu? Me acharia louca, talvez? Não sei. Nem o conheço. Não é muito possível imaginar o que ele faria ao saber desse meu "detalhe".
Escrevi um livro uma vez onde coloquei uma menina de 17 anos para herdar um reino no meio de uma guerra. E ela o herdou, e também lutou. Corajosa como uma leoa, sem poderes, poucos exércitos. Vestia apenas sua pele humana e o peso de uma coroa ameaçada. Ela ganhou uma guerra com 17 anos. Fico pensando se não invento demais nessas histórias. Não digo isso pela incerteza de que alguém de tão pouca idade pudesse ter tal coragem, muito pelo contrário. Crianças são mais corajosas que gente grande, vivem a vida sem olhar para trás. Mas questiono a mim mesma porque, veja bem, meus personagens são uma parte de mim. Sou um bocado medrosa. Medrosa. Não de sentimentos, mas medrosa da vida e de sair de casa e de dormir e não acordar mais. Não sei como uma menina corajosa saiu de mim.
Mandei uma mensagem para Bruna instantes depois. "Acha que vale mesmo a pena?", foi o que perguntei. Quando acordei pela manhã, ela havia respondido que sim.
"Certo." — Eu digitei para ela. — "Vou chamá-lo para sair. É bom que ele não seja um babaca."
Então eu o chamei.
Horas depois estava de volta em frente àquele espelho, amassando os cachos e me xingando porque faltou um pouco mais de volume. Mas não faz mal, brilhava de qualquer jeito. O que ou como diria algo para o tal Jimin, não sei. Como já disse, falar não é escrever. Falar exige dicção, o que mal tenho, calma e controle da língua. Também não os tenho.
Saí de casa repetindo pra mim mesma que estava sendo uma estúpida. E talvez seja exatamente por isso que não voltei atrás; quanto mais minha própria cabeça me prende, mais desejo me libertar. Seres humanos se prendem muito a si mesmos, e eu não desejo ser assim. Desejo ser tranquila e suave. Minha, desejo ser solta e feliz por ser minha.
Então eu entrei no carro. E dirigi pela avenida. E ignorei as luzes fortes da cidade. E, quando finalmente cheguei em frente ao teatro, o estômago se contorceu medroso e quase não consegui sair. A apresentação da noite já havia acabado há alguns minutos, e as pessoas estavam deixando o teatro aos montes. Eu fiquei observando-os por um tempo, ainda dentro do carro, e senti aquele nervoso no pé do estômago começar.
Prestei atenção aos detalhes. Os fones doíam nas minhas orelhas, e eu não ouvia a risada das pessoas lá fora. Mas via seus sorrisos, e dentro de mim, sorri com eles. Senti o cheiro do carro e me aconcheguei um pouco mais.
"Volte para casa", era o que a sensação no peito parecia dizer. "Você não pertence a este lugar, volte para casa".
Sou uma estúpida comigo mesma. Eu sempre digo que amo escrever, e amo, vivo por isso. Mas odeio meus mundos, odeio minhas letras. Odeio viver nessa terra que não pedi pra nascer. A visão vai girando devagar e de repente, não lembrei meu nome. Tudo o que eu sabia era que a palma da minha mão suava e eu não estava em casa. Odeio escrever, porque criar os mundos que eu queria estar acaba se tornando algo real demais para não ser real.
Estar nesse planeta, ciente de que a realidade é um castigo imposto a todos nós, é um desafio. Porque a impressão é de que o tempo todo não vivemos de verdade. Sou apenas uma peça de tabuleiro; uma peça que teima em fazer uma simples jogada, como a de chamar um rapaz bonito para sair.
Não posso chamá-lo.
Me olhei no retrovisor, o rosto sem detalhes e os olhos perdidos nesse castanho sem graça. Tudo o que tenho de bonito foi herdado da minha mãe. Esse cabelo vermelho e os cachos com mais poder do que sou capaz de aguentar. Eu e ela somos muito parecidas em certo ponto. Mas mamãe era linda. Mais linda do que posso chegar perto de ser algum dia. A única diferença entre mim e ela, entretanto, era que mamãe não via isso.
Ela sim tinha verdadeira coragem pras coisas simples e felizes da vida. Tinha a postura de uma deusa, de fato. Eu sou deusa, mas não consigo demonstrar para os outros, só pra mim. Talvez esse ponto seja algo que ela visse em mim e que eu não vejo.
E por... seja lá o que fosse que ela pensasse, me obriguei a sair do maldito carro e sentir o vento forte no rosto. Levantei o queixo e olhei bem para onde os bailarinos se despediam alegremente uns dos outros, parabenizando-se pela noite.
Ele também estava lá. No fundo, mais singelo. Me surpreendi pela leveza de sua pessoa fora do personagem. Ele era gentil, eu conseguia ver. Era tão estranho vê-lo sem as roupas do espetáculo. Sem aquele brilho do luar por sua pele e o cabelo loiro substituindo a tintura prateada. Jimin vestia um jeans e uma camisa preta. Lindamente... comum. Tranquilo. Ser humano de alma calma.
Deu um abraço em uma moça e outro em um rapaz, e seguiu caminho. Eu o observei andar por um instante; mesmo fora do palco ele tinha a postura de um bailarino. A delicadeza de seu andar me atingiu como um soco no coração. E, quando ele se distanciou do grupo na porta do teatro e foi andando até o que parecia ser seu carro, eu atravessei a rua e o segui. Como um maldito cão sem cabeça, o segui, porque aquela presença forte me tocava mesmo distante.
Meus passos não eram rápidos, eu não conseguia correr. Mal podia andar; havia cimento querendo me prender ao chão. E quando as pernas começaram a tremer e percebi que não daria conta, eu tirei um dos fones, ignorando as vozes ao fundo de mim.
— Park Jimin? — Ele não se virou, então o chamei mais alto. — Ei, você!
Talvez eu tenha errado seu nome naquela lista maldita...
— Moço! Ei? — O desgraçado mal fez menção de se virar, então eu dei um passo para frente.
— Inferno, quero falar com você!
O platinado maldito me ignorou e entrou no carro.
E fechou a porta.
E eu o xinguei de todos os palavrões possíveis antes de voltar ao meu carro como uma criança emburrada e o orgulho ferido de um homem velho e rabugento.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro