MELODRAMA
Tessa caminhava pelas ruas do subúrbio da cidade como se sua vida não valesse mais nada. Literalmente caminhava no meio da rua em plena madrugada escura e fria. Seu casaco não parecia um bom abrigo contra o vento. Seu corpo perdia calor a cada passo. Se ela congelasse ali, talvez com o nascer do sol ela fosse notada.
Mas ela não estava indo para casa ou nada assim. Em quinze minutos, o último ônibus com destino ao centro da cidade partiria e ela precisava estar nele. Nenhum compromisso a obrigada a sair no meio da noite, seus próprios pensamentos a colocavam para fora da cama e gritavam para ela abandonar o conforto das paredes do seu quarto.
Ela o fizera. Pegou as chaves, seu celular, seu passe de transporte, sua mochila, um par de luvas, gorro e o casaco. Saiu sem deixar bilhetes ou criar um ruído enquanto descia as escadas. O mundo era um grande ruído na sua mente e sua voz não saía.
O silêncio dela em meio à multidão era assustador. Seus pensamentos eram o caos, a tempestade e as dores de cabeça mais terríveis do mundo. E a sua calma era um inimigo. Se ela fosse calma demais, afundaria. Sem uma corda, ela ficaria lá embaixo.
Por algum tempo, Tessa se sentiu como uma passageira em uma avião. Ela sempre gostou da janela para observar ao redor com cuidado, ver as nuvens e imaginar suas histórias. Nuvens são como pessoas. Um dia elas estão ali, no outro elas se foram e não são mais como antes.
Naquele momento ela era apenas uma passageira do ônibus, presa ao chão e vendo pessoas irem e virem sem saber qual o destino delas. Ela crescera naquelas ruas e aquilo era tão incômodo. Somente mais uma.
Na penumbra do ônibus e dependendo apenas da iluminação pública, ela tirou o caderno de desenho da mochila e pegou o lápis. Sua mente estava a mil, sua mão mal conseguia acompanhar o ritmo que o visualizava os detalhes. Ela sentia o controle indo embora, perdendo-se dentro de seus traços.
Tinha dias que Tessa não desenhava. Visitar salas cinzas - ou demasiadamente coloridas - semanalmente jamais seria considerado por ela como uma alternativa para terapias. Ela precisava estar sempre desenhando, com as mãos sujas de grafite ou tinta debaixo das unhas. Ela colocava sua raiva, angústia e medo no papel, nunca em palavras.
Outra discussão com sua mãe na bancada da cozinha após o jantar mais amargo de todos - como ela estava cansada disso. Elas discutiram sobre o fato de a médica nunca estar presente e sempre cobrar muito da filha única. Momentos como aquele deixavam Tessa altamente instável, louca para fugir de casa e nunca mais voltar.
Mas para onde ela iria? O que levaria consigo? Ela conseguiria sobreviver sozinha?
Sua mania de tentar se auto suficiente era um desastre. Todos ao redor tinham medo dela, a personalidade fechada era uma barreira enorme. Por um momento pequeno, ela pensou ter achado uma brecha. Mas era apenas uma ilusão.
Seu corpo desceu do ônibus assim que chegou no ponto final, sua alma estava em outro planeta. Guardou o caderno na mochila com pressa antes que o motorista fechasse as portas e ela tivesse que voltar pra casa.
Seu celular vibrou no bolso do casaco. Ela conferiria a mensagem assim que chegasse a algum lugar - ou seja, ela nunca veria aquela mensagem até ser necessário.
A entrada do metrô estava fechada. Nada de passeios sem destino definidos até o nascer do sol. Ela detestava o fato dos horários do metrô serem ridículos, deixando pessoas como Tessa sem o que fazer.
Ela odiava o outono quase inverno porque as flores não floresciam. Tessa sentia que precisava buscar uma outra inspiração. Nas ondas do mar, nas árvores sem folhas, nas ruas vazias e nas luzes aleatórias. Sua mente a obrigou a parar em um sinal vermelho na esquina. A luz verde nunca chegava, soava até com um combinado com o vento frio.
Droga, como eu odeio isso. O mundo era um grande globo de neve e Tessa era mais um floco inerte na água, em movimento apenas quando algum curioso provocava a agitação. Ela sentia saudades de ser um floco inerte. Transferindo essa ideia para a vida real, ela queria morar dentro do quarto ou do ateliê improvisado no porão de casa, mas depois de Hugo, ela não queria voltar ao porão.
O ateliê particular de Tessa não era mais só dela desde que eles se conheceram em uma livraria na cidade próxima. Tessa estava visitando os avós maternos e tinha tirado um tempo para andar pelas redondezas. Os desenhos não vinham, o divórcio dos pais ainda a deixava mais vazia que um copo de cristal no armário na cozinha.
Mas Tessa evitava pensar nele. Assim como corria desesperadamente de novas pessoas. Tudo o que era novo a assustava. O mesmo gosto pungente e velho que ela sentia no céu da boca era o jeito de ela se sentir segura. Um mundo doce a deixava tonta e ela estava acostumada com a realidade amarga.
Ela estava a quadras de distância de onde tinha descido. Seu corpo ainda não produzia um ruído criativo capaz de destruir o branco na folha de papel do caderno. No ônibus parecia mais fácil quando tudo estava em movimento e Tessa permanecia parada. Agora ela era o movimento e tudo ao redor a observava.
Seus olhos se levantavam e espiavam as janelas amarelas e pretas dos prédios. Cada janela, uma visão diferente de uma mesma rua. E as pessoas pagavam caro demais para viver cada vez mais alto. E quanto mais alto, maior o ego e a conta bancária. Menor a empatia e a felicidade nas pequenas coisas.
Tessa parou em frente a uma vitrine de uma loja de roupas de alto nível. Ela era feliz com as camisetas baratas e os jeans surrados. E gostava de sempre ter uma aversão ao consumismo. Ela realmente via felicidade nas pequenas coisas e aquela cara fechada era fachada para manter todos longe.
No fundo, bem lá no fundo, Tessa gostava de se imaginar como uma adolescente comum, mas ela não conseguia colocar em prática. Sua natureza ia contra o sonho adolescente. Ela era estranha. E o comum nunca foi algo agradável para ela.
...
Era verão e os pais de Tessa tinham acabado de se divorciar. Ela sentou no sofá da sala para receber a notícia e depois quase virou uma planta no jardim assistindo o pai ir e vir com as caixas marrons da mudança. Ele mal tinha ido e ela já sentia um buraco enorme na casa.
E a mãe dela, entre as folgas dos plantões, sumiu com o pai das paredes da sala, armários da cozinha e entulhos da garagem. Tudo tinha ido para o lixo - as fotos, as roupas velhas, as canecas de melhor pai e marido do mundo e os sentimentos. A mãe de Tessa tinha se tornado uma mulher amarga e cansada com os anos de trabalho e jamais admitiria isso com o orgulho do tamanho do universo.
O marido era o contrário do ser que dormiu ao seu lado na mesma cama por quinze anos. Um homem cheio de energia e de uma empatia inexplicável. Tessa odiava a mãe por ter feito aquilo, por ter mudado e afastado as pessoas que ela dizia amar.
A garota nunca chegara a ter a vida que o pai carregava, mas ela estava se transformando na mãe. O convívio direto com ela, a única pessoa humana na casa, era uma obrigação.
A viagem para visitar os avós foi algo que Tessa relutou em fazer. Ficar em um carro por algumas horas e depois andar em uma balsa e pegar a estrada de novo. Só que aquela viagem se tornou um pouco melhor quando Tessa colocou os pés dentro daquela livraria.
Um garoto na bancada conversava com uma mulher dos óculos quadrados e cabelo preso. Ela cumprimentou a garota e pediu para que o garoto fosse abrir as caixas e trazer as notas fiscais para ela.
- Como posso te ajudar? - ela tinha um sorriso acolhedor e muito educado, daqueles que não se esforça muito para iluminar o local.
- Eu preciso de um livro de botânica, o menos ilustrado que você tiver - Tessa respondeu e olhou para o crachá da mulher. - Onde eu posso encontrá-los, Marlee?
- Lá no fundo da loja, numa sessão quase não tocada - ela soltou uma risada. - Gaste o tempo que precisar para encontrar o menos ilustrado. Se precisar de alguma coisa, só me chamar.
- Obrigada.
Tessa se retirou para os fundos da loja. Naquela época ela desenhava flores por diversão, como sua avó paterna havia a ensinado. Ela não misturava o mundo real e flores - não ainda. Comprar o livro menos ilustrado e adicionar suas próprias imagens das plantas e folhas parecia uma boa forma de praticar. Ela já sabia quase todos os biomas da América do Norte e estava focando na porção central e sul do continente.
Tirou a mochila das costas, os sapatos dos pés e o casaco dos braços. Seus dedos buscavam por um livro novo, um mundo novo para afastá-la da mãe. Seus pés ficavam no limite de contato do chão para que ela alcançasse o máximo que pudesse naquela prateleira da livraria antiquada.
- Você precisa de ajuda? - o garoto que ela viu antes surgira ao seu lado de uma maneira tão brusca que ela se assustou e deixou o livro que seus dedos agarravam cair.
Os lábios dela soltaram um grito e os dele uma risada quando o livro caiu, levantou poeira e levou a garota para o chão.
- Desculpa, não foi minha intenção. - Ele a ajudou a se levantar. - Quer uma escada?
- Não, tudo bem, acho que já achei o que precisava - apontou para os dois livros ao lado da mochila dela.
- Eu sou o Hugo - ele se apoiou na estante de filosofia que Tessa jamais tocaria. - Por que você precisa de livros de biologia mesmo parecendo tão jovem?
- Eu gosto de desenhar - respondeu calçando o sapato e amarrando o casaco na cintura.
- Não é nenhuma botânica maluca que some no meio da floresta, não é? Porque eu me sentiria culpado.
Ela riu e apertou os livros mais forte contra seu peito.
- Eu não estou na faculdade, eu desenho por hobbie. - Ela tomou o caminho até o caixa.
Marlee não estava mais lá e, quando Tessa achava que ia se livrar do garoto, ele tomou o lugar na bancada e sorriu. Ela deixou os livros na bancada e tirou a carteira da bolsa. Ela observou Hugo contabilizar os valores e colocar os livros numa sacola de plástico azul.
- Setenta dólares - ele disse e ela entregou o cartão de crédito.
Ele passou a máquina para que ela digitasse a senha e pegou alguns marca páginas para ela, deixando um sobre a bancada e anotando algo no verso. Antes que ela pudesse ler o conteúdo, ele o guardou junto com os outros.
- Que horas você sai daqui? - ela perguntou guardando as coisas.
- Eu trabalho com a minha mãe, então só quando o comércio fecha.
Ah sim, imaginei que isso daqui fosse um negócio de família. Ela pegou a sacola e os marca páginas, saiu e atravessou a rua até uma loja de café famosa. Entrou, comprou chá e se sentou em um dos sofás acolchoados.
Apoiou o caderno de desenho em suas pernas e tentou se lembrar dos traços do garoto. Hugo tinha o cabelo castanho da mãe, mas os olhos azuis deveriam pertencer a outra pessoa. Seu corpo era alto e atlético - com certeza o físico de competidor de atletismo - e seu sorriso era quente como o café que a barista entregava para um senhor.
Suas mãos foram rápidas em desenhar o rosto de Hugo rodeador e invadido por flores que Tessa desenhava há anos. Era tudo ou nada naquele momento. Seu espírito artístico renascia depois de uma temporada ruim e pesada. Ela sentia toda a inspiração correr por seu corpo, as borboletas no estômago e as flores surgirem.
Quando terminou o desenho, ela o assinou com sua inicial, escreveu "Amanhã, assim que a loja fechar, eu te encontro" e voltou na loja apenas para deixar o desenho em cima do balcão.
Ela chegou em casa e viu que Hugo tinha deixado seu número no marca página. Ela o escondeu em seu caderno de desenho e se jogou na cama. Adeus, dias ruins.
...
Caminhando pelas ruas e avenidas, Tessa tentava encontrar aquele sentimento que Hugo tinha despertado nela. Era algo bom, melhor que tomar sorvete em um dia quente de verão, e totalmente diferente do que ela havia experienciado.
Foi algo realmente bom e ela se perguntava se um dia o encontraria de novo. Não só Hugo, mas aquela sensação estranha de alguma vez na vida pertencer ao mundo de alguém. E de ter alguém pertencendo ao seu mundo.
As cafeterias que eles foram, as ruas que eles caminharam, as fotos e momentos que Tessa guardava na memória, tudo tinha sido tão bom para aquela época. Ela estava triste e pensou que talvez Hugo pudesse ajudá-la como amigo - jamais procuraria alguém em um momento difícil.
Talvez se ela pensasse nele como antes e voltasse para o porão, conseguiria desenhar como antes. Mas desenhar Hugo sempre trazia péssimas sensações e as flores, que deveriam ser vivas no papel, pareciam mortas.
Entrou na primeira cafeteria que encontrou aberta, pediu um chocolate quente e uma rosquinha para viagem, pagou, saiu do estabelecimento bebericando o chocolate. O sabor não chegava nem perto do que Hugo preparava para ela.
Quando eles se encontraram no dia seguinte, Hugo a levou até uma cafeteria que ela nunca tinha ido e pagado um chocolate quente para ela. Mas ele era convencido de que fazia um melhor e Tessa, não percebendo a intenção dele, duvidou. Depois de muitas horas falando e perdendo a noção do tempo, eles combinaram de se encontrar de novo.
Os domingos eram os dias de folga do Hugo e ele aproveitou para convidar Tessa para sua casa. Era verão e mesmo não sendo a época de chocolate quente, ele preparou a melhor versão da bebida que Tessa havia tomado.
Ele roubou um beijo dela na cozinha, quando foi limpar o bigode de chantilly dela. Mas não foi só um beijo roubado, Tessa sujou a bochecha dele com chantilly, disse que limparia e depositou um beijo na bochecha e outro na boca.
Tessa, infelizmente, teve que ir embora. Mas a distância não era muita coisa para aqueles dois.
Só que no momento que ela caminhava pelas ruas vazias, ela via o problema na distância. Quando havia sentimento, era fácil ir sabendo que ele estaria esperando. Depois de tudo, ela nem sabia mais se ele estaria esperando.
...
Aquele final de semana era a vez de Hugo visitar Tessa. Na real, aquele era o primeiro final de semana que ele pegava a balsa e o ônibus para vê-la porque todas as outras vezes ela o convenceu que era mais fácil ela ir.
Ela estava esperando a balsa que saía seis horas chegar torcendo para que o tempo nublado fosse embora no sábado. Não que Tessa odiasse a chuva, mas ela tinha planos que não envolviam guarda chuvas e roupas encharcadas.
Hugo nunca tinha ido visitá-la porque, bom, Tessa não queria contar para a mãe sobre ele e tinha quase certeza que ela não deixaria ele dormir lá. Mas como naquele final de semana a mãe tinha uma convenção do outro lado do país, ela deixou a filha por conta até a terça feira. Então Tessa correu para o celular e pediu para Hugo vir na sexta após o colégio.
Quando ela ia, sempre pegava a primeira balsa do sábado e a última do domingo dizendo para a mãe que passaria o final de semana na casa de uma amiga. Ela sabia que a mãe jamais ligaria para confirmar ou se importaria, era por isso que Tessa deixava bilhetes na geladeira - na verdade, era sempre o mesmo bilhete.
A balsa chegou às oito horas em ponto. Tessa mal se aguentava de ansiedade encostada no seu carro - presente de sua mãe assim que conseguiu a carteira - e não parava de pensar se causaria uma boa impressão assim. Hugo era uma pessoa de costumes simples, de uma vida calma. Ela sentia isso sempre que estava com ele, mas não sabia se ele estava pronto para a agitação da cidade.
Tessa o viu se aproximar do estacionamento ainda perdido ali. Ela levantou a mão e assoviou e ele a encontrou no segundo seguinte. Hugo era um veterano quase indo para a faculdade de personalidade quase adulta. Ele tinha uns momentos brincalhões, mas ela se assustava quando ele parecia mais velho para a idade.
- Ei, como foi de viagem? - ela o abraçou antes mesmo que ele deixasse a mala no chão.
- Foi tranquilo - ele a envolveu em seus abraço de urso, quase engolindo o corpo dela. - Como você está?
- Melhor agora - ela se afastou e observou atentamente. - Quer comer em um restaurante ou preparar algo lá em casa?
- Você vai cozinhar para mim? Porque hoje eu sou seu convidado.
- Mas e aquela vez que eu te ajudei com o macarrão?
- Foi uma ajuda voluntária. - Ele ajeitou o cabelo dela.
- Eu demoro para cozinhar e ainda temos um longo caminho até a minha casa.
- Podemos pedir pizza então? Eu estou morto de fome.
- A gente pode comprar pizza no caminho.
Tessa se abaixou para pegar a mala de Hugo, mas ele a segurou e a puxou para mais perto. As costas dela tocaram o carro e seus lábios se tocaram. Tessa esperou a semana toda por aquele momento, quando finalmente se sentiria bem.
As mãos dela se embolaram no cabelo dele e ele a segurou mais firme ainda contra seu corpo. Ele não falava, mas era perdidamente viciado nos lábios daquela garota desde o momento que colocou os olhos neles.
- Melhor a gente ir logo - ela juntou forças para não continuar o beijo, mas manteve-se perto dele. - Hugo, eu estou falando sério - ele beijava o rosto dela sem pausa. - A gente pode terminar isso lá em casa.
- Se você está dizendo. - Ele enrolou um cacho do cabelo dela no dedo indicador e soltou. - Seus pais não estão em casa então?
Ela se afastou e deu a volta no carro, jogando a mala dele no banco traseiro.
- Não, não estão - ela guardou um pouco da dor que aquela perguntava gerava para si. - Entra logo.
Tessa se jogou dentro do carro e observou Hugo fazer o mesmo. Ele tinha contado para ela que visitara a cidade de Tessa algumas poucas vezes, algo realmente estranho porque era uma cidade enorme, o centro de tudo naquela região. E Tessa conhecia a cidade dele como a palma de sua mão. Isso é tão injusto, porque eu posso te surpreender facilmente, ela pensou uma vez. Ele tinha o dobro de trabalho para surpreendê-la.
Melhor deixar as coisas mais simples para ele. Tessa manobrou o carro e ligou o sistema de som do carro para criar um ambiente menos assustador. Mas esqueceu que sua playlist mais pesada estava conectada e se atrapalhou para trocar para a rádio. Ela sentiu a risada de Hugo ao seu lado e apertou o volante com mais força.
- Você é uma pessoa pronta para surpreender qualquer um. - Ele abaixou o volume do mais novo hit pop que irritava Tessa. - Primeiro você fala que não vem me buscar e aparece aqui num carro mais caro que a minha casa. Depois tem esse gosto musical de deixar qualquer um maluco, num bom sentido, claro. E agora finge que nada aconteceu antes de eu vir para cá.
- Você poderia, pela primeira vez na sua vida, ficar quieto por alguns minutos? - ela soltou.
- O que foi? - ele perguntou surpreso. - Eu estou apenas fazendo uma observação.
- Guarde-as para você, Hugo. - Tessa fez a curva com um pouco mais de velocidade do que deveria. A chuva começava a cair fina e tímida, mudando completamente a atmosfera dentro do carro.
- Ei, eu te ofendi?
Ela balançou a cabeça em afirmativa e encostou o carro na primeira brecha que viu do lado de fora da rodovia. Passou as mãos pelo rosto e apertou a carne da sua perna.
- Desculpa, eu não estou me sentindo bem hoje - ela respirou fundo. - Eu deveria ter desmarcado contigo...
- Tessa, não, por favor - Hugo desligou o som e tentou envolver o corpo dela com seus braços. - Me desculpa, ok? Eu não quis ofender. É que realmente parece que o mundo te perturba, mas aí você me vê e parece que tudo fica para trás. - Ele enxugava as lágrimas dela. - Quando chegarmos na sua casa, você quer conversar comigo?
Ela balançou a cabeça em afirmativo e sentiu Hugo se afastando. Colocou o carro de volta na rodovia e só parou quando avistaram uma pizzaria no caminho. Hugo voltou com uma pizza de pepperoni que deixaria seu cheiro dentro do carro de Tessa por uma semana. Ela apenas dirigiu como se não pudesse mais ficar ali, como se fosse continuar com o carro na rodovia e chegar em algum lugar novo e longe demais para os problemas alcançarem-na.
A paisagem começou a se tornar familiar para Tessa, seu coração parou de bater forte no peito e ela sentiu sua respiração voltar ao normal. Aquela era a primeira vez que estar quase em casa era algo que a acalmava.
Estacionou o carro na garagem, desceu com a mala de Hugo em uma mão e as chaves na outra. Abriu a porta, levou as coisas até o quarto dele, passou em seu para pegar uma camiseta velha e desceu como um raio até o porão.
Hugo não teve tempo direito para processar ou imaginar o que ela faria. Foi até a cozinha, deixou os pedaços de pizza de Tessa lá e desceu. A escada rangia sob seus pés, as paredes ao redor não eram uniformes, as pinturas e desenhos cobriam cara centímetro. Bons desenhos e traços infantis, ele sentia que todos pertenciam a Tessa.
Seus olhos a encontraram em um canto afastado, sentada em um tapete e quase enterrada nas almofadas ao seu redor. O corpo encolhido e a cabeça apoiada em uma almofada de estampas infantis. Aquele não era um porão que ele esperava de Tessa O'Connor.
- Aposto que esse lugar é o seu porto seguro. - Ele se aproximou lentamente, tentando não encarar os desenhos ao redor. - Tessa, você sabe que pode contar comigo. - Tomou um lugar ao lado dela. - Você pode me contar o que está acontecendo?
...
Tessa vez todo um caminho de volta. Ela não queria ver vitrines porque elas mostravam a pessoa que Tessa tinha se tornado. Com o tempo, ela tinha aprendido que transparecer sentimentos não era uma fraqueza, era um luxo se você tinha a quem demonstrá-las.
E ela se odiava cada dia mais por ter deixado Hugo sem conhecer suas fraquezas por completo. Ela omitiu muitas histórias naquela noite. Escondeu que a mãe afastou o pai com algo além de obsessão pelo trabalho, as brigas diárias e os medos de estar perdida e se tornar apenas um número para a sociedade.
Tessa tinha medo de tudo ao seu redor. Tinha medo da própria sombra enquanto caminhava sob a iluminação pública. Seus olhos se levantaram em direção ao final da rua, ao oceano que invadia a cidade e criava uma península cheia de história e rodeada por montanhas.
O oceano ali não tinha cheiro ou gosto, não era como passar o dia na beira da praia. Era apenas água pronta para levar pequenas partículas de um lugar a outro. Tessa queria ser um grão de areia para sair dali e acabar em qualquer outro lugar novo, desconhecido e sem memórias.
Demorou alguns minutos, com medo de chegar perto da água e ser engolida. Mesmo na grade, mesmo protegida por um clima que jamais mudaria - tudo bem, ela sabia que a natureza nunca tinha planos exatos para todos. Continuou na grade, com os braços agarrados ao metal e ponta dos pés.
Seu celular tocou e ela visualizou o nome no visor. Uma parte dela não queria atender, mas ela o fez.
- Ei - sua voz era frágil e leve, diferente dos seus pensamentos.
- Tessa, me desculpa te ligar tão tarde - Hugo parecia cansado. - Eu te acordei?
- Não, eu nem dormi ainda.
- Ah - e com isso ela entendia que ele tinha começado a se preocupar com ela, mesmo depois de tudo. - Então, eu vi os desenhos que você postou, eles parecem magníficos, mas eles não são o motivo pelo qual te liguei. Podemos conversar?
Ela tomou um minuto para pensar em suas palavras e controlar suas emoções. Talvez ela precisasse de mais do que um minuto.
...
- Tessa, eu sinto muito - Hugo deixou que ela deitasse em seu peito depois de contar tudo sobre como estava sozinha, como se sentia e como isso influenciava seus desenhos. - Você não tem culpa em nada disso, você sofre com as consequências das pessoas ao seu redor. Eu sei como isso parece impossível de fugir, um túnel sem saída, mas você precisa pensar que tudo é temporário e que pode substituir quem está ao seu redor.
Ela continuava chorando, engolindo soluços e sentindo algo estranho dentro de si. Hugo trazia conforto para seu corpo fraco e pensamentos nunca ditos em voz alta. Ela tinha contado tudo o que achava digno da atenção do garoto. Eu devo significar muito para ele, porque todo mundo pensa que somos só um caso.
- Eu estou aqui, ok? Você pode contar comigo quando precisar. Me ligue e eu apareço aqui no mesmo dia. Eu queria dizer que entendo completamente as batalhas que você está lutando, mas eu não entendo. Vidas não são perfeitas e podem funcionar mesmo assim.
Ela se ajeitou no peito dele e tentou se controlar. Se ela pudesse se mudar, mesmo que para a casa dos avós, talvez fosse diferente e um novo início. Ela teria Hugo por perto - pelo menos por um tempo - e estaria longe da mãe.
Quando a dor parou de se transformar em lágrimas, Tessa sentia a inspiração correr em suas veias. Era como se ela tivesse voltado para o dia que conheceu Hugo. Seu corpo a jogou para longe da pilha de almofadas e foi atraído até o cavalete vazio ali em frente.
Suas tintas permaneciam intactas e nos mesmos locais da última vez que as usou. Pegou um pincel, um bloco de folhas de pintura grande e abriu todas as tintas que precisaria.
Hugo permaneceu nas almofadas e acompanhou cada movimento da garota com os olhos, sem questionar muito. Tessa precisava de espaço e tempo para processar tudo o que passava. Ela era uma artista, ele sabia que ela encontraria a melhor terapia para si pintando coisas sem que ele perguntasse mais nada.
Ele deixou que ela o pintasse por muitas horas até ele sentir os olhos se fechando.
- Chega, Tessa, amanhã você continua! - ele se levantou em um pulo, agarrou a garota pela cintura e a levou para o segundo andar da casa.
Tessa tentava fugir porque sua alma gritava pelas tintas, mas o amor que ela sentia a fazer desistir daquela ideia e rir, enchendo a casa de uma vida que as paredes já não reconheciam mais.
Hugo a levou para o quarto e a deitou na cama de cobertores azulados. Tessa ria como uma criança e ele gostava de como isso vestia bem as feições duras dela. Ele beijou o rosto dela - primeiro as bochechas, depois os lábios - e a colocou sobre ele com um movimento.
As mechas cacheadas faziam cócegas contra a pele dele, o toque era eletrizante e de outra vida. A garota sabia o que fazia com aqueles lábios.
Quando eles se transformaram em dois corpos somente, um amontoado de cobertores e risadas, Tessa teve um pouco mais de certa sobre Hugo. Talvez seja ele quem vai me tirar desse monotonia.
- Ei, Hugo - ela ergueu o rosto para vê-lo melhor. - Eu acho que te amo.
- É, Tessa, eu acho que também te amo.
...
- Eu tenho que te fazer uma pergunta antes - ela disse sussurrando, mesmo que não houvesse ninguém por perto aquela hora da madrugada.
- Pode mandar. - Ela sabia apenas pela voz dele que ele tinha acabado de acordar.
- Você realmente se importava comigo?
E o silêncio veio do outro lado da linha.
As memórias eram muitas. Hugo sempre estava ao lado de Tessa, menos quando não podia pegar a balsa para vê-la. Ela apreciava o esforço dele de largar o que fazia para tentar vê-la, mas ele tinha que conseguir uma faculdade e ajudar a mãe no negócio da família.
Hugo e Tessa se viram pela última vez no verão, um ano depois de terem se conhecido. Ela tinha decidido ir ao acordar naquela manhã quente de verão. Pegou o carro, dirigiu até a balsa e torceu para que a mãe não inventasse de procurá-la assim que chegasse do plantão.
Tessa acelerou na rodovia, rindo na cara da morte todas as vezes que seu carro deslizava um pouco mais do que deveria. As curvas eram pequenos desafios contra o controle dela na direção.
Seu celular apitou, indicando que uma mensagem de Hugo deveria ter chegado.
Hugo: Mais um dia chato na livraria :-P
Ela desviou sua atenção para digitar um simples sorriso em resposta. As placas indicavam que ela estava quase chegando. O corpo dela estava ansioso para reencontrar Hugo mesmo depois de ele ter passado a semana com ela.
Seu coração se acalmou quando ela conseguiu avistar as primeiras casas e prédios. As mãos pararam de apertar com força o volante. Os pensamentos conseguiram focar em apenas uma coisa.
Com aquelas idas e vindas deles, Tessa tinha passado a pintar uma quantidade absurda de quadros por semana. Seus cadernos da escola estavam lotados de flores e rostos nas laterais das folhas. Ela vendeu alguns quadros e reverteu o dinheiro para uma ONG de cachorros abandonados.
Ela estacionou algumas quadras antes contando, passou na cafeteria favorita de Hugo e comprou chocolate quente - com chantilly extra - e alguns bolinhos. Ele vai ficar tão feliz quando me ver. Tessa era pura confiança e amor.
- Tessa, eu posso me explicar, eu te disse que posso - ele ressuscitou, lá do outro lado da linha.
- Eu já disse que não quero ouvir as suas explicações, Hugo. Só estou te atendendo agora porque eu quero que você responda a minha pergunta. - Ela controlou a voz para não gritar.
A Tessa do passado continuou andando até a livraria enquanto a Tessa do futuro gritava para ela dar meia volta. As ruas pareciam calmas, as crianças que passavam correndo em suas vestimentas de verão mal poderiam prever o que estava para acontecer.
Quando ela entrou na livraria, não viu Marlee no balcão. Se Tessa tivesse sido mais atenciosa, ela teria visto o aviso de almoço na porta. Mas a mente dela sabia que aquele aviso servia para ela e Hugo se pegarem nas estantes dos fundos quando a mãe dele saía.
Ela não chamou o nome dele - que grande erro dela.
A movimentação nas últimas estantes - religião e cultura - assustou Tessa. Livros caíram e ela chamou pelo nome de Hugo. Ele surgiu um segundo depois, quase despido, enquanto uma garota tentava se esconder.
- Tessa, por que você veio me perguntar isso agora? - o Hugo real a chamou de suas memórias.
- Porque eu preciso saber disso agora.
- Tudo bem, você não está fazendo o certo...
- Hugo, quem é você para falar do que é certo ou errado agora?
- Eu não sei, Tessa, eu não faço ideia do que é certo ou errado desde o dia que te conheci.
- Ah, então foi certo o que você fez comigo? Me trair enquanto eu confiava todos os meus segredos e sofrimentos a você? Nossa, que certo.
- Você deveria entender que o risco foi seu quando resolveu namorar alguém que mora a um mar de distância! - ele gritou com ela.
- Eu te amava, Hugo, e eu tomei esse risco porque eu sentia que você correspondia. Mas eu estava tremendamente enganada. - Ela começava a chorar, misturando suas lágrimas com o oceano.
- O problema é que você não sabe lidar com suas emoções, Tessa.
- Eu sou uma artista, eu sinto demais, eu me emociono demais, eu choro mais do que qualquer um. Eu me agarrei a você e deixei minhas barreiras irem embora. Mas depois de tudo, eu só aprendi a deixá-las mais fortes, jamais amando novamente.
- Você não sabe o que é amor, não tem nem um exemplo para se apoiar.
- Não se atreva...
- Eu me atrevo sim, porque você é igualzinha a sua mãe, garota. Ela suga as pessoas com quem se envolve e você faz o mesmo.
- Então você não se importava comigo?
- Droga, Tessa, eu me importava com você, ok? Mas você me sugava. Toda vez que estávamos juntos era como se você estivesse ali para sugar a minha energia e voltar a sua vida. Aquele dia na livraria, eu estava tentando me recuperar.
- Bom, você deveria ter sido sincero. Só isso teria me bastado de todo esse show. Agora eu preciso ir e...
- Ei, Tessa, não, por favor. Eu sei, eu sou um idiota. Você merece alguém melhor e eu torço para que você encontre alguém que te entenda. Você é uma artista que precisa de alguém como você para te inspirar. Eu sinto muito por ter te magoado e partido seu coração. Podemos, pelo menos, terminarmos essa ligação como amigos?
- Hugo, nós nunca mais poderemos ser amigos, conhecidos, não importa. Só continue a sua vida como se eu nunca tivesse existido nela, ok?
- Ok. Adeus, Tessa.
- Adeus, Hugo.
Ela desligou. Ela chorava, por dentro e por fora.
Sentir demais era um dor problemas de Tessa.
Mas ela jamais reconheceria isso.
Porque sentir era a única coisa que a fazia ser artista.
Tessa voltou para casa na parte de trás de um táxi chorando. Ela mal conseguira dizer seu endereço. Mesmo enquanto as lágrimas caíam, ela desenhava freneticamente as imagens que surgiam em sua mente.
Mente em movimento. Sentimentos em repouso, afundando até o fundo do poço.
O ateliê no porão perdeu todos os significados e momentos que ela criara ali. Finalmente, pensou ela assim que subiu com todos os quadros que tinha feito de Hugo. Passou na cozinha rapidamente para pegar papel e caneta e sair pela porta da frente carregando cinco telas que um dia ela teve orgulho de pintar.
Leva-as para longe daqui, estranho. Eu agradeço. T. Deixou escrito no bilhete sobre as telas.
Tarde daquela madrugada, Tessa conseguiu se classificar em algum tipo de arte - se ela era artista, por que não classificar a si mesma? Seria mais fácil para encontrá-la em algum museu.
Ela era o bom e puro melodrama. Uma obra dramática acompanhada de fundos musicais.
Ou apenas uma vida complicada e exagerada onde não deveria ser.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro