CHAPTER XXVII: Gods And Monsters
| L A N A |
15 de agosto de 2017
QUANDO A NEBLINA OPACA QUE CERCAVA OS ARREDORES finalmente desapareceu, alguns dos moradores da cabana tiveram uma estranha surpresa. Disseram que não era comum avistar corvos por aquelas redondezas, e que esses pássaros não costumavam se afastar da cidade — a qual localizava-se há mais de vinte quilômetros dali —, mas haviam dezenas, talvez centenas, preenchendo os galhos dos pinheiros que rodeavam a moradia. Pequenos vultos negros sobrevoando a cabana com um corvejar quimérico, como se alguém os houvesse convidado para o café da manhã. Provavelmente estão inaugurando uma nova rota para fugir das tempestades em Corbeaux, sugeriu Charles, mas ninguém estava preocupado com aquilo.
Assim que as visitantes, Katherine e Cassandra, sentaram-se à mesa — casualmente, cumprimentando a todos com bom humor —, o clima no cômodo pareceu ficar mais carregado que uma noite chuvosa em Corbeaux. O assunto dos corvos não durou mais do que dez segundos pelo fato de que a tensão naquela mesa poderia ser cortada com uma tesoura. Era como se estivessem tomando café da manhã na companhia de uma bomba relógio, a qual todos — exceto Sarah e Lana — sabiam que estava prestes a explodir.
Katherine se sentou entre Cassandra e uma cadeira vaga na ponta da mesa. Ao lado de Cassandra estava Ethan, depois Jason, e na ponta, Charles — o qual mostrara-se ser um velho amigo das visitantes, sendo o único que demonstrou verdadeira satisfação pela visita das duas. Esme sentava-se à cabeceira da mesa, próxima a Charles, com sua habitual postura de chefe da casa, observando Katherine com um sorriso frio, como se estudasse uma adversária em uma partida de xadrez.
Elizabeth havia acabado de se juntar ao grupo, não mais com dores de cabeça depois do chá de Esme — o qual, felizmente, também funcionara em Lana —, percebendo imediatamente a atmosfera carregada da sala de refeições. Ela se sentou à ponta da mesa, de frente para a cadeira vazia à direita de Katherine. Ao seu lado estava a segunda cadeira vazia, depois Madelyne, Lana, Sarah e então Ian, na outra ponta. Eleanor e Megan eram as únicas que ainda não estavam ali. A primeira dissera que subiria para chamar a segunda, mas quinze minutos se passaram e não havia nenhum sinal de uma ou outra.
— Você deve ser Sarah — Katherine falou, casualmente cobrindo com geleia uma fatia de torrada. — Ouvi muito sobre você. Digo, a primeira versão de você. Eryn alguma coisa, nao é mesmo? Já recobrou alguma parte das memórias, Querida?
Sarah, no lado oposto da mesa, sentada à esquerda de Lana, ficou sem ação por alguns segundos. Talvez estivesse tentando lembrar em que momento o rumo da conversa havia mudado para a direção de seus traumas.
— Hmm… algumas, sim — soou mais como pergunta do que como resposta. — O que você ouviu sobre mi… sobre Eryn?
— Não se preocupe, querida, tenho certeza de que encontrará todas as peças do quebra-cabeça em breve. — Com um sorriso frio, ignorou a pergunta e mudou de assunto como se fosse a anfitriã de alguma coisa. — E você? Lena, não é? Conheci sua avó, sabia?
— Na verdade, é Lana — ela corrigiu, cordialmente.
— Uma bruxa da natureza adorável — ela continuou, imersa em sua conversa unilateral, a atenção voltada para a calda a ser derramada sobre suas panquecas. — Lembro-me que quando ainda estava aprendendo a controlar os poderes, acidentalmente colocou fogo no cabelo de uma das Pérolas de Madame Victoria. — Ela foi a única a rir, uma risada fina e requintada, tão elegante quanto sua postura e a forma como usava os talheres. — As outras Pérolas tentaram ajudar mas o fogo só foi apagado quando alguém derramou uma taça de vinho sobre sua cabeça. Aquilo foi hilário. Você se lembra, Cass?
Cassandra, sentada ao seu lado, balançou a cabeça em afirmação. Ela estava nitidamente desconfortável, talvez mais do que todos os outros, e até aquele momento Lana ainda não havia entendido o motivo.
— Novatos sempre me divertem tanto — ela prosseguiu. — São como filhotinhos de poodle. Nunca sabemos qual será sua próxima tolice. Você não acha, Luna?
— Lana — repetiu.
Charles inclinou-se sobre a mesa para conseguir fitá-la na outra ponta.
— Kath, posso falar com você em particular? — ele perguntou.
— Mas é claro, Charlie, assim que eu terminar essa panqueca. Uma dama não deve se retirar no meio de uma refeição.
— Kath — Cassandra voltou-se para ela em voz baixa —, já está ficando tarde. É melhor voltarmos para Celeste.
— Cass, por favor, não saímos de Celeste há semanas. Vamos apenas aproveitar esse adorável café da manhã antes de partirmos. — Ela elegantemente tomou um gole de sua xícara de café antes de retornar a atenção para Lana. — Diga-me, Hanna, sua irmã está se preparando para chefiar uma Casa de Plantio, correto?
— La-na.
— Isso é formidável! Tenho certeza de que vai ser devidamente aperfeiçoada no treinamento. Infelizmente, não se fazem mais Bruxas da Natureza como antigamente. Não é mesmo, Esme?
Esme sorria tão cinicamente quanto ela.
— Certamente, não.
— Você sabe mais do que ninguém. Para falar a verdade, nunca pensei que algum dia a veria cuidando de uma Casa de Plantio. Especialmente depois de todo aquele drama entre você e Charlie, séculos atrás. — Suas últimas palavras foram o suficiente para deixar Charles desconfortável e transformar o sorriso cínico de Esme em um sorriso sanguinário. — Oh, mil perdões. Não foi minha intenção desenterrar um assunto tão antigo. Devo estar parecendo bem enxerida agora, não é?
— Eu tenho outro adjetivo em mente — Megan retrucou inesperadamente, adentrando no cômodo com um sorriso tão gélido quanto o da visitante. — Katherine, que surpresa agradável.
Megan estava um pouco mais produzida do que o esperado para um simples café da manhã, trajando um belo vestido de seda vermelho, o qual destacava delicadamente o vermelho de seus lábios e de suas bochechas, além de acentuar o ouro de seu fino colar com um “C” inscrito em um coração. Ela se sentou na cadeira vazia entre Elizabeth e Madelyne, de frente para Katherine, e nem ao menos cumprimentou ou olhou para a segunda visitante, Cassandra, a qual parecia cada vez mais incomodada.
Eleanor entrou logo em seguida, um sorriso de desespero marcava o canto de seus lábios quando se sentou no lugar vazio ao lado de Katherine, de frente para Elizabeth.
— Nós dissemos para você segurá-la lá em cima — Elizabeth sussurrou para Eleanor, o olhar de reprovação.
— Fiz o que pude, mas não sou o Superman! — Eleanor sibilou de volta.
— Megana! — Katherine exclamou. — Como é bom ver você!
Houve uma movimentação sutil no instante em que ela pronunciou aquele nome, como se esperassem que Megan reagisse violentamente àquela provocação.
— Aposto cem pratas que ela surta em menos de dez minutos — Ethan sussurrou para Ian à sua frente.
— Combinado.
— Isso vai ser divertido — Madelyne sorriu diabolicamente, a única que desde o primeiro momento parecia ansiosa para ver o circo pegar fogo.
— Katherine, vou ser honesta, amei o que fez com o cabelo. — O sorriso de Megan era tão grande que beirava a psicose. — Está bem menos abominável do que o normal. Continue assim e talvez algum dia as criancinhas não chorem quando cruzarem com você.
Jason sutilmente cuspiu o suco de volta na taça enquanto bebia, mas Katherine não se segurou, riu tão alto que quase perdeu a elegância.
— Você continua uma graça, Monstrinha! Sério, até consigo entender o que Cass viu em você.
— Kath, não — Cassandra ordenou, seriamente.
— Opa, parece que já está ficando meio tarde — Eleanor comentou com um sorriso nervoso.
— Eleanor, fique quieta — Madelyne, comendo uma torrada, sibilou como se alguém houvesse atrapalhado sua novela.
— Nunca foi difícil de entender. — Megan riu de leve. — Cass sempre teve bom gosto.
— Eu tenho que concordar. — Katherine meneou com a cabeça. — Ela sempre teve um fascínio por criaturas estranhas.
— Kath, pare agora. — Cassandra estava nitidamente incomodada. — Se você não se levantar dessa cadeira agora mesmo, eu vou embora sem você.
— Não seja boba, Cass — Katherine desdenhou com a mão. — Megana e eu estamos apenas brincando.
— Pois é, Cass. — A voz de Megan era carregada de ironia quando pousou o olhar sobre Cassandra pela primeira vez desde que se sentara. — Você nunca se importou com o que ela dizia sobre mim antes, por que se importa agora?
Cassandra não respondeu, e também não se levantou. Havia aflição em seu semblante, o qual agora não era apenas de alguém desconfortável, e sim de alguém ferida.
— Uma pena vocês não terem dado certo — Katherine bebeu elegantemente de sua taça antes de terminar. — Eram um casal tão…
— Isso não vai acabar bem — Esme suspirou.
— Kath, não entre nesse assunto — Charles falou em tom duro.
—...interessante — ela completou, não dando atenção ao aviso.
E naquele momento Lana soube o que significava o “C” no colar de Megan. Cassandra.
— Fico surpresa que tenha notado. — Megan colocou uma panqueca em seu prato. — Sempre imaginei que esse relacionamento doentio com si mesma não te deixava com tempo o suficiente para reparar no mundo ao redor.
Naquele momento todos a encararam com olhares preocupados. Ela havia apanhado a maior faca da mesa, e a usou para, lentamente, partir em pedacinhos a panqueca sobre seu prato. A faca não era o que os preocupava, e sim, a panqueca. A dieta de Megan era estritamente carne humana, e comer qualquer outra coisa, especialmente algo que não fosse carne, não a faria bem algum.
— Você não vai comer isso, vai? — Katherine, olhando-a com certo divertimento, era a única que não esboçava nenhum tipo de consternação. — Ouvi dizer que não consegue comer nada que não grite bastante antes de ir para o seu estômago.
— Pelo visto eu estava enganada — Megan ponderou em voz alta, a atenção voltada unicamente para o mel que derramava sobre os pedaços cortados da panqueca. — Você realmente tem tempo para se importar com o que não é da sua conta.
— Megan… — Jason chamou, preocupado.
Ela pegou um pequeno pedaço de panqueca, colocando-o na boca enquanto olhava nos olhos de Katherine, como se tivesse aceitado um desafio.
— Sempre admirei essa sua intensidade feroz — Katherine disse, e dessa vez não havia ironia em sua voz. — Me lembra muito eu mesma quando era mais jovem, vários séculos atrás. Mas não é novidade que você vem se inspirando em mim desde que nos conhecemos.
Megan riu.
— Sua modéstia me contagia.
— Acha que não percebi? — O sorriso de Katherine era desafiador. — Sua personalidade, seus modos, até mesmo seu guarda-roupas. Tudo mudou depois que me conheceu. Vamos, Megana, você já é grandinha. Está na hora de admitir.
O sorriso de Megan havia desaparecido, mas o olhar, frio e penetrante, permaneceu.
— Você me odeia desde o primeiro dia porque desde o primeiro dia você descobriu o que queria se tornar.
— Supere-se, Katherine. Diferente do que dizem as vozes debaixo desse seu cabelo horrendo, nem todo mundo quer ser você.
Katherine deu de ombros.
— Nem todo mundo pode.
— Exato. — O sorriso de Megan voltou. — Nem todo mundo pode ser uma boneca de vodu estúpida que é tão vazia quanto um buraco negro.
— Você conhece bem o vazio, não é mesmo? Garota Morta-Viva.
Um segundo foi o suficiente para todos reagirem ao impacto do termo usado pela visitante, como se fosse uma palavra proibida. E em apenas um segundo, a grande faca que ainda repousava na mão de Megan, voou como uma bala em direção ao rosto de Katherine. Tudo aconteceu tão rápido, que os outros só conseguiram reagir depois que a mão de Katherine, com um reflexo veloz, agarrou o objeto em movimento. A lâmina parou a apenas um centímetro de seu rosto.
Ela sorriu, e o que fez em seguida causou em Lana uma surpresa em forma de susto. Com um olhar de divertimento, a garota cravou a faca nas costas da própria mão, a qual ainda repousava sobre a mesa. Um grito de dor chacoalhou a atmosfera do ambiente, fazendo todos se levantarem assustados. Mas não era Katherine quem gritava. Era Megan.
— Pare com isso, sua vadia idiota! — Megan urrou de dor.
Havia sangue escorrendo das costas de sua mão sem nenhum motivo aparente.
— Parar com o quê? — Katherine, a única ainda sentada, esboçava um sorriso sádico enquanto torcia a lâmina fincada em sua própria mão. — Eu não sinto nada, sou apenas uma boneca de vodu estúpida.
E realmente não sentia. Aquele era o terrível e temível poder de Katherine Adamok. O dom de transferir para outros o que quer que acontecesse com seu corpo. Como Megan antes dissera, aquela bruxa da carne era basicamente uma boneca de vodu.
— Katherine! — Charles esbravejou.
— Katherine, pare!
Cassandra rapidamente agarrou a faca, e foi necessário um pouco de esforço para arrancá-la das mãos de Katherine.
Megan parou de gritar quando Cassandra finalmente se livrou da faca, mas seu rosto era carregado de ódio enquanto encarava a expressão de divertimento no rosto de Katherine. Elizabeth e Madelyne tentaram acalmá-la, mas quando um intenso brilho de cor rosa tomou conta de suas íris, ambas souberam que era melhor se afastar.
— Eu vou… — Megan começou, pausadamente, seu tom de voz aumentando a cada palavra — devorar esse seu rostinho bonito… e cuspir. ELE. FORA, KATHERINE!
— Oh, é mesmo? — não havia temor algum no rosto de Katherine. — Pensei que só se alimentava de homens.
— Abro uma exceção pra você.
Aquele foi o instante em que o rosto de Megan mudou por completo, e os olhos cor-de-rosa deixaram de ser a única coisa anormal ali. Em menos de três segundos, sua beleza e jovialidade foram engolidos por uma feição terrivelmente macabra. Sua mandíbula se abriu como a de uma cobra, mostrando as presas afiadas que mais se pareciam dentes de tubarão, ao tempo que seu urro demoníaco conseguiu fazer a sala tremer. Foi uma cena tão horripilante, que Sarah correu para o canto da sala, soltando um grito de choro antes de cobrir os olhos.
Tudo aconteceu muito rápido, mas no momento em que Megan avançou na direção de Katherine, e vice-versa, algo inesperado aconteceu. As duas foram jogadas por uma força invisível contra as paredes às suas costas, causando um impacto tão forte que conseguiu fazer chacoalhar o lustre no teto. As caretas de dor, por parte de ambas, ficaram bem evidentes, e aquilo que as atingiu continuou prendendo-as ali, pressionadas contra paredes opostas, uma de frente para a outra, a alguns metros do chão.
No primeiro momento Lana não entendera o que se passava, mas quando todos voltaram-se para Esme, nenhum pouco surpresos, compreendeu a situação.
— Vamos deixar uma coisa clara: essa é a minha casa. — A bruxa da natureza tinha a palma da mão levantada, os olhos exibiam um brilho verde sobrenatural. — Portanto, minhas regras.
Ela lentamente se aproximou do local onde as duas jaziam presas, o gesto em sua mão deixava óbvio que era a responsável por aquilo. Os outros apenas abriram caminho em silêncio.
— Eu não me importo que troquem farpas à mesa se evitarem um linguajar sujo — ela continuou, seriamente, andando até o ponto entre as duas garotas —, mas não vou tolerar que tragam violência para essa casa, especialmente durante uma refeição. Megan, eu a eduquei melhor do que isso. E Katherine, você deveria se envergonhar. Uma bruxa de mil anos de idade se comportando como uma adolescente?
O sorriso de Katherine havia desaparecido no momento em que fora jogada contra a parede. Parecia furiosa, mas de uma forma sutil, encarando o teto com um olhar mortífero enquanto ouvia Esme falar.
— Isso é um absurdo — Katherine protestou. — Não fale comigo como se eu fosse uma de suas crianças. Coloque-me no chão imediatamente!
— Katherine, não se esqueça de onde está. A única autoridade com poder para dar ordens nesta casa sou eu. Ponha-se no seu lugar.
— Perdão, Esme — Megan falou, e havia sinceridade no som de sua voz.
— Agradeçam que não vou obrigá-las a se desculparem com um abraço, porque, acreditem, eu o faria apenas para meu próprio entretenimento, se estivesse com vontade — ela disse, seriamente, e nenhuma das duas respondeu. — Vou descê-las agora, mas já aviso, se tentarem qualquer coisa uma contra a outra, o mínimo movimento ofensivo que seja, seus pescoços serão quebrados com a mesma facilidade que as joguei contra a parede.
Esme as libertou bruscamente, e assim que atingiram o chão, trocaram apenas um olhar fulminante e silencioso, não ousando desobedecer a ordem da temível bruxa da natureza que, com toda certeza, cumpriria com sua palavra se fosse necessário.
— Posso falar com você? — Cassandra aproximou-se de Megan, em seguida lançando um olhar convidativo a todos, antes de completar. — A sós.
— Pessoal, todos pra fora — Charles elevou a voz.
Ethan puxou a gola da camisa de Ian enquanto todos se retiravam do cômodo.
— Está me devendo cem pratas.
Os Melius, incluindo Sarah, se prontificaram a ajudar Eleanor com a mudança, transportando as caixas e malas pelo túnel subterrâneo da estufa até o transportador, onde esperariam por Katherine e Cassandra. Lana sentou-se na poltrona próxima ao sofá, tentando, sem nenhum sucesso, encontrar sinal para retornar duas ligações perdidas de seu pai, ao tempo que se deleitava com a bela melodia que Charles produzia no velho piano no canto da sala. Como se nada tivesse acontecido, Esme serviu Katherine uma xícara de chá quando ambas sentaram-se elegantemente no sofá de frente à lareira. O fogo havia morrido há pouco tempo, mas apenas um estalar de dedos vindo da Bruxa da Natureza foi o suficiente para trazer as chamas de volta à vida.
— Devo admitir, a cena que acabei de presenciar me impressionou muito — Katherine falou, a xícara em mãos. — Você colocando ordem daquela maneira, fazendo Megana lhe pedir perdão com tamanha facilidade. Os últimos dez anos sendo responsável por essas crianças realmente mudaram você.
Esme esboçou um pequeno sorriso, orgulhosa de si mesma.
— Naturalmente — Ela bebericou um pouco do chá antes de continuar. — Foi difícil no começo, mas com o tempo percebi que cuidar de crianças não é muito diferente de governar um reino. Você ordena que a obedeçam, e se caso não o fizerem, apenas os tranca no calabouço por algumas horas. Sempre funcionou.
— Calabouço?
— O sótão.
No cômodo ao lado, a discussão entre Megan e Cassandra parecia ter ficado ainda mais acalorada, suas palavras duras sendo facilmente compreensíveis de onde Lana estava sentada.
— Eu não estou dizendo que foi você quem começou. — Era a voz de Cassandra, soando como autodefesa. — O que eu estou tentando dizer é…
— Não, eu sei o que está tentando dizer — Megan interrompeu. — Está dizendo que eu sou culpada por ela ter começado, como sempre, não é mesmo?
— Se você me deixasse terminar ao menos uma frase, talvez soubesse o que eu realmente quero dizer.
— Você tenta se explicar desde que estávamos juntas, querida. Se nunca conseguiu antes, por que conseguiria agora?
O grunhido de frustração de Cassandra reverberou pela casa.
— Você é tão…!
— Se você estiver precisando de ajuda para terminar essa frase também, talvez devesse pedir uma sugestão à sua grande amiga Katherine. Encontrar adjetivos para me definir sempre foi a área de especialidade dela.
— Tudo bem, já chega! Eu não te chamei para conversarmos sobre o que aconteceu agora, e sim para resolvermos essa questão de uma vez por todas. Nós moramos no mesmo Coven. Não quero estar imersa em uma atmosfera desconfortável sempre que estivermos no mesmo cômodo.
— Talvez não devesse se preocupar com isso. Celeste é um coven bem grande.
— Megan, por favor, me diga o que quer que eu faça para esquecer esse assunto de vez.
— Esquecer — Megan repetiu, como se provasse o sabor da palavra.
— Não é isso o que você quer?
— O que eu quero… é que você e aquela boneca de vodu loira caiam fora da minha casa. Agora!
— Não consigo entender porquê está com tanta raiva. Foi você quem quis terminar!
— Porque eu estava brava com você, não porque deixei de te amar!
O cômodo foi tomado por um silêncio repentino. Não houve resposta por longos momentos, e até mesmo Charles parou de tocar o piano.
— Por que ainda usa esse colar? — Era a voz de Cassandra, agora soando fragilizada e cansada.
— Talvez eu não tenha tanta facilidade para esquecer quanto você — As palavras de Megan foram seguidas de um som fraco de algo pequeno chocando-se contra o piso de madeira. — Fique com isso.
Passos pesados vindos daquela direção antecederam a aparição de Megan, que atravessou a sala apressadamente com fúria no olhar, fazendo força para segurar o choro. Pouco depois de subir as escadas, o estrondo da batida de uma porta soou tão forte que quase pareceu um trovão.
— Onde está Eleanor? — A voz de Cassandra os surpreendeu enquanto encaravam o caminho por onde Megan acabara de passar.
Ela estava parada a um passo do portal para a sala de refeições, visivelmente abatida. A corrente dourada do colar de Megan era visível saindo de seu punho, o qual apertava com força o pingente de coração.
— Está nos aguardando no transportador — Katherine respondeu, pousando a xícara sobre o pires na mesinha de centro.
Cassandra não esboçou reação, apenas caminhou rapidamente até seu casaco no cabideiro ao lado da porta da frente, e ao vesti-lo, se retirou. Katherine se levantou em seguida.
— Bom, parece que está na minha hora. Muito obrigada pelo café da manhã adorável, me diverti bastante.
— Aposto que sim — Esme replicou.
— Eu diria para repetirmos qualquer dia desses, mas esta é a sua última semana aqui, então… Enfim, podemos fazer isso em Celeste.
Charles a acompanhou até a porta, e assim que se abraçaram na despedida, ela voltou-se para Lana uma última vez antes de se retirar.
— Foi um prazer conhecê-la, Shana. Nos veremos em breve.
Lana acenou em resposta, desistindo de corrigi-la.
— Acho que agora já podemos baixar a guarda — Charles suspirou. — Acabaram-se os riscos de acontecer uma batalha sanguinária de bruxas nessa casa.
Ainda com o celular em mãos, Lana compreendeu que as tentativas de encontrar sinal naquele lugar eram inúteis, mas rapidamente recordou de existir um telefone por perto. Preso à parede, próximo ao piano, achava-se um telefone fixo pintado em um vermelho berrante. Era uma das poucas coisas daquela cabana que não pareciam velhas.
— Preciso retornar uma ligação — falou, caminhando na direção do aparelho. — Se importam se eu usar o telefo…
— Não! — Charles e Esme gritaram em uníssono, no instante em que fez menção de apanhá-lo.
Confusa, congelou instantaneamente, temendo ter feito algo que não deveria.
— Essa linha não pode estar ocupada. Nunca — Esme falou duramente. — Colocaria nossas vidas em risco.
— É nossa única forma de contato com o Coven principal — Charles explicou. — Vamos, eu te mostro um lugar onde você pode conseguir sinal.
Ele a chamou com um gesto de cabeça, antes de partir em direção ao segundo andar. Lana o seguiu.
— Aproveite para dar uma olhada em Megan — Esme falou a Charles. — Aquele pedaço de panqueca vai fazer um estrago e tanto.
Esme estava certa. Apenas um mísero pedaço de panqueca foi o suficiente para destruir Megan de dentro para fora. A garota passou a tarde inteira trancada no banheiro, vomitando por horas. Quem passava pelo corredor conseguia ouvir um choro baixinho, acompanhando os jatos de vômito, e todos sabiam que aquilo não era consequência da panqueca. Madelyne e Elizabeth tentaram de todas as formas convencê-la a conversar sobre o ocorrido, mas Megan não abriu a porta para ninguém, nem mesmo para seu irmão, Jason.
Charles ajudou Lana a encontrar sinal para retornar a ligação de seu pai, o que significou subir no ponto mais alto do telhado. Conversou com seus pais por poucos minutos, evitando mencionar o motivo que a levou a fugir da cidade repentinamente. Sua mãe contou que o pai de Sarah havia ligado na noite anterior, preocupado com o paradeiro da filha por esta não ter atendido ao celular. O Sr. Miller, relativamente ciente da atual situação, compactuou com o segredo, mesmo relutante, e inventou algo sobre as garotas terem ido acampar por alguns dias com um grupo de amigos, onde não havia sinal — o que, de certa forma, era quase a verdade.
Felizmente, Eleanor havia preparado lasanha na noite anterior, congelando-a antes de partir para que pudessem almoçar no dia seguinte. Aquela foi a solução para a primeira refeição sem a cozinheira da casa, mas ninguém sabia ao certo o que aconteceria nos próximos dias. O jantar, por exemplo, foi um completo desastre. Ethan era o único que tinha certa experiência na cozinha, mas ainda assim, o máximo que conseguiu produzir foi um bife semi-torrado.
Lana se sentou de frente a lareira logo que saiu do chuveiro. O cabelo ainda molhado caía por sobre a camisola medieval, e posteriormente talvez até contraisse um resfriado por conta disso, mas a fina dor de cabeça que voltou a atormentá-la a incapacitou de fazer qualquer coisa a respeito. Tudo o que queria era apenas se sentar por alguns instantes, torcendo para que Esme se oferecesse para fazer outro chá.
A noite era fria e tempestuosa, mas os trovões não conseguiam camuflar o crocitar dos corvos cercando a cabana. A cobertura da varanda impedia que os pingos de chuva se chocassem contra o vidro das duas janelas de ambos os lados da lareira, mas a brisa uivante que perambulava por entre as árvores na escuridão do bosque atravessava uma pequena fresta entre o vidro e a moldura. Havia algo naquela noite que simplesmente não estava certo. Algo que talvez apenas os corvos soubessem.
— A dor de cabeça voltou?
As palavras de Charles trouxeram-na de volta à realidade. Ela desviou os olhos da janela para encontrá-lo sentado ao seu lado no sofá, o cabelo úmido bagunçado indicando que também havia acabado de sair do chuveiro.
— Tá tão na cara assim?
— Sim, literalmente.
— A Esme te deixou usar o banheiro dela? Não há aquecimento na água do chuveiro de baixo. Quase congelei no banho.
— Esme não dividiria seu banheiro com alguém mesmo que sua vida dependesse disso. Acho que é coisa de princesa.
— Está dizendo que conseguiu tomar banho no banheiro em que a Megan vomitou o dia inteiro? Eu mal cruzei a porta e o cheiro quase me fez desmaiar.
Ele deu de ombros.
— Já suportei odores piores.
— Onde ela está?
— Foi pra piscina antes do jantar, e está lá desde então. Não me surpreenderia se passasse a noite embaixo d’água. Brigar com a Cassandra sempre a deixa emocionalmente acabada.
— Sacre Bleu! — Enfurecida, Madelyne surgiu enrolada em uma toalha branca. — Alguém precisa dar um jeito naquele maldito fedor. Não quero passar o resto da semana tomando banho com água em temperaturas quase abaixo de zero!
Seus gritos não ajudaram a amenizar a enxaqueca de Lana, enquanto atravessava a sala de estar em direção ao banheiro no final do corredor, o qual não dispunha de água aquecida.
— Enfim… — Charles suspirou. — Como está se sentindo com relação às crises existenciais? Algum progresso?
— Acho que ainda é muito cedo pra dizer.
— Você me conta quando descobrir?
— Vai ser o primeiro a saber.
Ele sorriu, passando os dedos entre os cabelos úmidos.
— Sabe de uma coisa? Tenho o pressentimento de que você vai acabar mudando de idéia.
— Sobre o quê?
— Sobre viver conosco, no Coven.
— E o que te faz achar isso?
Ele virou o rosto para olhá-la nos olhos, suas íris escuras e esverdeadas a encarando com uma súbita seriedade. Estavam tão próximos que Lana podia sentir sua respiração quente roçando em seu pescoço.
— É só um pressentimento. — Charles deu de ombros, as palavras saindo quase em sussurro — Você é simplesmente misteriosa demais para me garantir certeza de algo.
— Misteriosa? — ela repetiu, testando a sonoridade da palavra.
— Sim. Tem algo em você que me deixa estranhamente receoso. Como se nesse exato momento eu estivesse conversando com uma tempestade presa em um pote.
— Aposto que diz isso para todas.
Ele riu, desviando o olhar de volta para a lareira. Lana deveria ter feito o mesmo, mas por algum motivo, não o fez. Continuou a fitá-lo, estudando cuidadosamente as linhas de seu rosto. O maxilar tensionado recebendo o brilho das chamas da lareira, o qual também era refletido nos olhos cheios de vida que de alguma forma conseguiam deixá-la inexplicavelmente confortável mesmo diante de toda aquela situação.
— Já tomou sua poção? — A voz fria de Esme os pegou de surpresa.
Estava parada no portal que garantia acesso a escada, trajando a mesma longa camisola branca que todas as garotas da casa.
— Estou indo, mamãe — Charles brincou, levantando-se do sofá e seguindo rumo ao segundo andar. — Você deveria fazer mais uma pra cabeça da Lana. Ela continua atormentada.
Esme se aproximou quando ele sumiu de vista.
— Pensei que o chá tivesse curado a enxaqueca — falou.
— Curou, mas ela voltou depois do jantar.
— Espere um momento, vou fazer mais um agora. — Ela caminhou até o corredor. — Só preciso colher alguns ingredientes na estufa.
No momento em que tornou a ficar sozinha na sala, uma intensa pontada de dor atingiu sua cabeça, fazendo-a contorcer o rosto em agonia. Ela se levantou quando de repente o brilho da lareira pareceu intenso demais para sua visão, caminhando até a janela com os olhos quase fechados.
Não haviam luzes no exterior da cabana. A clareira era iluminada apenas pelo clarão dos relâmpagos daquela tempestade que se intensificava a cada minuto. Ela conseguiu enxergar vagamente a floresta tenebrosa através da chuva densa que limitava seu campo de visão. Não conseguiu avistar nenhum corvo mas, de alguma forma, sabia que ainda estavam ali, em algum lugar, observando. Esperando por algo. O caos das tempestades nunca foi o suficiente para intimidar os corvos de Corbeaux.
— Flutuando na Lanalandia de novo?
Sarah estava de braços cruzados logo atrás do sofá, vestindo a mesma camisola branca.
— Esme vai fazer uma poção para minha cabeça.
— Hmm, acha que ela também pode fazer uma poção mágica que me ajude a crescer cinco centímetros?
— Eu não acho que aquilo possa ser chamado de poção mágica.
— Garota, se ela conseguir me fazer alcançar 1,70 de altura eu não vou me importar se for chamado de suplemento para cavalos.
Ela pulou por cima do sofá, caindo deitada como se estivesse em sua própria casa.
— Consegue imaginar o que teria acontecido se não tivéssemos pegado catapora naquele dia?
Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Lana notou pelo canto do olho uma sutil movimentação em algum lugar ao longo da penumbra chuvosa. Voltou-se completamente para a janela.
— Nós teríamos ido à escola no dia em que foram embora. — Sarah continuou — Provavelmente teríamos fugido com eles.
Lana mantinha o foco nas árvores que cercavam a clareira. Algo no meio de todo aquele negrume chamara sua atenção. Estava escuro, mas a luz que escapava pela janela conseguia iluminar um pouco do breu opaco que era intensificado pela chuva. Trovões rugiam ao tempo que os relâmpagos ajudavam a clarear toda a atmosfera, ao menos por um segundo.
— E se só uma de nós tivesse ido à escola naquele dia? — Sarah falava consigo mesma. — Não sabemos qual das duas estava com catapora primeiro e qual foi infectada pela outra. Se não tivéssemos feito aquela festa do pijama, apenas uma de nós teria ficado em casa. Apenas uma de nós teria ficado para trás… Isso significa… que não teríamos crescido juntas.
Outro relâmpago, seguido de outro trovão. Definitivamente, algo se moveu ali, ela pensou. A enxaqueca que há pouco a atormentava, agora era acompanhada por um desconforto doloroso no estômago, como um medo antes da hora. Ansiedade. Mas por quê?
— Eu odiaria que isso tivesse acontecido. — Sarah finalizou, pensativa.
— Isso jamais poderia ter acontecido. — Esme retornara da estufa, um vaso com ervas em suas mãos. — Se as duas ficaram para trás, foi porque Destino quis, e não há nenhuma força no universo capaz de ir contra a vontade dela.
Antes que pudesse continuar seu percurso até o segundo andar, um tilintar agudo subitamente ressoou por toda a casa, preenchendo o silêncio oco causado por suas palavras misteriosamente sombrias. O telefone vermelho na parede próxima ao piano. Houve uma súbita mudança na atmosfera do ambiente. Nitidamente tensa, Esme parou instantaneamente, e hesitou por um momento antes de caminhar até o aparelho.
— Acho que acabei de ver algo lá fora — Lana disse.
— Estou indo pra cama — Sarah bocejou. — Você vem?
Ela mantinha o olhar fixo no exterior, que repentinamente parecera mais escuro. Não houve nenhum relâmpago por longos minutos, embora a chuva se fortalecesse a cada segundo. O toque do telefone fora cortado quando Esme o tirou do gancho, e o colocou no ouvido.
— Mas o que é aquilo? — Lana murmurou, estreitando os olhos para enxergar melhor. — Um urso?
Havia uma tensão cortante na forma como os trovões se calaram. Por um momento, até pareceu que a tempestade havia chegado ao fim. Mas não, aquele era apenas o começo. E isso ficou bem claro quando Esme largou o telefone no ar e gritou com toda a força de seus pulmões.
— AFASTE-SE DA JANELA!
O relâmpago que sucedeu o estrondo da trovoada mais carregada daquela noite, iluminou a besta demonizada que urrou ameaçadoramente a apenas cinco passos da janela. Sarah gritou horrorizada, levantando-se do sofá com um pulo de desespero, mas Lana conseguiu realizar apenas um passo para trás. Paralisada pelo terror, sentiu sua pulsação subir a um nível alarmante. A criatura destruiu a janela em milhares de pedaços quando atravessou seu tronco por completo, fazendo o rosto da garota ser atingido por estilhaços de vidro e madeira. Lana teria sido acertada por suas garras se Esme não tivesse usado seus poderes para puxá-la bruscamente para longe dali, fazendo-a voar pela sala e cair sentada logo atrás de si. Sarah já estava ao seu lado quando o caçador urrou novamente, aproximando-se a passos pesados.
— Esme! — Sarah choramingou.
— Fiquem atrás de mim! — ela ordenou.
Com um forte gesto de mãos, a bruxa da natureza gerou uma rajada de ar tão intensa, que a criatura fora arremessada bruscamente contra a TV, explodindo-a com uma chuva de faíscas. Uma ventania tão poderosa que quase ocultou o som das hélices do helicóptero que sobrevoava o local.
— Estão aqui — Esme murmurou.
Red Star. Lana sentiu seu interior se revirar.
Esme ainda fazia força com as mãos, usando toda a sua concentração para manter a criatura pressionada contra a parede, ganhando tempo até que pensasse em um plano. A corrente de ar manteve-se estável por quase trinta segundos, balançando seus cabelos dourados e as longas camadas da camisola branca, mas a garota perdeu o foco quando a casa chacoalhou violentamente, jogando todas no chão. O estrondo da explosão denunciou a primeira bomba a se chocar contra a casa. Inúmeros pares de faróis eram vistos através do grande buraco onde antes fora a janela, e um intenso flash de holofote fora apontado na direção da cabana.
A criatura urrou novamente quando recuperou o equilíbrio. Tinha cerca de quatro metros de comprimento e uma postura curvada. Sua pele grossa e estriada possuía uma coloração esbranquiçada. Não tinha olhos, apenas duas aberturas no lugar do nariz e dentes pontudos que eram exibidos quando sua boca se abria em noventa graus. Era a imagem de um pesadelo.
O caçador rapidamente atravessou a sala a passos famintos, e Esme tragicamente não conseguiu se levantar a tempo de afastá-lo mais uma vez. Ele estava a apenas um metro de alcançá-la quando um objeto dourado repentinamente penetrou o centro de sua cabeça, fazendo-o cambalear para trás em agonia. Seu urro de dor soou ainda mais macabro quando o ferimento começou a soltar fumaça, como se entrasse em combustão.
Surpresas, elas rapidamente olharam para trás, encontrando Madelyne em posição de ataque na entrada do corredor. Ela havia acabado de sair do banheiro. Seu corpo molhado era coberto unicamente por uma toalha branca, mas seus cabelos ruivos mostravam-se secos. Havia sangue escorrendo da palma de sua mão. A bruxa da carne usara o hashi para cortar a si mesma, banhando a ponta do objeto com o veneno altamente fatal de seu sangue antes de atirá-lo na cabeça do caçador. E por esse motivo a criatura berrava em agonia, sentindo todos os órgãos queimarem de dentro pra fora. E que os céus tenham piedade de qualquer criatura que sinta o sabor letal do veneno de Madelyne.
— Temos visita — ela falou.
— Corram para o túnel subterrâneo! — Esme ordenou. — Agora!
As garotas imediatamente fizeram o caminho reverso por onde Madelyne viera, correndo na direção da estufa no final do corredor, pouco depois do banheiro. O som das hélices de um segundo helicóptero se juntou ao primeiro.
— Madelyne, leve essas duas para o transportador e cuide para que fiquem seguras — Esme falava enquanto corriam para a estufa.
— E quanto a você?
— Preciso buscar os outros. Vocês são minha responsabilidade.
— Eu também quero lutar! — Madelyne replicou com dureza.
— Me obedeça! Sou eu quem está no…
Antes que pudesse terminar a frase, o teto de vidro da velha estufa explodiu em milhares de estilhaços logo à sua frente. Um segundo caçador surgiu diante de seus olhos, e todas imediatamente cessaram seus passos. O grito horrorizado de Sarah acompanhou o rugido avassalador da segunda criatura.
— Mudança de planos, todas para a cozinha! — Esme puxou Sarah e Lana pelo braço.
Madelyne usou o segundo hashi para fazer o mesmo que fizera com o primeiro caçador, no entanto, este desviara com uma agilidade assustadoramente preocupante. Ela praguejou um palavrão em francês.
— Madelyne, vá para cima e ajude seus irmãos! Vou levar essas duas até metade do caminho para o transportador.
— Entendido!
Elas se separam na sala de estar. Madelyne correu para as escadas enquanto as outras adentraram rapidamente na sala de refeições. Mais uma surpresa interrompendo seu caminho as fizeram parar no momento em que chegaram à cozinha. A porta achava-se destroçada no chão. Cinco figuras uniformizadas e com máscaras de gás escuras cobrindo seus rostos, imediatamente apontaram as armas de longo calibre para as três melius que haviam acabado de atravessar o portal da sala de refeições.
— Mãos onde eu possa vê-las, agora! — ordenou um dos soldados. — Se tentarem qualquer gracinha vamos responder com fogo.
Sua voz soava robótica, saindo através da máscara. Aturdidas, elas obedeceram.
— Capitão, temos três fêmeas na mira — o homem falou ao rádio em seu ombro. — Como prosseguir? Câmbio.
— Capturar, se possível — respondeu uma voz no rádio. — Exterminar, se necessário.
— Esme… — Lana sussurrou para ela.
Esme mantinha as mãos erguidas. Sutilmente movendo a ponta dos dedos e sentindo todos os objetos daquela cozinha que poderiam ser usados em seu ataque. Mas a menos que houvesse uma distração, não conseguiria agir sem evitar serem atingidas por tiros. Todavia, como se lesse seus pensamentos, uma silhueta amedrontadora parada à entrada da cozinha fora iluminada pelo relâmpago que sucedeu o trovão. Com uma velocidade animalesca e um rugido infernal tão intimidante quanto o de um caçador, Megan Anghel invadiu o recinto pela porta dos fundos, atraindo a atenção dos cinco soldados que não hesitaram em disparar contra seu corpo encharcado.
Ela estava na piscina quando o ataque começou, e Red Star certamente não esperava serem pegos pelas costas. Os tiros a atingiram como uma chuva de agulhas no momento em que cravara suas presas na carótida do soldado mais próximo da porta. O homem berrou e se contorceu em agonia mas ela não se incomodou com as balas que penetravam seu corpo incessantemente. O sistema nervoso de Megan era quase completamente morto, o que a tornava incapaz de sentir qualquer ataque direto.
Aquela era a distração que Esme precisava. Com um gesto de mãos, a bruxa da Natureza fez com que todas as facas e objetos pontiagudos voassem velozmente de todos os cantos da cozinha até atingirem com precisão os outros quatro soldados que disparavam contra Megan. Todos foram atingidos em pontos letais, e a macabra bruxa da carne havia acabado de arrancar com os dentes um grande pedaço do pescoço de sua vítima. Ele se afogava no próprio sangue quando caiu no chão.
— Hmm… Esse sabor adocicado... — Ela lambeu os lábios em êxtase, coberta de sangue. Sua voz melodiosa era puro prazer — Não há nada que me deleite mais do que a carne de um humano com diabetes.
Mesmo com a chuva, o marchar de mais tropas se aproximando soou perigosamente perto. Não obstante, o urro feroz de outro caçador foi audível do lado de fora. Seguido de outro, mais outro, e mais outro. Um segundo bombardeio fez a casa chacoalhar, dessa vez parecendo ter atingido a ala sul.
— Isso não pode estar acontecendo — Sarah repetia para si mesma, chorando, completamente em choque.
— Vão! — Esme gritou.
Sarah, Lana e Megan correram através do portal para a sala de refeições, e com mais um gesto de mãos, Esme fez os móveis e eletrodomésticos da cozinha arrastarem-se violentamente até a porta e as janelas, bloqueando todas as passagens. Quando se juntou às outras na sala de refeições, encontrou-as correndo o caminho inverso, de volta para cozinha, e só entendeu quando avistou o segundo caçador perseguindo-as da sala de estar.
— Esme! — Sarah berrou.
Esme rapidamente usou telecinese para jogar a criatura contra o teto, destruindo o antigo lustre de cristal em milhares de estilhaços. O caçador caiu de volta no chão mas não tardou a se levantar. Aproximou-se com lentidão, ainda atordoado pelo ataque de Esme, a qual já estava praticamente sem éter. Aquela era a grande fraqueza das bruxas brancas da natureza. Ainda que seus poderes lhe permitissem fazer um pouco de tudo, o éter de suas almas era limitado.
— Fiquem atrás de mim — ela ordenou.
Logo atrás, na cozinha, mais uma tropa fazia força para invadir a casa, sendo retardados pelas barricadas de Esme. Com uma incrível facilidade, a criatura empurrou a grande mesa de madeira contra a parede, eliminando o único obstáculo entre suas garras e suas presas.
— Esme, faça alguma coisa — Lana pediu, temendo a distância cada vez mais curta entre elas e o caçador.
— Cale a boca, você vai desconcentra-la! — Megan sibilou. — Esme sabe o que está fazendo.
A bruxa da Natureza tinha éter suficiente para apenas um último ataque carregado, e tudo o que precisava fazer era distraí-lo por tempo o suficiente para que pudessem correr até a sala. Ergueu as mãos, pronta para prender o caçador contra a parede da esquerda quando um grave e estridente som de tiro pegou todas de surpresa. A cabeça do predador explodiu em centenas de pedaços, pintando a sala de refeições com a cor escura de seu sangue pegajoso.
— Princesa, princesa, princesa… Sempre precisando ser salva. — Charles segurava uma 12 semiautomática. — Como nos velhos tempos.
Ele estava equipado com duas pistolas no coldre, uma na perna, um rifle AWM de longo alcance nas costas, e dois cintos de munição em volta do ombro, além de um lança-granadas no peito. Esme olhou para baixo, observando a camisola branca, agora suja pelos miolos pútridos do caçador, depois encarou Charles, com evidente aborrecimento.
Eles correram para a sala de estar. Os outros melius haviam acabado de descer as escadas, por onde uma fumaça escura também descia. O segundo andar estava em chamas. Jason virava o sofá na vertical para bloquear a janela, desviando do corpo carbonizado do caçador que provou do veneno de Madelyne. Ian, com impressionante facilidade, carregava o enorme piano até a porta. Ethan caminhava apoiando-se em Elizabeth, com um grande corte percorrendo a lateral de sua testa.
Esme rapidamente se aproximou para examiná-lo, questionando Elizabeth com o olhar.
— O primeiro bombardeio fez uma parte da parede cair na cabeça dele — Elizabeth esclareceu, ajudando-o a caminhar.
— Ainda assim continuo mais bonito que todos vocês — Ethan replicou, a voz fraca.
— O que ainda estão fazendo aqui? — Esme inquiriu. — Por que não foram para o túnel?
— Estamos esperando a Madelyne — Ian respondeu.
— Estou chegando! — Madelyne gritou do alto das escadas, descendo os degraus a passos apressados.
Ela surgiu carregando um baú de porte médio nos braços, o qual era adornado com a pintura de vinhas e rosas de pétalas rosa. Seu corpo continuava enrolado na toalha.
Olhando através de uma fresta na janela, Lana conseguiu ter um vislumbre do exterior. A chuva forte não foi o suficiente para impedir Red Star de formar uma barreira ao redor da casa, com todos os seus veículos e soldados apontando o laser de seus fuzis na direção das janelas. Estavam se preparando para o verdadeiro ataque. Duas vans de teto alto haviam se aproximado com um cantar de pneus, estacionando bruscamente com sua traseira virada na direção da cabana.
— Todos para o túnel, agora! — Charles ordenou, rapidamente recarregando a 12.
Lana permaneceu parada por tempo suficiente para ver a porta dupla de ambas as vans serem abertas ao mesmo tempo. Três caçadores emergiram para o exterior de cada van, parando silenciosamente um ao lado do outro de frente para a casa, como se esperassem por novas ordens. Eram seis no total, e isso sem contar com os que avançavam pelos fundos.
Charles gritava algo que soou distante e abafado enquanto a garota encarava aquela cena. Tudo parecia se mover em câmera lenta. Estava paralisada. Perdida na própria mente, sendo afogada por pensamentos aterradores. O odor putrido da carcaça carbonizada do caçador estirado bem próximo de seus pés penetrava suas narinas como um aviso de morte. A tempestade nunca pareceu tão forte, especialmente quando a casa fora repentinamente inundada por uma chuva de balas, as quais esburacaram a porta e as paredes de madeira.
Ian agilmente correra em sua direção, jogando-se entre seu corpo e a janela quando percebera que a garota não iria se mexer. Ele foi rápido o suficiente para receber o impacto de todas as balas que deveriam ter atingido o corpo de Lana, e trinta segundos depois, quando a tempestade de ferro cessou, voltou-se para ela com seriedade no olhar.
— Você está bem?
Lana estava atônita. Encarava-o como se esperasse que o garoto morresse em seus braços a qualquer momento.
— Eu? E quanto a você?!
— Estou bem, agora corra!
Ela estava em estado de choque, sem palavras.
— Vamos!
Ian agarrou os dois braços da garota paralisada e os puxou por cima de seus ombros para carregá-la nas costas. Sem questionar, Lana entrelaçou os braços em volta do pescoço de Ian, deixando que a levasse.
— Afastem-se! — Charles ordenou.
Ele estava com o lança-granadas em mãos, e rapidamente disparou através de uma enorme fresta na parede gerada pelas balas. A explosão do lado de fora foi ensurdecedora, desestabilizando completamente a formação de Red Star, a qual certamente não esperava um contra-ataque com armas humanas.
As garotas, Ethan e Jason haviam fugido pelo túnel antes do início da chuva de balas, restando apenas Lana, Charles e Ian no meio dos destroços do que antes fora uma aconchegante sala de estar. Ouviu-se uma segunda explosão, relativamente fraca se comparada a anterior, dessa vez vindo da cozinha. Red Star havia invadido pelos fundos, e o uivar de ao menos dois caçadores no interior da casa anunciou que sua fortaleza fora penetrada pelo inimigo novamente.
Eles já corriam na metade do corredor em direção à estufa quando os seis caçadores que desceram das vans destroçaram os restos das paredes que haviam sido fragilizadas pelas balas. Charles atirou mais uma vez com o lança-granadas, gerando uma série de grunhidos de dor quando as chamas da explosão consumiram os caçadores. O teto da sala de estar desabou, mas de alguma forma, aquilo não foi o suficiente para parar as criaturas.
— Segurem-se em mim! — Ian gritou enquanto corriam, e Charles imediatamente obedeceu.
Lana não entendeu, mas continuou agarrada ao pescoço do garoto o mais forte que conseguiu. Ele corria velozmente, sem nenhuma dificuldade, como se em suas costas carregasse apenas uma mochila de papel.
Prestes a adentrar na estufa, Lana viu de longe, por cima do ombro de Ian, que o pesado alçapão de pedra da saída de emergência encontrava-se fechado. A estrutura automática só ficava aberta por dez segundos quando sua alavanca era acionada, e demorava outros dez segundos para que se abrisse por completo, tempo este que Lana sabia que não tinham. Uma manada de criaturas demoníacas aproximava-se rapidamente quando a garota olhara para trás, e seus urros sincronizados estavam a ponto de desmoronar os restos fragilizados da cabana em chamas. Ian manteve-se no mesmo ritmo, com Charles segurando seu antebraço, e quando já estavam a apenas três passos da grande porta lacrada do alçapão, os garotos simplesmente pularam sobre a pedra imóvel, e em um piscar de olhos, pousaram dentro do túnel subterrâneo.
Lana olhou para cima, confusa, encontrando a porta do alçapão perfeitamente intacta, assim como estava antes de pularem. Graças a Ian, eles haviam atravessado o obstáculo sólido sem nenhuma dificuldade.
Aquele era seu poder: o dom da intangibilidade. Ele era uma bruxa da carne, tal como Megan e Madelyne, e podia modificar sua densidade molecular a ponto de ser tão duro quanto aço ou ainda mais tênue que o ar.
Charles soltou o braço de Ian, e sem nenhuma hesitação, continuaram a correr através do túnel iluminado pelas antigas velas que se espalhavam pelo caminho — as quais anteriormente foram acesas pelos poderes de Esme. Não demorou muito para escutarem pancadas pesadas ecoando através do túnel, mas felizmente o alçapão de concreto da estufa era resistente o bastante para segurar os caçadores por algum tempo.
A porta dupla do alçapão de saída já se encontrava aberta, e a tempestade os recebeu com uma trovoada ensurdecedora quando subiram os degraus de pedra. Ao emergirem de volta para a superfície, as copas volumosas das imensas árvores que os rodeavam retardavam parcialmente a queda da chuva — não o suficiente para evitar que se molhassem. Os outros os aguardavam sobre o transportador ainda desativado.
— O que estavam fazendo? Tirando selfies com os caçadores? — Jason indagou, aborrecido.
Sarah desceu do transportador e correu para envolver Lana em um abraço. Ainda haviam resquícios de choro em seu semblante, mas ela tentava se manter estável.
— Por que demoraram tanto?! Eu já estava pensando no vestido preto que usaria no seu enterro!
— Houve um pequeno problema com minha coordenação motora — Lana respondeu, ainda abraçando-a, e sussurrou a última parte em seu ouvido: — Ian me salvou. Se realmente quer ele, você tem minha aprovação.
Sarah logo a soltou e correu em direção a Ian. Ele foi surpreendido por um beijo na bochecha, seguido de um abraço.
— Obrigado por tê-la salvado. Ela consegue ser uma verdadeira palerma quando quer.
— Se eu soubesse que seria recompensado assim — ele brincou —, teria feito mais.
— Será que todos podem calar a boca e subir de uma vez nessa porcaria?! — Madelyne inquiriu com acidez, completamente encharcada e ainda de toalha agarrada ao baú de madeira. — Estou congelando!
— Por que ainda não ligou o transportador? — Charles voltou-se para Esme.
— Essas coisas emanam muita energia eletromagnética — Esme respondeu, ligando-o naquele momento. — Teríamos sido rastreados antes que chegassem aqui.
A superfície acendeu-se com um brilho intenso, iluminando a penumbra da floresta ao redor. Todos imediatamente subiram no transportador, enquanto Esme digitava senhas e coordenadas no painel holográfico que surgira diante de si. O som das hélices dos helicópteros que sobrevoavam a cabana parecia cada vez mais próximo.
— Ótimo, estão nos procurando por cima — Megan disse.
— Eles conhecem muito bem a boa e velha tática dos Melius, de fugir através do túnel até o transportador — Jason comentou com escárnio. — Acho que deveríamos bolar algo mais original da próxima vez.
— Posso sentir uma rápida aproximação de mentes humanas — Elizabeth alertou, havia retirado sua coroa de louros.
Estava ajoelhada sobre o transportador, com a cabeça de Ethan descansando sobre suas pernas. Alguém havia coberto o ferimento na testa do garoto com um pedaço rasgado da blusa de Megan, a qual também encontrava-se abaixada, segurando sua mão.
— Acho que eles se aborreceram porque não os convidamos para um chá — Ethan balbuciou, os olhos semiserrados.
— Mantenha os olhos abertos, Bryer. — Charles se abaixou próximo de si. — É uma ordem.
— Sim, senhor, capitão.
— Eu já disse, poderia usar meu veneno para curá-lo agora mesmo! — Madelyne interviu.
— Já encerramos esse assunto, Madelyne — Esme retrucou friamente, sem tirar a concentração do painel holográfico. — Você ainda não possui total controle das propriedades curativas dos seus poderes, e eu não vou arriscar a vida de seu irmão com algo tão mortal quanto o seu veneno.
Madelyne bufou em resposta.
— Foi mal, ruiva — A voz de Ethan era fraca, estava quase apagado. — Não é que eu não confie nas suas capacidades, mas eu vi o que você fez com o caçador na sala de estar, e acontece que eu ainda sou muito jovem pra morrer daquele jeito.
— Eles estão muito perto — Elizabeth avisou.
— Liza, aponte a direção — Charles se levantou, recarregado o rifle ameaçadoramente.
— Dezoito graus à sua direita — respondeu a telepata.
— Esme, o que diabos ainda falta para sairmos daqui?! — Ele desviou o olhar da mira do rifle para perguntar à bruxa da natureza.
— Transportadores como esse não foram projetados para serem usados duas vezes ao dia, e Katherine e Cassandra o usaram pela manhã para levar Eleanor — ela replicou. — Estou fazendo o possível para acumular energia suficiente para uma última viagem.
— E quanto tempo isso vai levar?
Antes que ela pudesse responder, o som de um disparo em algum lugar na escuridão entre as árvores foi seguido de um grunhido de dor. Charles fora atingido por uma bala no ombro, caindo para trás instantaneamente. Lana o segurou a tempo, e os outros rapidamente se colocaram em alerta, assustados. Um grupo de soldados surgiu entre as árvores, aproximando-se com cautela.
— Charles! — Esme gritou.
— Ethan, vou precisar de um pouquinho do seu poder emprestado — Jason apontou a palma da mão na direção do corpo de Ethan.
— Vai fundo, irmão.
Instantaneamente, uma das estranhas tatuagens de Jason deixou a tonalidade negra e assumiu um brilho alaranjado. O símbolo desconhecido localizava-se na lateral direita do pescoço, e no momento em que começou a brilhar, os olhos acinzentados do garoto assumiram o mesmo tom de laranja. Ele então apontou a palma das mãos na direção de um dos soldados mais próximos, o qual parou imediatamente, logo virando-se na direção dos outros que o seguiam. Ele carregava um fuzil em mãos, e inesperadamente abriu fogo contra todos os seus companheiros, os quais foram pegos de surpresa e não tiveram tempo de reagir.
Jason parecia estar fazendo mímica. Como se tivesse em mãos um fuzil imaginário, e logo Lana percebeu que o soldado estava repetindo todos os seus movimentos. Quando este se mostrou ser o único de pé, Jason fez como se apontasse seu fuzil imaginário para o próprio queixo. O homem fez o mesmo, e Lana fechou os olhos, sabendo o que viria a seguir. Um ultimo tiro fez a queda do corpo sem vida soar fraca e distante.
— Esme, concentre-se em nos tirar daqui! — Charles grunhiu.
Lana havia se abaixado para apoiar seu tronco enquanto Sarah fazia força para estancar o sangue com as duas mãos, tornando a chorar.
— Agora sabem onde estamos — Elizabeth falou com pesar. — Mais tropas se aproximam nessa direção. Há caçadores entre eles.
Com um violento gesto de mãos, de baixo para cima, Esme usou seus poderes para fazer com que duas dúzias de longas e grossas estacas de madeira pontiagudas emergissem do chão. Uma a uma, elas se posicionaram lado a lado, tão densas e tão altas quanto as árvores ao redor, formando uma barreira em volta do transportador.
— O transportador estará com energia suficiente em cinco minutos — Ela falou, e todos a olharam com consternação —, mas acho que consigo encurtar esse tempo. Jason, preciso que me dê cobertura. Não me resta éter suficiente para mais um ataque, mas você pode canalizar meus poderes e usar o seu próprio éter. Faça como treinamos.
— Sim, senhora.
— Ian, fique de olho no monitor.
— Pode deixar.
— Estão perto — Elizabeth falou.
Um trovão rugiu alto. Esme fechou os olhos ao tempo que unia as mãos. O holofote dos helicopteros podia ser visto mais ao longe, e o barulho de suas hélices ficava cada vez mais alto. Ela se concentrou por um momento, acumulando o éter que lhe restava, até que as palmas de suas mãos começaram a soltar faíscas de eletricidade. A garota então agarrou com suas mãos carregadas uma espécie de antena que havia emergido no centro do transportador, o qual gradativamente passou a brilhar com mais intensidade.
— Você fez o tempo de carga cair para três minutos — Ian anunciou, de olho no painel holográfico.
— Jason, se prepare — Charles falou, fazendo uma careta de dor. — Estão aqui.
— Eu nasci preparado.
Jason apontou a palma da mão na direção de Esme, e dessa vez foi a tatuagem na panturrilha esquerda que passou a brilhar com uma luminosidade laranja. O brilho era perceptivel através do tecido de suas calças, e o símbolo era bem diferente do que possuía no pescoço. Seus olhos brilhavam da mesma cor quando uma tropa da Red Star se aproximou atirando contra a muralha de madeira de Esme.
Jason apontou as mãos para o céu, e com um movimento rápido, compeliu um raio a atingir o tronco de um enorme pinheiro mais adiante. A árvore despencou logo acima da formação da tropa, fazendo com que se dispersassem. Ele fez aquilo novamente, dessa vez mirando o raio em um dos helicópteros que haviam se aproximado. A hélice traseira explodiu no mesmo momento, fazendo a aeronave descer em círculos até cair em algum lugar fora de sua vista.
Antes que pudesse repetir o golpe, o impacto de uma granada explodindo aos pés da muralha de madeira provocou uma grande abertura na fortaleza. Esme fez mais força, gemendo de dor ao depositar toda a sua energia de uma vez só na antena.
— Um minuto!
Jason tornou a se concentrar. Havia chamas se espalhando pela floresta, por consequência do raio que atingira a árvore. Ele usou aquilo a seu favor, fazendo com que o fogo se intensificasse e voasse na direção dos soldados mais próximos, que gritaram de desespero quando foram engolidos pelas chamas.
— Trinta segundos!
O segundo helicóptero sobrevoava o transportador, preparando-se para um novo bombardeamento. Jason parecia exausto, respirando pesadamente quando se concentrou para um último ataque. Ele usou toda a sua força para gerar uma ventania arrasadora que arrastou o helicóptero para longe, mas a aeronave continuou fazendo força para se aproximar. Jason lutava para manter a rajada de vento estável, mas aquilo não impediu os soldados de apontarem o lança-misseis em sua direção.
— Acabou! — Ian exclamou com empolgação. — Esme, você conseguiu!
Uma mensagem havia surgido no painel de controle. Teletransporte em cinco segundos. Autodestruição geral ativada.
5...
4...
O míssil foi disparado.
3...
2...
Jason cessou a ventania. Caiu de joelhos com um sorriso de escárnio, observando o teleguiado se aproximar com uma velocidade feroz.
1...
— Tarde demais, babacas.
O transportador disparou um intenso raio de luz que cobriu seus corpos completamente, decolando em direção ao céu tempestuoso em um milésimo de segundo. O aparelho explodiu antes mesmo de ser atingido pelo míssil, que o acertou um segundo depois, fazendo com que o som de ambas as explosões se unissem em um um único estrondo avassalador. O retumbante bramido da detonação reverberou pelo bosque como um trovão vindo de baixo, fazendo com que uma infinidade os corvos que silenciosamente assistiam ao combate, camuflados pela penumbra, batessem em retirada com seu crocitar infernal. O show havia acabado. A cabana também se autodestruiu, tal como os veículos há alguns metros dali, apagando todo e qualquer rastro da existência daqueles que por muito tempo viveram naquele local.
Nota da autora.
Primeiramente devo um pedido de desculpas a todos que estão acompanhando essa obra ):. Todo esse atraso na atualização se deve ao fato de que eu comecei meu primeiro período em uma universidade, e isso tem sugado todo o meu tempo😭😭😭. Toda vez que eu me programava pra terminar em um certo dia, tudo começava a dar muito errado e aí ia só ladeira abaixo.
Segundamente, eu também comecei a fazer algumas "mudancinhas" no rascunho da obra. Como por exemplo: estou tirando da primeira pessoa e colocando tudo na terceira, porque se encaixa muito melhor no gênero. Não sei quando vai sair o próximo cap mas muito obrigado a todos que não desistiram da minha historinha (•̀ᴗ•́)و com muita fé titia Khaos termina essa obra até 2050. Bjs amo vc (se é que ainda tem alguém lendo isso kkkkk).
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro