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CHAPTER XXVI: Rather Be The Hunter Than The Prey

| M E G A N |
Romênia, Dezembro de 1997

O PEQUENO VILAREJO DE CAMPUL-VOCI ERA ATORMENTADO impiedosamente pelas sequelas de um inverno rigoroso. Com a chegada adiantada das quedas de temperatura em meados de outubro, a safra de final de ano teve seu fim trágico selado devastadoramente, deixando dezenas de lavradores sem sua fonte de renda para o final do semestre e, consequentemente, sem suprimentos para sobreviver àquela época do ano.

Com o declínio da economia local tornando o frio do inverno ainda mais assolador, Dimitrie Anghel partiu em uma viagem de última hora até a cidade vizinha, visando estabelecer um acordo com seu empregador e receber um adiantamento para a próxima colheita. Uma alternativa desesperada, mas que poderia livrar a família Anghel da fome que os desolava. Cluj-Napoca - terceira maior cidade da Romênia, a noroeste da Transilvânia -, capital do județ de Cluj, ficava há menos de oitenta quilômetros do vilarejo, mas mesmo localizando-se nas proximidades, o retorno de Dimitrie ocorrera rápido demais para algo que supostamente deveria ter durado no mínimo duas horas.

Eram quase onze da noite quando Megana Anghel escutou o som da caminhonete do pai, e instantes depois, a porta da frente batendo com força. A garotinha rapidamente se esgueirou para fora da cama, tomando cuidado para não acordar os irmãos - com os quais dividia o quarto -, e na ponta dos pés, caminhou pela pequena cabana de sua família, aproximando-se sorrateiramente do corredor ligado à cozinha, onde seus pais discutiam. Não podia correr o risco de ser descoberta, então manteve-os fora de sua vista, perto o suficiente apenas para decifrar suas palavras. Eles conversavam através de sussurros, mas isso não deixou a discussão menos intensa, visto que a voz de seu pai transbordava raiva e aborrecimento.

Era nítido pelo peso ofensivo de suas palavras que não obtivera êxito em conseguir o adiantamento, o que significava que a família havia ficado sem alternativas para se livrar da fome. A garota escutou os sussurros da mãe, Olga Anghel, tentando de todas as formas acalmar os nervos do marido, mas Megana sabia exatamente o que acontecia quando seu pai se encontrava daquela maneira. No mesmo instante em que o pensamento lhe ocorreu, pôde ouvir em alto e bom som o estalar da pele de sua mãe chocando-se contra a palma pesada de Dimitrie, o que causou à garota um embrulho no estômago ainda pior do que a fome nauseante que a atormentava.

Aquela não era a primeira vez, e certamente também não seria a última, mas Megana sabia que não havia nada que pudesse fazer para impedir. "Apenas mantenha distância e deixe-me lidar com ele'' disse a mãe, certa vez. "Você sabe como seu pai pode ser um pouco temperamental às vezes, mas não se preocupe, tudo acabará bem". A garota correu de volta para o quarto assim que a discussão se intensificou, escondendo-se sob os cobertores como se pudesse fugir da realidade violenta que machucava profundamente alguém a quem tanto amava. Era difícil distinguir a fome do pânico que revirava suas vísceras, mas Megana sabia que no momento era assombrada pelos dois.

Megana Anghel era a filha do meio de Dimitrie e Olga Anghel, e tinha apenas doze anos de idade quando teve de enfrentar a pior fase de sua vida. Sua irmã mais velha, Horia Anghel, aos dezesseis, sofria de uma caso sério de anemia falciforme, e passava a maior parte do dia na cama, não recebendo o tratamento adequado devido a questões, tanto financeiras quanto religiosas, por parte do Pai. Os irmãos mais novos, gêmeos fraternos de seis anos, Jasu e Laubele, ainda não entendiam muito sobre sua realidade, e desde seu primeiro dia de vida, jamais tiveram contato com o mundo fora da cabana. O pai estritamente os proibira de deixarem a moradia sob qualquer circunstância, ainda que esta se encontrasse em chamas; aquelas crianças jamais deveriam ser vistas por qualquer um - Megana sabia o motivo, e nunca chegou a questionar a decisão de seu pai.

A cabana mostrou-se estranhamente silenciosa na manhã do dia seguinte, envolta em um ar carregado que parecia ainda mais opressivo do que o comum. Megana, como sempre, foi a primeira dos irmãos a se levantar, os sinais da noite mal dormida mostravam-se evidentes em seu pequeno rosto infantil. Vagou sonolenta pela moradia que nunca esteve tão fria, esperando encontrar a mãe na cozinha para partirem juntas em busca de lenha para a lareira, como diariamente faziam. Para sua surpresa, a cena que encontrou na cozinha não foi nada do que esperava.

O pai estava sentado à mesa, estático, o olhar vidrado focado na garrafa de whisky vazia à sua frente. Com os cotovelos sobre a mesa, seu queixo estava apoiado sobre as mãos entrelaçadas, o rosto inerte em uma expressão vazia e exausta, deixando explícito que passara a noite em claro. Megana procurou a mãe com o olhar, mas acabou encontrando apenas uma trilha de pegadas de neve, ainda fresca, indo em direção ao local onde seu pai se encontrava, além de estilhaços de pratos quebrados próximos à pia.

As discussões calorosas entre seus pais normalmente terminavam com estragos como aquele, mas Olga sempre se pusera a limpar tudo no mesmo instante, na intenção de não permitir que seus filhos vissem o quão feio tinha sido o desentendimento, e, é claro, para poder fingir que nada havia acontecido. Exceto que daquela vez a mulher não o fizera, o que foi estranho para Megana, já que os sinais do confronto da noite passada ainda mostravam-se presentes por quase toda a cozinha.

- Onde está a mamãe? - ela perguntou, não conseguindo controlar o leve tremor em suas mãos.

Por longos momentos o pai de Megana não manifestou reação alguma, ainda com a atenção presa à garrafa de whisky, mas antes que a garota pudesse tornar a perguntar, os olhos gélidos de Dimitrie moveram-se em sua direção. O silêncio gutural que manteve-se estabelecido enquanto Megana sentia o olhar pesado de seu pai provocou em si um frio ligeiramente desagradável na espinha, de alguma forma tornando a fome que a corroía ainda mais dolorosa. O semblante vazio de seu pai rapidamente deu lugar a uma expressão dura de desaprovação, como se a julgasse silenciosamente.

- Vista o casaco - ordenou com dureza, levantando-se abruptamente e saindo da casa pela porta dos fundos.

Megana sabia que aquilo fora uma ordem para segui-lo, e imediatamente correu até o cabideiro próximo à porta da frente para apanhar o velho casaco surrado que a mãe costurara há cerca de dois anos. O casaco de Olga ainda jazia pendurado ali. Rapidamente a garota esticou os braços finos e desnutridos para além das longas mangas de lã que incomodavam sua pele. A fome apertou mais forte quando saiu da casa e o peso do inverno despencou sobre seu corpo franzino.

O estômago se contorcia enquanto marchava sobre a neve densa que cobria o chão, carregando nas mãos apenas a cesta de coletar lenha. Sua última refeição acontecera há cerca de duas noites, quando o pai trouxera para o jantar um filhote de raposa que acabou sendo dividido entre os seis que compunham a família. Estava tonta e exausta, mesmo tendo caminhado tão pouco, mas se obrigou a continuar seguindo o pai, o qual marchava mais à frente, levando um machado e uma vara de pesca.

Eles caminharam em silêncio do início ao fim do trajeto, seguindo a trilha que delimitava a borda da tenebrosa floresta Hoia-Baciu, até a margem do rio semi-congelado que se encontrava pelos arredores do vilarejo. Megana sabia que o pai estava sob o efeito do whisky, visto que ficava óbvio na forma como caminhava, cambaleando sutilmente como se fizesse força para esconder.

Eles pararam na margem do rio, e o homem logo tratou de colocar o machado nas mãos da garota, sem dizer uma palavra sequer, mas Megana compreendeu perfeitamente sua ordem silenciosa. Ela se pôs a coletar lenha das árvores próximas ao local onde seu pai deu início a uma atividade de pesca. Megana ponderou sobre as chances de o homem realmente conseguir fisgar alguma coisa viva, dada a atual estação do ano, mas manteve-se em silêncio enquanto fazia força para partir caules finos com o machado.

Megana e Dimitrie nunca tiveram uma relação calorosa de pai e filha. Mesmo nos dias em que o homem achava-se de bom humor, as interações entre si eram tão frias quanto o inverno que os rodeava. Ela sempre sentiu que tinha a obrigação de amá-lo, pelo fato de que era seu pai, mas nunca conseguiu esconder o quanto sua presença a intimidava. A mãe costumava dizer que aquilo se dava em razão de serem muito parecidos, mas Megana sentia um calafrio só em ouvir aquilo. "Mãe", ela lembrou.

Com o pensamento que lhe ocorreu, a garota experienciou a pressão cair ao tempo em que o estômago embrulhava. Lembrou-se da garrafa de whisky que avistara acima da mesa, a mesma que encontrara sob a pia há alguns meses. Dimitrie não costumava beber, e a última vez em que Megana vira o pai consumindo álcool, fora quando esteve de luto pela morte de um amigo. O fato de não ter visto nenhum sinal da mãe pela manhã, começava a incomodar, e lembrar dos barulhos e sussurros da discussão na noite anterior só ajudou a deixá-la ainda mais temerosa. Talvez ainda estivesse dormindo quando saí, tentou convencer a si mesma, mas no fundo sabia que aquela sensação ruim no estômago não era só efeito da fome.

Estava frio, muito frio, mas esse não era o único motivo pelo qual Megana tremia naquele momento. Ela largou o machado no chão, exausta, a cesta parcialmente cheia. Virou-se na direção do pai, e foram necessários quase dois minutos para que tomasse coragem o suficiente para dirigir-lhe uma pergunta.

- Onde está a mamãe?

Sua voz saiu mais fraca do que planejava, e o homem nem mesmo se mexeu, ainda sentado à beira do rio com o anzol entre as mãos. Ela se perguntou se ele a ouvira e, como da primeira vez, simplesmente resolveu ignorá-la, então deu alguns passos receosos em sua direção, até parar de pé a apenas um metro de sua presença. Mais dois minutos se passaram antes que conseguisse falar novamente.

- Pai... - ela ergueu a voz, respeitosamente, tão trêmula quanto seu corpo. - Onde...

Antes que pudesse continuar, o homem lentamente fincou o cabo do anzol no solo coberto por neve, e, sem nenhuma pressa, se pôs de pé, o que fez Megana engolir suas próximas palavras. Ele se virou para fitá-la, uma figura de quase dois metros voltando o costumeiro semblante de desaprovação para a pequena garotinha de doze anos diante de si. Megana estava paralisada, como se a neve houvesse congelado seus pés sobre o chão, e a expressão de nojo que se formou no rosto de Dimitrie fez seu estômago revirar. Ela conseguia sentir o odor fétido de álcool que emanava de sua respiração, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, a mão pesada do homem chocou-se violentamente contra seu rosto, jogando-a para longe.

O impacto da queda foi amortecido pela neve, mas Megana ficou desorientada por alguns instantes, sentindo sua bochecha arder ao tempo em que as lágrimas começavam a brotar. Ela olhou de volta para o pai, o qual ainda a encarava com o semblante opressivo.

- Você é igualzinha a ela, não é? - Ele cuspiu as palavras, a língua pesada denunciava os efeitos da bebida. - Nunca soube valorizar o quanto eu me esforço para manter essa família viva.

A garota ficou sem reação, chorando no chão enquanto Dimitrie caminhava na outra direção. Ela tentou se levantar, mas seu corpo havia se rendido à exaustão.

- Por que vocês simplesmente não saem do meu caminho e me deixam fazer o que precisa ser feito?! Eu trabalho duro o ano inteiro para colocar um teto sobre suas cabeças, e o que eu ganho em troca? Absolutamente nada, nem mesmo um pouco de compreensão!

- O que fez com a mamãe? - ela balbuciou.

A pergunta o deixou ainda mais furioso, e o homem a respondeu com um chute carregado no estômago. Megana sentiu todo o ar ser retirado de seus pulmões quando caiu para trás. Ela tossia freneticamente, tentando recuperar o fôlego, mas sabia que havia quebrado alguma coisa.

- ELA SE FOI! - ele berrou como um animal, mas havia lágrimas em algum lugar no meio de sua feição irada. - Está feliz agora?! Era isso que você queria ouvir?! Ela se foi! Para sempre!

A garota chorava descontroladamente, tomada por dor, fome, frio, e ainda um sentimento pior que todos os anteriores. Megana sempre teve medo de monstros, sobretudo dos quais sua mãe costumava contar, mas só naquele dia pôde finalmente entender o que era um monstro de verdade, e, subitamente, todos os outros tornaram-se apenas histórias de ninar. Talvez aquele fosse o motivo pelo qual nunca se deu bem com o pai. Talvez no fundo sempre soubesse o que ele realmente era.

- Monstro! - Em meio ao choro, a raiva que sentia se tornou superior ao medo. - Monstro, monstro, monstro, monstro...

Em toda a sua curta vida, aquela foi a primeira vez que levantou a voz. Era apenas um efeito da adrenalina em seu corpo, e por esse motivo esqueceu de todas as consequências que sucederiam aquelas palavras, mas em nenhum momento jamais imaginou que seu pai seria capaz de fazer o que fez em seguida. A garota preferia acreditar que aquilo acontecera por conta do álcool, mas a ira do Pai nunca precisou ser estimulada.

Tomado pela raiva, Dimitrie nunca se sentiu tão desrespeitado, especialmente pelo fato de que aquela foi a primeira vez que alguém de sua família falara consigo daquela maneira. Quando o homem partiu em sua direção a passos pesados, Megana pensou que naquele momento seria espancada, mas em vez disso, Dimitrie agarrou a gola de seu casaco e a arrastou direto para o rio. A garota só entendeu o que pretendia quando a água gélida chegou na altura dos joelhos, e seu pai pôde finalmente imergir o tronco da filha por completo.

Megana estava em choque, mas isso não a impediu de lutar. Lutou o máximo que conseguiu para erguer a cabeça acima da água, mas era inútil. Estava fraca, faminta e com pelo menos dois ossos quebrados. As mãos duras de seu pai, as quais muitas vezes machucaram a si e sua mãe, nunca pareceram tão pesadas, fazendo força para mantê-la sob a água. A água congelante a fez sentir como se a morte já houvesse a alcançado. Nunca havia sentido tanto frio. Podia ouvir a voz abafada de seu pai berrando palavras de ódio, como se estivesse listando todas as razões pelas quais ela merecia aquilo.

Tudo parecia perdido. O cansaço, o frio e as dores no corpo ficavam cada vez mais intensos, deixando a sensação de que haviam-se passado horas, quando na verdade durou pouco mais que um minuto. Em um certo momento, no entanto, seu corpo finalmente desistiu. Acabou. Quando parou de se mexer, dez segundos se passaram antes que Dimitrie resolvesse soltá-la, e assim que o fez, permaneceu estático por alguns instantes diante do pequeno corpo submerso. A garota pôde vê-lo através da água, mas não conseguiu identificar a feição em seu rosto. Ele se retirou.

Tudo havia desaparecido. O cansaço, o frio, as dores... Tudo. Estava envolta por um vazio infinito, e imaginou que aquela fosse a sensação de estar morta, embora seus olhos ainda estivessem abertos. O silêncio do rio foi imensamente reconfortante, assim como a água que a embrulhava, a qual havia levado suas últimas lágrimas com a correnteza macia que não era forte o suficiente para mover seu corpo. Megana sentiu a paz por longos instantes, e era uma sensação indescritível, como se pudesse permanecer deitada ali para sempre. E talvez o tivesse feito, se não fosse por um detalhe extremamente desagradavel que ainda existia dentro de si. Algo que não desapareceu com o cansaço, o frio e as dores. Algo que, na verdade, estava ainda mais intenso do que quando entrara na água...

A fome.

Esgotado, Dimitrie caiu de joelhos à beira do rio. Tomado por um choro incessante, ele lamentava através de súplicas desesperadas voltadas para os céus, pedindo perdão com justificativas embaralhadas. Estava tão bêbado e atormentado que nem mesmo percebeu o frio avassalador que devorava seu corpo, ainda que tremesse em um ritmo frenético, a ponto de desordenar sua fala.

A roupa molhada começava a mostrar sinais de congelamento, e a respiração pairando diante de seu rosto quase encobria seu campo de visão. Absorvido em seu clamor, não chegou a perceber a lenta aproximação de algo às suas costas, chegando cada vez mais perto, até que estivesse a apenas três passos de si. Só se deu conta quando ouviu um gotejar suave que era quase mascarado pelo som da correnteza.

Rapidamente se virou na direção do rio, seus olhos se arregalaram quando a avistou diante de si. Imóvel e completamente encharcada, Megana o olhava com uma expressão estranha. O homem se jogou para trás com o susto, caindo sobre a neve densa que amorteceu o choque contra o quadril. Sua boca produziu sons indistinguíveis à medida que se arrastava para longe, o olhar fixo no semblante irreconhecível da filha. Esfregou os olhos, imaginando que poderia ser uma alucinação ou efeito do álcool, mas algo dentro de si o dizia que era real.

Era a primeira vez que via aquela expressão no rosto da filha. Não era raiva, nem tristeza, e muito menos medo. Era algo frio, muito frio. Um olhar congelante que o queimou de dentro pra fora, mas ainda não sabia ao certo porquê seu coração estava acelerado. Talvez fosse por conta do brilho rosa sobrenatural que subitamente cobriu as iris de sua filha, ou pela forma calma e amedrontadora que ela caminhava em sua direção. Seu cérebro não conseguia formar uma palavra sequer, mas sua boca continuava tentando, tremendo vertiginosamente por conta do frio.

Megana continuou se aproximando, movida por apenas uma necessidade, e não pôde deixar de reparar a expressão incomum no rosto de seu pai. Nunca o tinha visto com tanto medo. Na verdade, nunca o tinha visto com medo algum. Foi estranhamente satisfatório.

Quase parecia... que ele sabia que iria morrer.

Eram apenas seis da manhã quando saiu de casa, mas já anoitecia quando retornou. Desnorteada e coberta de sangue, Megana vagou por horas através da floresta Baciu, sem rumo, prolongando propositalmente seu caminho de volta. Seus pensamentos estavam embaralhados, completamente confusos, tentando encontrar algum sentido ou explicação para o que aconteceu no rio. Ela sabia que tinha de voltar para seus irmãos, mas temia perder o controle novamente se os visse, e não queria acabar fazendo com eles o que fizera com o pai.

Megana tinha medo de monstros, foi morta por um, e acabou se tornando algo ainda pior. Não entendia como fora capaz de fazer aquilo, mas o que mais a assustava era o fato de que não sentia remorso algum. Pelo contrário, sentia-se revigorada. Sua fome estava saciada e o frio não a incomodava. Ainda podia sentir o gosto da carne de seu pai pairando no céu da boca, e a sensação vez ou outra a distraía de sua situação atual. Ela sentia como se seu corpo estivesse novo em folha, blindado e pronto para qualquer situação, tanto que só percebeu o passar do tempo quando começou a escurecer, mesmo tendo andado por quase dez horas consecutivas.

Quando finalmente encontrou coragem para voltar para casa, prometeu a si mesma que não havia nenhuma possibilidade de machucar os irmãos, e que o incidente com o pai fora apenas um efeito da fome. Ela deu início a uma caminhada apressada, chegando ao seu destino no crepúsculo do anoitecer, mas antes que pudesse adentrar na cabana, reparou algo muito incomum em desarmonia com a atmosfera pobre do vilarejo.

Havia um veículo escuro estacionado ao lado da caminhonete de seu pai, o qual certamente não se encontrava ali quando saíra pela manhã. Era o carro mais refinado que Megana vira em sua vida, do tipo que, com toda certeza, não pertencia àquele lugar. A cabana dos Anghel localizava-se na borda do vilarejo, ligada à floresta, o que significava que quem quer que fosse, seguramente não estacionou naquele local por mera coincidência.

Megana atravessou a porta dos fundos com voracidade, partindo em disparada para o quarto dos irmãos sem reparar o quão silenciosa a moradia se encontrava. Seu coração errou uma batida quando encontrou o cômodo despovoado. Ainda não sabia como daria a trágica notícia sobre a mãe, e se esquecera completamente de que estava coberta pelo sangue do pai, mas tinha em mente que faria de tudo para proteger o que restou da família. Enquanto chamava o nome dos irmãos pela casa, o triste pensamento de que haviam passado aquele dia inteiro sem comer - assim como o anterior - lhe correu à cabeça, o que a deixou ainda mais preocupada.

A garotinha vasculhou todos os cantos da casa, sem nenhuma resposta ou qualquer outro ruído, mas tudo mudou quando correu até a sala e acabou encontrando uma presença inesperada repousando sobre a velha poltrona no canto do cômodo. Megana permaneceu imovel enquanto o homem se levantava, coberto superficialmente pela penumbra fantasmagórica daquela noite nublada. Do lado de fora, a neve começava a cair.

- Megana Anghel - ele saudou. - Estava aguardando sua chegada. Está atrasada.

O forte sotaque acabou denunciando que não pertencia àquele país, o que explicava o requintado veículo do lado de fora. Imaginando o pior, Megana fitou o forasteiro inexpressivamente, tentando recordar de onde poderia conhecê-lo. Não havia a possibilidade de ser um amigo de seu pai, pois aparentava ter no máximo vinte anos, e indubitavelmente não era um familiar, visto que tinha cabelos dourados, diferente de qualquer um entre os Anghel. Ele possuía um porte atlético, alto, olhos azuis em um tom suave, trajando um uniforme em tons de branco e verde-marinho, com o símbolo de um sol estampado no peito. Megana chegou à conclusão de que não o conhecia de modo algum.

- Peço desculpas se minha pronúncia estiver muito incompreensível - o forasteiro falou quando a garota tardou a responder. - Estive poucas vezes na Romênia.

- O que fez com meus irmãos? - Havia um certo tom ameaçador na pergunta da criança.

- Eu os levei para um lugar seguro há quase oito horas. - Ele tentava ser cauteloso. - Não queriam sair sem você, mas prometi que voltaria para te buscar.

- Quem é você? O que quer com minha família?

- Me chamo Charles Ekoptaris, e estou aqui para ajudá-la.

- Traga meus irmãos de volta!

- Megana, eu sei o que aconteceu no rio. Peço perdão por não ter chegado a tempo de impedir, mas você...

- DEVOLVA MEUS IRMÃOS!

Em um surto de raiva, a criança sentiu o corpo ser tomado pelo mesmo instinto selvagem que a fizera dilacerar o pai horas mais cedo. Com uma força e velocidade sobrenatural, ela avançou na direção do desconhecido. Havia fúria em seu pequeno rosto, e não sabia de onde vinham todas aquelas emoções intensificadas, mas considerando tudo o que vivera naquele único dia, não poderia se dar ao luxo de recusar o poder que seu interior lhe oferecia.

Para sua surpresa, não conseguiu ir tão longe quanto esperava, pois assim que deu os primeiros passos, Charles ergueu o pulso com a palma da mão aberta, sem nenhuma preocupação aparente, e a garota parou instantaneamente. Estava paralisada do pescoço para baixo, e como se não fosse o suficiente, seus pés lentamente deixaram o chão. Ela flutuou, cada vez mais alto, e ficou claro pelo gesto que o garoto fazia, e na forma como seus olhos adquiriram um brilho verde-marinho no mesmo tom de seu uniforme, que era ele quem estava fazendo aquilo, Megana só não sabia como.

Incapaz de mexer o resto do corpo, a garota foi tomada por um desespero angustiante, relembrando a última vez em que alguém a imobilizara, mais cedo naquele mesmo dia. Ela desabou no choro, temendo que o que viria a seguir fosse pior do que o afogamento forçado. Charles se comoveu no mesmo instante.

- Eu vou te colocar no chão, mas você precisa prometer que vai me escutar antes de tentar qualquer coisa. Você promete? - Ele esperou por uma reação, e a criança respondeu com um menear de cabeça amedrontado. - Muito bem.

Charles, gentilmente, a recolocou no chão, e mesmo depois de solta, Megana não ousou sair do lugar. Temia o que ele pudesse fazer, e não tinha idéia do que o desconhecido era capaz.

- Argh, estou congelando - ele falou, casualmente, e apenas um olhar naquela direção foi o suficiente para fazer a lareira sem vida cuspir uma curta onda de chamas que varreu para longe a escuridão do cômodo. Megana rapidamente se afastou com o susto, mas baixou a guarda quando o fogo esmoreceu de volta para dentro da lareira. - Não está com frio?

Ela balançou a cabeça em negação.

- Hmm, interessante. - Ele se aproximou das chamas, apontando as palmas das mãos na direção do fogo para se aquecer. - Pelo visto seus dons vão mais além de se alimentar de carne humana.

- O quê?

- Seus dons - ele repetiu. - Estou pronunciando corretamente?

- Você... sabe o que eu fiz?

Charles ficou em silêncio por um instante, ainda com a atenção voltada para a lareira, até suspirar pesadamente antes de responder.

- Sim. - Voltou a olhar para a garotinha, a qual começava a chorar novamente. - Sinto muito por ter tido que passar por aquilo. Como eu disse, fiz o possível para chegar a tempo, mas recebemos a visão tarde demais.

- Visão? - ela balbuciou.

- Megana, você jamais deve se culpar pelo o que aconteceu - ele falou com seriedade. - Nossos dons florescem em momentos de maior necessidade, surgindo com a exata função que garantirá nossa sobrevivência.

- Eu sou um monstro?

- Mas é claro que não - ele se ajoelhou, ficando cara a cara com a criança. - Você é tão normal quanto eu.

O garoto esticou a mão na direção do velho vaso de barro que Megana esculpira para a mãe em seu último aniversário. O presente jazia no mesmo lugar de sempre, sobre a mesinha de madeira à esquerda do sofá. Ele pegou uma das flores mortas que ali estavam, e antes de entregá-la à garota, o tom escuro e a textura seca desapareceram gradativamente como se milagrosamente voltasse à vida. Em menos de cinco segundos, era uma bela rosa viva novamente, com o vermelho de suas pétalas e o verde de seu caule mostrando-se tão intensos quanto no dia em que fora colhida.

- Você é uma Melius.

Antes de pegarem a estrada, Charles esperou que garota trocasse as roupas sujas de sangue e preenchesse uma pequena mochila de farrapos com tudo o que não poderia deixar para trás, incluindo um velha fotografia da família, da qual futuramente cortaria o Pai. Embora não confiasse completamente no forasteiro, Megana decidiu aceitar sua ajuda - posto que não encontrara nenhuma outra alternativa -, permitindo que a guiasse até os irmãos, onde quer que estivessem. O teletransportador mais próximo fica nos arredores de Cluj-Napoca, Charles informou, mas Megana não entendeu o que significava, Foi como cheguei aqui.

A neve caía forte durante a viagem até a cidade vizinha, e Charles passou todo o percurso contando detalhes sobre sua raça, os Melius, e seu modo de vida, simplificando o máximo que podia para facilitar o entendimento da jovem. Megana, no entanto, estava exausta demais para prestar atenção, e acabou adormecendo no meio do caminho. Quando acordou, já haviam ultrapassado os limites de Cluj-Napoca. O carro estava parado no meio de uma clareira, cercado por árvores altas cobertas de neve e de frente para um largo objeto cristalino, perfeitamente simétrico, o qual refletia a luz dos faróis como se formado por milhares de pequenos espelhos. "O Teletransportador".

- Está pronta? - ele a questionou em tom sereno.

Levemente sonolenta, a criança abriu a porta do carro em resposta, caminhando na direção do objeto em forma de decágono antes que Charles apagasse os faróis. O teletransportador se acendeu no momento em que subiram os degraus de quartzo, e automaticamente um painel holográfico surgiu surgiu à sua frente, onde o garoto digitou senhas e coordenadas que fizeram o piso cristalino brilhar ainda mais. Megana estava muito maravilhada para se lembrar de sentir medo, mas seu único objetivo continuava claro em sua cabeça: encontrar os irmãos.

- Você pode sentir um pouco de enjoo, dor de cabeça ou até uma queda de pressão - ele alertou -, mas não se preocupe, isso acontece na primeira vez de todos.

Antes que pudesse responder, a superfície do transportador expeliu um intenso flash de luz branca que cobriu sua visão por completo, tornando-se tudo o que conseguiu ver por quase trinta segundos. A garota sentiu exatamente todos os sintomas dos quais Charles alertara, e quando a luz finalmente cessou, seus olhos contemplaram um ambiente completamente diferente do de trinta segundos atrás.

Romênia ficara no passado, e agora não mais se encontravam em solo europeu. Estavam em Celeste, um grande Coven da América do Norte, localizado num loop no noroeste dos Estados Unidos. Também haviam covens pela Romênia, como em qualquer outro país, mas quando uma Bruxa do Destino de determinado Coven prevê a existência de um Melius, não importa em que país esteja, é exatamente para este coven onde o Melius deve ser trazido. "É a vontade do Destino" diziam as Bruxas do Destino mais antigas.

Ainda naquele dia, Megana reencontrou os irmãos mais novos, Jasu e Laubele, seguros e bem alimentados. Testes foram feitos em sua ausência, e foi constatado que ambos também eram Melius, o que a fez temer que os irmãos se tornassem algo como o que havia se tornado. Em contraponto, foi descoberto que Horia, a irmã mais velha, era humana, e visto que humanos não sobrevivem em loops por muito tempo, a garota foi encaminhada para um hospital humano não muito distante da localização do coven, onde seu caso de anemia falciforme pôde ser tratado devidamente.

Charles prometeu à Megana que Celeste iria garantir que a irmã ficasse segura e tivesse uma boa vida humana, mesmo que tivesse de viver afastada dos irmãos. Algumas mudanças precisaram ser feitas - visto que era uma estrangeira que não falava inglês -, a começar por uma nova identidade, o que ajudaria a evitar que os humanos descobrissem que era uma imigrante ilegal. Horia Anghel mudou o nome para Olivia Anghel, e mesmo não sendo necessário, Megana pediu à Celeste novas identidades para todos da família, visando colocar uma parede ainda mais densa entre eles e o passado. Os gêmeos, Jasu e Laubele Anghel, passaram a ser Jason e Annabelle Anghel, e Megana Anghel tornou-se Megan Anghel.

Os primeiros anos em Celeste foram os mais difíceis. Não poderia ser mandada para envelhecer em uma Casa de Plantio antes de aprender a língua inglesa e, principalmente, antes de aprender a controlar a raiva. Seu temperamento era uma peça chave para seus dons, e alguém com uma habilidade tão perigosa não deveria perder o controle tão facilmente. Apenas um pequeno desentendimento era o suficiente para desencadear sua personalidade animalesca, e os traumas da infância apenas contribuíram para agravar a situação. Megan passou por acompanhamento psicológico durante anos, e com o tempo conseguiu superar seus traumas um por um, libertando-se das correntes presas à sua personalidade.

Charles nunca ficava em Celeste por muito tempo. Assim como os outros híbridos, sua função era seguir as visões das Bruxas do Destino, teletransportando-se de país em país para resgatar novos Melius ou fornecendo ajuda a outros Covens dos Estados Unidos. Sempre que se encontrava em Celeste, no entanto, nunca deixava de passar um tempo com Megan, dando à garota todo o apoio e motivação que precisava, ainda que esta fosse orgulhosa demais para pedir. Ele era o único em quem Megan realmente confiava, e gostava muito de sua companhia, mesmo nunca tendo confessado em voz alta. Era como ter um irmão mais velho, e por esse motivo, a notícia de que havia sido ferido em combate foi o suficiente para desestabilizá-la novamente.

Em outubro de 1999, Charles foi infectado por um caçador, mas embora houvesse sobrevivido, Megan perdera a única pessoa que conseguia colocá-la na linha. Era seu terceiro ano em Celeste, mas o fato de estar vivendo em um loop ainda a mantinha com doze anos de idade. Não era madura o suficiente para saber lidar com mais uma perda, e não ter o irmão mais velho para lembrá-la de que não era um monstro acabou resultando na origem de uma nova garota. Diferente da garotinha afogada no rio e diferente da garotinha que saiu dele. Megana, definitivamente, havia ficado para trás. Agora, era Megan.

Sua primeira reunião com as outras Bruxas da Carne aconteceu quando finalmente conquistou um bom domínio sobre o inglês. As reuniões da corte das Bruxas da Carne eram um evento semanal, e aconteciam em um cômodo próprio para isso: "A Sala Rosa". Um amplo e bem iluminado espaço no andar térreo da ala oeste de Celeste, com símbolos e escrituras pintados em rosa pelas paredes, e um enorme vitral com diferentes tons de rosa - a representação em arte abstrata da magestosa Suprema da Carne, Iranna, rodeada por formas circulares que simbolizavam os inúmeros planetas que colonizou ao longo dos éons.

Já completamente entediada, Megan repousava sobre uma das poltronas voltadas para a pequena plataforma circular no centro da sala, aguardando impacientemente o começo da reunião. Pouco a pouco, as bruxas trajando uniformes rosa com detalhes brancos aprumaram-se por todos os cantos da sala, dando início a um burburinho indecifrável que se intensificava à medida que o local ganhava mais ocupantes.

Ela varreu o cômodo com o olhar, procurando algo interessante para observar enquanto esperava pela reunião. No canto da sala, afastado de todos, havia um garoto indiano de cabeça raspada flutuando a alguns metros do chão em posição de meditação. Mais à esquerda, uma garota de cabelos escuros entrou apressada, levantando os óculos de grau para esquentar o café em sua mão com o raio de calor que disparou pelos olhos.

Em um dado momento, um grande falcão escuro sobrevoou a cabeça das bruxas sala a dentro, estranhamente não atraindo a atenção de muitos. Por alguns segundos, o pássaro voou em círculos ao redor do elegante lustre de cristal sobre o centro do cômodo, até diminuir altitude, indo em direção ao chão, e foi quando repentinamente assumiu a forma de uma bela garota latina de cabelos negros, também trajando o uniforme rosa das bruxas da carne. Cassandra Cordero. Não era a primeira vez que Megan via seus dons em ação, mas não conseguia evitar ficar boquiaberta sempre que presenciava suas transformações - especialmente quando voltava para a forma original. Ela a observou se confraternizar com um grupo de Melius do outro lado do cômodo, até que sua atenção foi atraída por um estalar de dedos à sua direita.

- Com licença, Docinho - era uma garota mais velha, cujo nome Megan não recordava -, acho que está sentada no meu lugar.

O sorriso frio e a postura elegante emanavam uma gentileza ofensiva, seu olhar parecia emitir uma ordem oculta. Megana a estudou silenciosamente, o que a fez virar a cabeça um pouco para o lado, ainda sorrindo, como se perguntasse "Você me escutou?".

- E o que a faz pensar que isso é problema meu?

- O que você disse? - ela ainda sorria quando perguntou, mas sua voz soou dura e desafiadora.

- Além de burra, é surda?

Por um instante a garota não teve reação, mas então deixou escapar uma gargalhada alta e exagerada, como se Megan fosse apenas um filhotinho raivoso mostrando as presas.

- Você é uma graça, garotinha. - Ela voltou para o tom brando e controlado, o sorriso agora demonstrava verdadeiro divertimento. - De verdade, a coisa mais fofa que vejo em muito tempo. Vamos fazer o seguinte, você se levanta do lugar onde tenho me sentado nos últimos cento e sessenta e oito anos e eu prometo que não levarei sua insolência a sério. Tudo bem?

Sem vacilar o semblante neutro, Megan a observou calada por alguns momentos antes de responder.

- Ontem, quando estava aprendendo novas palavras em inglês, me deparei com um termo cujo significado havia esquecido: "Abominação". Seu cabelo acabou de me lembrar o que significa.

- Ora, sua pequena...

Agora com um olhar ameaçador, ela apontou uma grande agulha de tricô, a qual Megan não sabia de onde havia surgido, na direção da própria barriga.

- Katherine. - Cassandra Cordero havia se aproximado, agarrando o braço da garota antes que terminasse a frase. - O que está fazendo? - ela sibilou. - Pelo amor de Iranna, é só uma garotinha. Vamos sentar em outro lugar desta vez.

Katherine respirou fundo, recuperando o semblante cínico que por alguns instantes se perdeu.

- Nos vemos por aí, querida.

Ela fez uma pequena reverência, o sorriso frio de volta em seus lábios. Cassandra a guiou até o sofá no lado oposto, e Megan, inexpressivamente, as observou se afastarem, até que a voz grave e profunda do líder e representante das Bruxas da Carne estrondou no centro do cômodo, conseguindo silenciar metade dos indivíduos que ali estavam. Ras, sobre o pequeno palanque circular no meio da sala, era um sujeito alto e musculoso, com a pele negra densos dreadlocks na altura dos ombros. Um sujeito aparentemente normal, se visto de frente.

Megan sentia um arrepio sempre que via o Regente fazer "aquilo" com a cabeça, e estava torcendo para que não o fizesse naquele momento, mas quando percebeu que uma boa parte dos Melius ainda não havia notado sua presença, ele o fez. Seu pescoço girou cento e oitenta graus, mandando a face comum para trás e trazendo para frente o segundo rosto que ocupava o espaço posterior de sua cabeça em meio aos dreads. Era o rosto de uma fera selvagem de pelagem escura, com presas pontudas e focinho alongado, cujo rugido estremeceu todos os cantos da sala, a ponto de quase fazer o vitral trincar. Todos se calaram imediatamente, o que o fez destorcer pescoço e trazer seu rosto normal de volta para frente, podendo finalmente dar início à reunião.

Ras começou dando boas-vindas aos poucos novatos que ali estavam, e sem demora, prosseguiu distribuindo tarefas e missões para algumas Bruxas da Carne das quais os dons seriam necessários naquela semana. Vinte minutos depois, o líder finalizou a reunião repassando todos os novos avisos, entre eles a data para o início da próxima Casa de Plantio daquele Coven: março de 2007. O nome de Megan foi citado no final, como uma das jovens Bruxas da Carne que seriam encaminhadas para envelhecer fora de Celeste, e então uma salva de palmas foi solicitada por Ras.

A pressão daqueles aplausos, somada com o número de olhares voltados para si, deixou a garota completamente desconfortável, ainda que não tenha transparecido em seu rosto. Megan estava no Coven há três anos, congelada nos doze anos de idade, mas sabia que o dia de envelhecer chegaria mais cedo ou mais tarde. Foi sua decisão, afinal. Poderia ter escolhido permanecer naquela idade por mais tempo, mas Casas de Plantio não acontecem o tempo todo, e estava determinada a ficar mais forte para proteger os irmãos. Ainda faltavam quase oito anos para 2007, mas Megan não deixou de sentir uma pontada no peito quando lembrou que Charles não estaria ali como prometeu que estaria quando aquele dia chegasse.

Os próximos oito anos pareceram voar como nunca antes, mas foram o suficiente para conceder à Megan um melhor entendimento de seus dons e, principalmente, de si mesma. O treinamento para jovens Melius em Celeste não só a ajudou a controlar seu temperamento, como também garantiu um melhor desenvolvimento de suas habilidades como Bruxa da Carne, levando-a a descobrir que seus poderes iam muito além de apenas precisar se alimentar de carne humana - assim como Charles dissera quando se conheceram.

Enquanto estivesse alimentada, Megan possuía força e agilidade acima do ordinário, além de ter os sentidos, como visão, olfato e audição, apurados em um nível sobrenatural. O frio não a incomodava, tampouco qualquer ferimento que seu corpo viesse a ter. Não precisava de oxigênio para sobreviver, o que a permitia passar horas no fundo da piscina de treinamento do Coven, meditando ou simplesmente dormindo, rodeada pela paz absoluta que só conseguia encontrar quando ficava sob a água.

Sua única fraqueza estava no fato de que precisava estar alimentada para que os poderes funcionassem, caso contrário seu corpo entrava em estado de decomposição, e seus instintos mais selvagens e primitivos tomavam controle de seu julgamento - motivo pelo qual algumas crianças de Celeste apelidaram-na de "Garota Morta-Viva".

Com as irmãs se mudando para Seattle há cerca de três anos, Megan e o irmão mais novo, Jason, iniciaram juntos o envelhecimento na Casa de Plantio em 2007. Não foi fácil deixar todo o luxo de Celeste - com o qual havia se habituado nos últimos onze anos - para viver em uma cabana desgastada no meio do nada. Pela primeira vez em muito tempo, ela sentiu como se estivesse de volta à sua cabana na Romênia, e foi inundada por uma chuva de lembranças ruins que a incomodaram por meses.

O mais difícil, no entanto, foi se manter bem alimentada. Em Celeste, nunca lhe faltara carne humana de boa qualidade, mas agora, teve de se contentar com as raras ocasiões em que o corpo de algum indigente era levado para o necrotério da cidade, do qual sua responsável roubava uma perna ou um braço para saciar sua fome. Nunca era o suficiente, mas desaparecer com corpos inteiros levantariam suspeitas e uma atenção indesejada. O pior era quando um longo período se passava sem que um indigente ocupasse uma das câmaras mortuárias, o que levava a sua responsável a partir para o plano B: corpos de cemitério.

Megan odiava ter de comer a carne corpos embalsamados, e às vezes chegava a vomitar por conta do forte gosto de formol, glicerina ou outras substâncias. Certa vez perguntou à sua responsável porquê não poderia receber alimento diretamente de Celeste, visto que os teletransportadores facilitariam a entrega, todavia, foi informada que estes só deveriam ser usados em ocasiões de extrema importância, em razão de emanarem altas ondas de energia eletromagnética sempre que usados, o que facilitaria serem rastreados pela corporação White Star.

Sob os cuidados da adorável Madame Dot, o primeiro ano foi o mais tranquilo. Teve de estudar em uma escola de humanos por motivos que à época não entendeu, e o fato de viver rodeada de crianças mais novas a incomodava ligeiramente. Megan estava viva há vinte e três anos, mesmo que ainda continuasse sendo uma criança de doze, e seus novos irmãos e irmãs estavam entre os seis e dez anos de idade, o que a tornava a mais velha entre os nove jovens Melius que compunham o grupo. Ainda em 2007, uma Bruxa do Destino teve a visão de que seriam encontrados e capturados por uma frota da White Star, e por esse motivo Madame Dot deixou de leva-los à Cidade.

Em 2008, Megan e seu grupo passaram a assistir às aulas transmitidas de Celeste - como deveria ter sido, desde o começo -, na segurança de seu lar. A maioria eram ensinamentos comuns, como história e filosofia humanas, mas também haviam aquelas sobre a cultura Mélica, como concentrar o éter em seu interior, informações específicas para cada classe de Melius, entre outros.

Nesse mesmo ano, os cuidados da Casa de Plantio foram deixados nas mãos de outra bruxa da natureza - Esme -, a qual Megan odiou logo no seu primeiro mês de convivência. Diferentemente da Madame Dot, Esme era fria e silenciosa. Não cozinhava bem, não sabia lidar com crianças, e passava a maior parte do tempo lendo livros milenares em linguagens estranhas do que dando atenção para seus protegidos.

Para Megan, o treinamento físico era a pior parte, especialmente pelo fato de que Esme, a treinadora, não se importava de aplicar golpes de karatê em crianças de treze anos.

- Já está cansada? - Esme perguntou, cinicamente.

Megan murmurou um palavrão, ainda caída no chão depois de levar um golpe no estômago.

- Semana passada você conseguiu atingir meu ombro com um chute. Não vai desistir agora, vai?

- Eu estava mirando no rosto.

O local de treino era nos fundos da cabana, uma larga área gramada entre a estufa e a velha piscina. Esme a observava de braços cruzados e semblante neutro, vestindo o uniforme de treino das bruxas da natureza, de cor verde. Há algumas semanas, quando disseram que aquela Bruxa da Natureza era uma princesa, Megan imaginou que seria moleza enfrentá-la nos treinos, considerando a força sobrenatural que possuía. Entretanto, depois de vários dias consecutivos sendo derrubada em menos de um minuto, percebeu que estava tremendamente enganada. Esme era rápida, flexível, e muito mais forte do que parecia, além de nem mesmo precisar usar seus poderes durante os confrontos.

- Devo lembrá-la que quando completar quinze anos terá treinos constantes com a chefe de treinamento da sua classe, e ouvi dizer que você e ela não se dão muito bem.

A garota bufou de raiva, fazendo força para se colocar de pé. A chefe de treinamento das bruxas da carne era ninguém mais do que Katherine Adamok, e Megan faria de tudo para não dar à ela o gostinho de humilhá-la no ringue de lutas.

Os três anos tentando vencer Esme em um confronto fizeram-na desenvolver suas habilidades de luta consideravelmente, mas não foi o suficiente para derrotar a tão odiada chefe de treinamento quando o dia chegou. Megan não sabia sua idade exata, mas pelo o que ouviu comentarem, Katherine era uma bruxa anciã tão velha quanto Esme - ainda que estivesse conservada com seu belo e irritante rostinho de dezoito anos -, possuindo vários séculos de experiência e frigidez na bagagem.

Os treinos em Celeste aconteciam uma vez ao mês, e serviam para testar o potencial adquirido pelo jovem Melius na Casa de Plantio. Foram anos perdendo para Katherine, a qual - não sendo nenhuma surpresa - também não pegava leve com adolescentes de quinze anos, pelo contrário, parecia sentir satisfação em humilhar seus oponentes durante o combate.

À medida que amadurecia e adentrava mais e mais na fase da puberdade, Megan passou a dar cada vez mais importância à coisas fúteis como sua aparência, suas roupas e o que as outras pessoas pensavam de si. Algo muito comum em sua corte. Bruxas da carne são tão vaidosas quanto são orgulhosas, dizem por aí. Ela se olhava no espelho, e não enxergava nada além de um patinho feio, com cabelos curtos e ressecados, roupas quase masculinas e uma popularidade nenhum pouco agradável.

Megan odiava Katherine do fundo de seu amâgo desde o momento em que a conhecera, e um dos motivos substanciais se dava pelo fato de que ela era tudo o que a garota mais ansiava ser. Bonita, graciosa, desejada, popular e feminina, com cabelos sedosos e sempre muito bem maquiada, dona de uma elegância e autoconfiança que Megan apenas sonhava em possuir.

Certa vez, Esme a pegou de surpresa em seus aposentos, sentada de frente para o espelho com o seu estojo de maquiagem no colo e o rosto exagerada e desajeitadamente produzido. Megan fitou-a, assustada, temendo o que a fria Bruxa da Natureza faria por tê-la encontrado mexendo em seus pertences. Esme, entretanto, quase achou engraçado, e a atitude que tomou assustou até a si mesma.

Com o semblante neutro e sem dizer uma palavra sequer, fez um gesto para que Megan se sentasse na cama, e depois de limpar do rosto da adolescente toda a maquiagem malfeita advinda de alguém inexperiente, ela recomeçou todo o processo do início.

- Para uma dama - ela começou -, o segredo de uma pintura facial graciosa e elegante é não parecer que está usando alguma. Tons leves e naturais.

Quando terminou, Esme a colocou diante do espelho novamente, e a observou contemplar a própria imagem com certa afeição pela primeira vez.

- Isso foi um presente de minha irmã no nosso aniversário de 915 anos - Esme contou, pegando a antiga caixa da maquiagens de cima da cama. - É um dos exemplares clássicos dos Années Folles da França. Pode ficar com ele.

Ela esticou o grande estojo para a garota, não demonstrando nenhuma emoção. Megan permaneceu estática por alguns instantes enquanto olhava nos olhos álgidos de sua cuidadora, espantada pelo primeiro comportamento ligeiramente afetuoso da Bruxa da Natureza. À partir daquele dia, Megan passou a vê-la de uma forma diferente, como se pela primeira vez notasse algo que sempre estivera ali. Ela aceitou o presente de bom grado.

- Obrigada, Esme.

O treinamento oficial com Esme continuou por mais três anos. Durante esse período, Megan recebeu não só o preparamento para combate corpo a corpo, como também uma preparação específica para seus poderes. Esme ensinou-a a se aproveitar devidamente da vantagem de possuir sentidos mais apurados, colocando-a muitas vezes para enfrentá-la vendada. Megan podia guiar-se facilmente apenas pelo faro e audição, mas demorou para que conseguisse lutar de igual para igual sem a visão.

Esme também a fazia procurá-la pela floresta, quando o treinamento se transformava em uma brincadeira de pique-esconde. Era difícil distinguir todos os cheiros em uma floresta, mas nas primeiras vezes a Bruxa da Natureza fizera um corte na própria mão para ajudá-la na caçada. O aroma de sangue fresco era algo que jamais passara despercebido pelo olfato assassino de Megan. Nessa mesma época, quando fazia seu treino com armas em Celeste, a garota adquiriu uma afeição estranhamente fraternal para com machados, os quais se tornaram-se seu artifício escolha para qualquer luta. Ela ficou tão boa no manuseio do machado, a ponto de ser capaz de acertar um alvo em movimento, exatamente na cabeça, há vários metros de distância.

Para que o "Incidente da Nevasca" não se repetisse, a cuidadora também forneceu um treinamento específico para seu autocontrole. Nas vezes em que a fome de Megan estava mais estorvante, Esme a levava para fora e as duas iniciavam um ritual de meditação, o que no início pareceu uma grande perda de tempo, mas que posteriormente mostrou-se de grande ajuda no adestramento de sua fera interior. Ao passar muitos dias sem se alimentar, Megan assumia uma personalidade extremamente agressiva, mas jamais tentou atacar um de seus irmãos novamente. Ficar sob a água na piscina também ajudava bastante, tanto quanto as poções de Bruxa da Natureza que Esme preparava para amenizar seu incômodo.

Megan também solicitou à Esme mais um tipo de preparamento. Um que a transformasse em uma verdadeira dama, como ela. E quem poderia se sair melhor nessa missão do que uma princesa da era medieval? Não foi simples, mas com alguns anos a jovem Bruxa da Carne desenvolveu todos os modos e trejeitos para se portar devidamente com graça e elegância, embora no fundo seu temperamento explosivo tenha continuado ali.

No ano de 2013, Megan atingiu os dezoito anos. Aquela era a idade em que todos os Melius de casas de plantio precisavam alcançar para que pudesse ser realizada a colheita, dia em que finalmente poderiam viver com o resto do coven permanentemente. Megan foi a primeira de sua Casa de Plantio a chegar aos dezoito, o que significava que a partir de então, viveria mais tempo em Celeste - no loop temporal - do que na cabana com os outros, em razão de que não deveria envelhecer mais do que aquilo.

Quando se mudou para Celeste, não era mais um patinho feio. Era um perfeito cisne. Um cisne negro, especificamente. Havia deixado os longos cabelos negros crescerem até a cintura, vestia-se com roupas justas e femininas em sua grande maioria na cor de sua corte - rosa -, e esbanjava um sorriso encantador e provocativo que conseguiu chamar a atenção até da pessoa que Megan mais cobiçava naquele lugar.

Existem inúmeras atividades no Coven de uma casa soberana como Celeste que tornam o lugar muito mais interessante que a Casa de Plantio. A garota descobriu um fascínio mais do que ligeiramente compulsivo por jogos, apostas, e qualquer coisa que apresentasse risco. Um de seus dons era possuir uma alta tolerância à dores físicas diretas, o que significava que, em uma noite de jogos com seus irmãos e irmãs de Celeste, se entrasse em uma partida de "Roleta Russa Com Uma Pistola", pouco tinha a temer.

Passar mais tempo no Coven não significava apenas mais tempo no ringue com Katherine, significava também conviver com Katherine. Dias e mais dias de alfinetadas, indiretas e Melius se unindo para segurar Megan quando esta partia para cima de Katherine durante o almoço, jantar, ou simplesmente quando se cruzavam nos corredores.

Houve um dia de glória, no entanto, quando Megan conseguiu finalmente atingir um soco carregado no rosto da Senhorita Perfeita - como referia-se a ela - durante uma luta no ringue. Talvez estivesse finalmente alcançando-a, agora que também tinha dezoito anos, ou talvez a chefe de treinamento tenha simplesmente a subestimado demais. Katherine, é claro, ficou furiosa e revidou com força total, deixando Megan caída depois de uma joelhada na cabeça. Ela se retirou do ringue com o habitual sorriso frio.

- Aquilo foi impressionante.

A voz inesperada pegou Megan de surpresa, automaticamente colocando-a na defensiva antes se virar para encontrar quem havia falado. Cassandra Cordero estava de braços cruzados logo atrás de si, de cabelo preso e também vestindo o uniforme de treino das bruxas da carne, de cor rosa. Megan imediatamente foi tomada por um nervosismo desconfortante.

- Poupe-me do seu sarcasmo - ela rosnou.

- Não estava sendo sarcástica, juro - Cassandra se aproximou. - São poucas as pessoas que conseguem atingir Katherine com um golpe certeiro como aquele. Esme fez um ótimo trabalho no seu treinamento.

- Que bom, me sinto muito melhor agora.

- Agora é você quem está sendo sarcástica.

- O que você quer, Cassandra?

- Pensei em perguntar se estava bem. Ela pegou pesado no final.

Megan não respondeu. Pensar que Cassandra havia assistido àquela cena humilhante só a deixou ainda mais envergonhada.

- Precisa de ajuda para se levantar?

Tentando manter um pouco da dignidade que lhe restava, a orgulhosa Bruxa da Carne ficou em silêncio, deixando que Cassandra a erguesse. Megan ainda forçava uma expressão indiferente enquanto observava ela se afastar com um sorriso sereno.

- Você foi ótima, de verdade.

Cassandra fez menção de se retirar, deixando a garota com um leve rubor nas bochechas, mas antes que pudesse descer do ringue, Megan se obrigou a chamá-la:

- Cassandra...

Ela se virou, uma pergunta silenciosa no olhar.

- Obrigada.

- Pode me chamar de Cass - ela sorriu. - A propósito, eu estava pensando em vir aqui mais tarde para um último treino depois do jantar, mas não encontrei nenhum parceiro de ringue até agora. O que me diz?

- Eu adoraria.

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