CHAPTER IV: All My Friends Are Heathens
| L A N A |
11 de agosto de 2017
NO CORAÇÃO DE UMA FLORESTA AMEDRONTADORA a luz pálida da lua atravessava timidamente as frestas das copas das imensas árvores que me rodeavam. O ar era úmido, assim como a terra sob meus pés, e pude ouvir o uivar de lobos não muito longe de onde eu me encontrava naquele momento. Caminhei por um tempo, tentando encontrar uma saída daquele lugar, e a cada passo que dava, a cada centímetro que me distanciava do meu ponto de partida, notava mais e mais corvos se amontoando silenciosamente nos galhos das árvores acima de minha cabeça, como se esperassem por algo. Eu sabia que aquilo não era real, sabia que estava apenas sonhando, mas aquela mistura avassaladora de sentimentos pesados me fazia duvidar.
Naquele instante, bem ao longe, sobre uma elevação de terra, pude ver minha velha amiga: A dama sem rosto. Ela continuava gigante e brilhante — como uma lua em formato humano —, e estendia a mão, como se tentasse me ajudar, mesmo ainda estando a vários metros de distância. Não sei explicar como, mas eu podia sentir suas intenções perfeitamente.
Dessa vez, chamava meu nome. Sua voz parecia desregulada e distante — como um grito sob a água —, mas foi se transformando lentamente, até chegar num tom que pude reconhecer: era a voz de Sarah.
Advinha? O mundo não some quando fechamos os olhos.
Um trovão ribombou no infinito sobre nossas cabeças como se dissesse "bom dia", e ao abrir os olhos, encontrei Sarah me observando com evidente consternação em seu rosto. Ela apertava minha mão delicadamente enquanto chamava meu nome através de um sussurro suave.
Eu estava na enfermaria da escola, deitada sobre uma cama alta de colchão fino. O brilho intenso das luzes daquele lugar irritou minhas retinas nos primeiros segundos, mas pude notar dois adolescentes discutindo no canto da sala. Ainda estava bastante tonta e confusa, tentando descobrir se aquilo era um sonho, ou a realidade cinzenta em que vivia. Demorou um pouco para minha visão clarear, mas logo reconheci as pessoas que conversavam distante do meu leito. Eram Paul Stepford e Eleanor Orlovsky.
— Finalmente — Sarah disse num tom de alívio que se transformava em repreensão. — O que diabos você tem na cabeça?!
— O quê?
Ela se jogou sobre mim, prendendo-me em um abraço apertado.
— Sua idiota, nunca mais faça uma coisa dessas comigo.
— Eu caí?
— Você basicamente se jogou quando tentou alcançar sua carteira, e rolou quase dois lances de escada.
— É tarde demais para catar os pedaços?
— Não — ela se afastou e sorriu —, sempre tive muita experiência em catar seus caquinhos.
— Há quanto tempo estou aqui?
— Pouco mais que meia hora — respondeu Eleanor Orlovsky, repentinamente próxima ao meu leito.
— Você está bem? — Paul perguntou, logo ao seu lado.
— S-Sim, estou ótima — e era verdade, não estava sentindo nada de diferente, além de um pequeno incômodo na testa; o que era estranho, pois se eu havia acabado de rolar "quase dois lances de escada", pelo menos uma unha eu deveria ter quebrado, mas não, não estava sentindo nada anormal.
— Que bom! — Eleanor bateu palminhas.
A enfermeira se aproximou, acompanhada pela garota loira que chegara com meus antigos colegas, a qual eu não conhecia.
— Você levou um tombo e tanto, senhorita Miller — ela falou —, sorte que seus colegas estavam lá para lhe ajudar. Eu tentei ligar para seus pais várias vezes mas eles não atendem ao telefone.
Aquilo foi uma boa notícia; o drama exagerado de minha mãe era algo que eu realmente não precisava naquele momento.
— Siga a luz com os olhos — ela pegou uma pequena lanterna do bolso de seu jaleco, e a colocou diante de meu rosto, movendo-a de um lado para o outro. — Você tem alguma idéia do que possa ter causado o desmaio? — perguntou.
— Não foi a queda? — Sarah indagou.
— Não — respondeu a mulher —, o desmaio foi o causador da queda.
— Por que você não acha que desmaiei com o impacto?
— Desmaios causados por acidentes geralmente deixam sequelas e você não tem nenhum arranhão ou mancha roxa, o que é muito incomum já que, segundo a senhorita Campbell, você rolou quase dois lances de escada. É por isso que eu recomendo que fique aqui mais um pouco, é possível que haja alguma lesão interna. Você se lembra do que sentiu antes de cair?
— Apenas tontura.
Ela esticou minhas pálpebras com os dedos à procura de algo, mas no final pareceu não ter encontrado o que esperava.
— Bom, eu tenho algumas coisas para resolver, mas se precisar de mim, estarei na sala ao lado — ela sorriu antes de se retirar.
— Estou tão feliz que esteja bem, Lana — disse Eleanor.
Ela realmente estava irreconhecível — principalmente de perto. A garota asiática outrora tivera cabelos escuros e curtos, mas naquele dia estavam longos e tingidos num tom de loiro quase castanho, o que só realçava ainda mais sua beleza oriental.
— Obrigada pela ajuda, Eleanor.
— Não foi nada. E, a propósito, pode me chamar de Lea — ela disse, segurando a mão que Sarah acabara de soltar. — Ah — ela percebeu que a garota loira estava ali —, meninas, essa é Esme Montreūx. Ela é prima da Liza.
— É um prazer finalmente conhecê-las — Esme saudou, fazendo uma graciosa reverência com a saia.
O "finalmente" dessa frase me deixou pensativa, mas imaginei que apenas houvesse se expressado da forma errada.
Tinha os cabelos loiros e lisos caindo por trás dos ombros, olhos num tom de azul quase imperceptível e bochechas rosadas como as de uma boneca de porcelana antiga; seu pescoço era alongado, como se houvesse sido cautelosamente esculpido; estava usando uma saia curta e suéter de mangas longas — ambos de cor preta —, o qual exaltava suavemente a forma de seu corpo.
Ficamos em silêncio por alguns segundos desconfortáveis enquanto Eleanor sorria e me olhava como se tentasse adivinhar meus pensamentos.
— Por que vocês foram embora? — Sarah disparou aquelas palavras repentinamente, indo contra tudo o que eu havia lhe dito para não fazer, e deixando claro que não sabia o que significava discrição.
Paul e Eleanor trocaram um olhar rápido, e tive que segurar o impulso de chutá-la.
— Ainda é cedo meninas. Vocês precisam ter paciência — ela abriu um sorriso fraco, ainda segurando minha mão.
— Como assim? — Sarah balançou a cabeça.
— Paciência, Sarah, tudo em seu tempo. Nos vemos depois.
Ela sorriu, afagando meu rosto suavemente com as mãos frias e um toque de seda, e então, partiu, sendo seguida por Esme e Paul. Logo, os três adolescentes misteriosos, trajando preto como se viessem de um velório, sumiram do nosso campo de visão.
Depois que os três se retiraram, Sarah me olhou como se estivesse no meio de uma prova surpresa de física.
— Em breve quando? Será que ela não imaginou que isso só ia me deixar mais curiosa?
— O que eu te falei sobre discrição?
Ela revirou os olhos, praguejando em sussurro.
— O que a enfermeira falou sobre mim enquanto eu estava apagada?
— Nada de mais. Só perguntou se você tinha crises de ansiedade ou algo do tipo.
— E o que você respondeu?
— Que não. Que você só é sem-noção mesmo.
— Obrigada.
— Disponha — Sarah subiu em minha cama, cruzando as pernas. — O que quer fazer enquanto nos recuperamos do nosso terrível acidente?
— Na verdade, eu prefiro ir pra aula. Estou me sentindo bem.
— Ótimo, pois temos um mistério em mãos e não vamos poder desvendá-lo se ficarmos aqui. Vou avisar a senhora Chambers — ela foi até a outra sala.
A tempestade parecia ter aumentado consideravelmente desde que fiquei inconsciente. Podia-se ouvir trovões a cada quinze segundos, e o clarão dos raios refletidos nas janelas atrás de mim deixava o ambiente com um ar de filme de terror.
Confesso que sempre gostei de tempestades assim. Elas me lembravam que até o céu também grita, às vezes.
Sarah surgiu com minha bolsa no ombro.
— Ela disse que você pode ir, mas se sentir alguma dor na cabeça ou nas costas, é para voltar imediatamente.
Passamos pela sala da senhora Chambers com um sorriso e aceno de cabeça, e ela esticou um pote com pirulitos coloridos para nos oferecer. Eu peguei um, e guardei em meu bolso. Sarah pegou três.
Caminhávamos pelos corredores vagarosamente, até que ouvimos o sinal tocar. Pelo visto, tínhamos perdido mais uma aula. Continuamos no mesmo ritmo, até que chegou a hora de subirmos as escadas novamente.
Sarah segurou meu braço, e nós duas subimos degrau por degrau como se fossemos um casal de idosas.
— Isso é mesmo necessário? — perguntei, olhando com cuidado onde pisava.
— Desde que você decidiu que é divertido descer escadas dando cambalhotas, passou a ser.
Quando finalmente chegamos ao final da última escada, fomos andando um pouco mais rapido até nossa sala.
Eu não tinha idéia do que aconteceria no resto daquele dia, mas sabia que pelo menos do lado de fora, coberto pela tempestade, o céu estava lindo.
Assim que passamos pela porta, um grupo sentado no canto da sala chamou minha atenção. Não foi exatamente uma grande surpresa, mas ainda assim, foi estranho de se ver.
Eram eles.
Estranhamente, todos haviam sido alocados na mesma turma, levando sua presença misteriosa e amedrontadora a se destacar dos demais, graças à única cor que vestiam naquela manhã. Era impossível não notá-los.
Sarah me guiou até nossos assentos, segurando meu braço desnecessariamente como se eu estivesse bêbada. Não pude deixar de notar que todos ao nosso redor continuavam encarando os novos alunos no canto da sala, como se fossem obras em uma exposição de arte. Os caipiras cinzentos de Corbeaux não sabiam lidar muito bem com pessoas de fora. É como se os recém-chegados tivessem um certo cheiro que despertava sua curiosidade. Na verdade, eu até os entendia.
O cinza tende a se sentir atraído pelo o que tem cor.
Pessoas não deveriam admirar outras pessoas unicamente por sua aparência. Como é mesmo o trecho daquela música? Você está adorando a aberração sentada ao seu lado... você está adorando o assassino sentado ao seu lado...
Mas, aparentemente, todos os oito novatos e Paul Stepford continuavam não dando a mínima para os olhos curiosos.
Sarah rabiscava alguma coisa em seu caderno, me deixando surpresa por não estar encarando descaradamente os recém-chegados assim como os outros, considerando que ela era a mais interessada em saber de onde vinham. Ao chegar a hora do primeiro intervalo, nos dirigimos até o refeitório, onde centenas de vozes gritavam uma mais alta que a outra, formando uma conversa que era um mero ruído, como águas de um rio correndo sobre as pedras.
Depois de pegar uma fila irritantemente longa para conseguir lanchar, seguimos rumo à nossa mesa do refeitório, onde no momento jaziam Lara, Joe, Louise e Bill, os quais pareciam estar imersos numa discussão filosófica sobre algum tema desconhecido.
— Sobre o que falavam? — perguntei, assim que nos sentamos.
— Louise estava compartilhando suas teorias malucas sobre os novatos — Joe respondeu, evidentemente entediado.
— E então, meninas? — Louise esbossava um sorriso malicioso — O que vocês acharam deles? Aquele de tatuagens é o meu preferido.
— Elas já os conheciam — Lara mencionou.
— COMO?! — Louise voltou-se para Lara, e depois para mim. Seu sorriso malicioso havia aumentado consideravelmente — desde quando!? Por que vocês nunca me contam nada!?
— Não tem nada para contar, Louise — Sarah respondeu, logo antes de abocanhar seu sanduíche. — Não nos vemos há mais de dez anos.
— Acha que vão passar muito tempo aqui? — Louise estava quase subindo na mesa para ouvir a resposta de Sarah, a qual apenas deu de ombros.
— Onde vocês estavam na primeira aula? — Bill indagou.
— Enfermaria — Sarah respondeu.
— Fazendo o quê?
— Fazendo uma ultrassonografia, Bill. Lana está grávida. Eu sou o pai.
— Mudando de assunto — Lara interviu —, nós ainda vamos sair no sábado, certo?
— Espera um pouco, volta a fita um segundo — Louise ergueu o dedo indicador. — Sair pra onde no sábado?
— Blue Raven — respondi.
— Por que ninguém me avisou nada?
— Nós combinamos há pouco tempo, Louise.
— Tudo bem, tanto faz, vocês já sabem o que vão vestir?
Enquanto discutiam, minha mente reviveu involuntariamente um dos acontecimentos anteriores, que me deixara pensativa: "Ainda é cedo meninas. Vocês precisam ter paciência". As palavras de Eleanor fervilhavam em minha cabeça. Paciência pra quê? Por que ela simplesmente não respondeu a pergunta de Sarah? Será que aquilo foi um modo educado de dizer "não é da sua conta"?
— Então, Lana... o que acha? — Louise me olhava como se tivesse acabado de fazer uma proposta irrecusável.
— Claro — respondi, mesmo não tendo ouvido a proposta.
— Então está combinado — disse Lara, alegremente.
Sarah me olhou como se eu tivesse concordado com a maior burrice que já me propuseram na vida.
Repentinamente, minha cabeça começou a latejar. O desconforto na testa voltara e trouxera consigo uma intensa dor nos olhos e ouvidos. Resolvi não comentar, ou Sarah poderia associar a dor ao meu "Terrível Acidente" de hoje mais cedo, e não me deixaria em paz pelo resto da semana.
— Vou ao banheiro.
— Quer que eu vá com você? — ofereceu-se Louise.
— Eu até iria — disse Sarah, a boca cheia de comida —, mas tô meio ocupada.
— Não precisa, eu já volto.
E naquele momento eu nem ao menos imaginava que aquela ida ao banheiro só me renderia mais dor de cabeça. Quem diria que a ausência do cinza deixaria cores tão dolorosas?
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