Capítulo 3
A primeira noite em casa após o incidente com Ezequias e Lion, não foi das melhores. Apesar de minha ferida não ser profunda e ter sido necessários apenas 5 pontos, havia em mim um abismo de solidão. Fui tomada por uma tristeza inexplicável. Tentava entender o que motivo de Lion ter fugido e, apesar de saber que ele não queria complicações com a polícia, eu ainda tinha a esperança de que ele voltaria ao hospital para me ver.
Não sei quantas vezes li e reli o bilhete deixado por ele. Cada palavra, pontos e vírgulas, já estavam marcados em minha mente e já não era preciso ler as letras do papel.
Havia outra incógnita em minha mente. Por que ninguém encontrou o corpo de Ezequias? Algo tinha acontecido com aquele ele, mas o quê? A única resposta que eu podia imaginar era que Lion provavelmente ocultara o cadáver.
Não contei pra ninguém sobre os verdadeiros fatos daquela noite. Senti medo de acharem que eu era culpada ou cúmplice de Lion. Helena me fez contar a mesma história seis vezes e tive que tomar muito cuidado para não falar mais do que devia.
Tomei um analgésico e voltei a me deitar. Da minha cama, era possível ver a lua através da janela e apesar de ser uma noite muito fria, a lua brilhava lá no alto, com toda sua força.
"Você não faz ideia de como a noite pode ser sombria" – lembrei-me das palavras de Lion.
Aos poucos fui sentindo o sono chegando, minhas pálpebras começaram a ficar pesadas. Cobri-me com meu edredom e aconcheguei-me em minha cama e me deixei ser abraçada por Morfeu.
Vejo uma menina correndo em meio a um campo pedregoso, ela se parece comigo. Quem é aquele de armadura dourada que a persegue com tanto ódio? Ei – eu grito, - Não á machuque, por favor – Ele não me escuta, nem percebe que eu estou vendo tudo acontecer.
Um segundo homem de armadura dourada surge com uma espada empunhada. Uma batalha entre os dois homens está preste a acontecer. A pobre criança chora horrorizada. Tento ir até a garotinha, mas minhas pernas travam ao notar que ambos os cavalheiros estão prestes a partir para luta.
- Não ouse se aproximar dela, Samyaza . – disse o segundo homem, enquanto corria em direção ao primeiro.
- Ela me pertence, Miguel. Ela deve morrer – Rugiu furiosamente o primeiro homem já quase alcançando a garotinha que se encolhia atrás do tronco de uma arvore.
- Irmão Samyaza, não torne as coisas mais difíceis do que já são. – Respondeu o tal Miguel.
- Você sabe que não tenho alternativa. A profecia é muito clara. Ele renascerá para reconstruir o mundo.
Samyaza deixa a garotinha de lado e volta sua atenção para Miguel e...
- Sophia, acorde. Sophia!! –
- Não!! Não!! – acordei gritando.
- Acalme-se Sophia, foi só um pesadelo – Helena me abraça e acaricia os meus cabelos. - Ah, Sophia, veja só que loucura. Você está toda molhada de suor.
- Helena, era um pesadelo muito real. Meu Deus! Dois homens lutavam para disputar a vida de uma garotinha. – Apesar de estar muito suada, eu tremia de frio, olhei para a janela aberta e um vento gelado se espalhava pelo quarto. – Por que abriu a janela, Helena?
- Hum? Eu não abri, já estava aberta quando eu entrei. – Ela caminhou até a janela e fechou-a. – Você deve ter se esquecido de fecha-la antes de dormir.
Estranho, pensei. Eu tinha certeza de que a tinha fechado.
- Volte a dormir, minha amiga. Você precisa se recuperar – Helena beijou-me a testa e saiu do quarto
Fiquei um bom tempo fitando a janela, até que adormeci.
Logo pela manhã, Helena saiu para comprar café da manhã e eu fiquei assistindo TV. Mudava constantemente o canal, não conseguindo encontrar algo que me agradasse.
Quando se está perdida, busca-se um ponto de referência para tentar se encontrar. Há quem siga o sol, a lua, a posição das estrelas e até musgos em uma árvore, mas eu não tinha nada para ser o ponto de referencia.
Fui abandonada em um lar adotivo, nunca tive uma família que pudesse me amar e a única pessoa que esteve ao meu lado foi Helena. Encontramo-nos há dois anos, quando ela fez estágio no lar em que eu estava abrigada, fizemos amizade e há um ano moro no apartamento dela. Arrumei um emprego de meio período em uma loja de departamentos, ganho 12 pratas por dia, não é muito, mas dá para ajudar Helena com as despesas.
Não sei nada a respeito de minha família biológica, apenas que uma velha senhora me encontrou vagando por uma rodovia e me levou para um abrigo. A única coisa que carregava comigo era um estranho medalhão de prata. Eu o carrego comigo desde que eu me entendo por gente. Como não sabiam a minha idade, definiram que eu tinha três anos e em meus documentos estabeleceram que minha data de aniversário fosse o dia em que eu fui encontrada, dois de setembro. Já o nome foi escolhido pela assistente Social, que nunca pude ter uma filha e viu em mim a oportunidade de ter uma Sophia.
Nos últimos 6 meses venho tendo uma sequencia de pesadelos terríveis, onde sempre tem alguém tentando me matar ou sendo assassinado por mim. Tenho deixado Helena assustada com meus gritos de desespero, já não sei mais como evitar ter estes sonhos. São muito reais.
Cheguei a visitar um especialista em transtornos do sono, mas nenhuns dos tratamentos fizeram efeito. Acredito que os pesadelos estejam ligados aos abalos emocionais de minha infância.
Talvez seja por isso que não consigo parar de pensar em Lion. Ele não hesitou em me socorrer na noite do assalto, me protegeu, me amparou e depois desapareceu, deixando apenas um bilhete me pedindo para não procurá-lo. E, mesmo que eu quisesse, não poderia tentar encontrá-lo já que ele não me deixou nenhuma pista de onde poderia estar.
Resolvi que sobre o desaparecimento do corpo de Ezequias, não pensaria mais sobre o assunto. Caso fosse encontrado, diria apenas que não sei de nada e que só me lembro de acordar no hospital. Faria exatamente com Lion.
Ah, Lion. Onde você está?
Alguém tocou a campainha do apartamento e, com um pouco de dificuldade, fui até a porta para atender.
- Olá, gostaria de comprar biscoitos? – Perguntou uma jovem escoteira vestida com o uniforme de sua unidade.
- Hã, como o porteiro te deixou entrar? - Era a primeira vez que alguém entrava sem que o porteiro anunciasse.
- Ora, eu moro aqui, moça. Moro na andar de baixo, ali nº 12. Vai querer comprar biscoito? – disse ela entrando sem ser convidada.
- Quanto custa uma caixa? – Gostei da garotinha e quis ajudá-la.
- 2 pratas. – Ela olhou curiosa para a atadura em minha cintura. – O que te aconteceu, moça?
- Fui assaltada e o bandido me cortou, bem aqui. – Fiz um gesto apontando para o local do corte
- Doeu? – ela parecia horrorizada com a ferida.
-Sim, doeu muito – fiz cara de muita dor e ela sorriu. – Me diga, você tem biscoito de aveia? São meus favoritos.
- Tenho sim, moça. – Ela então me entregou uma caixa de biscoitos.
- Princesa, qual é o seu nome? – perguntei, enquanto abria a caixa de biscoitos e um delicioso aroma de aveia e canela preencheu todo o apartamento.
- Gouiva. Muito prazer. – disse ela, estendo a mão.
- Muito prazer, Gouiva. Eu sou a Sophia. – Estendi a mão para segurar a dela. Gouiva sorriu e eu mordi um biscoito, que derreteu em minha boca como manteiga no fogo.
Por alguns instantes o mundo rodou.
- Sophia, você se sente bem? – Ela notou meu momentâneo mal estar.
- Só estou um pouco tonta. – Sentei-me em uma poltrona ao lado da janela e minha respiração ficou fraca. Olhei para Gouiva e via duas delas. – Chame alguém Gouiva, eu... eu... não... estou... Conseguindo respirar.
Por mais que eu tentasse, o ar não chegava aos meus pulmões e eu arfava com muita dificuldade. Meu peito queimava, pedindo desesperadamente por ar e vendo meu desespero, Gouiva saiu correndo gritando socorro.
Um vento gelado entrou pela janela, trazendo a brisa da liberdade, enquanto gotas de chuva caiam lá fora, em um amontoado de água e folhas congelando. Eu podia sentir os fragmentos do meu eu se perderem em um abismo sem retorno.
Eu estava morrendo? Sim, sem ar em meus pulmões, a vida estava se esvaindo.
Mas uma pancada violenta em meu coração, fez com que subitamente o ar chegasse aos meus pulmões e eu respirei aliviada. Cada molécula do meu corpo regozijou-se ao sentir as moléculas de ar correr em minhas veias.
Olhei ao meu redor e me assustei ao notar que estava deitada no banco traseiro de um carro, com as mãos amarradas para trás. Ao meu lado estava sentado um jovem vestindo um, sobretudo de couro, cheio de botões e símbolos estranhos, o cabelo era a coisa mais bizarra que eu já havia visto, raspados nas laterais e proeminentes na parte alta da cabeça, todo pintado de roxo, com fios de cor prata. Havia uma cruz invertida pendurada em seu pescoço, com os olhos contornados de preto e a barba contornava todo o queixo até alcançar as costeletas.
- Bem vinda ao mundo dos vivos, Moça. – Disse ele. – Vou te ajudar a sentar, mas fiquei caladinha, não ouse gritar ou dar qualquer ataque, ok?
Balancei a cabeça em sinal de concordância. Não fazia a menor de ideia de como fui parar naquele carro, senti as lágrimas brotarem em meus olhos. Medo e desespero tomavam conta de mim.
- Oh, não chore, gata. Não tenha medo, só estou te resgatando. – Ele me ajudou a sentar e prendeu o sinto em minha cintura. Meu corte latejou e voltei a sentir dor.
- Você está me sequestrando? Já vou avisando que não tenho dinheiro para resgate. – Como eu não sabia o que estava acontecendo naquele momento, resolvi tentar convencê-lo de que não era nada lucrativo me sequestrar. Sem família e sem dinheiro, comecei uma prece silenciosa.
- Não, que ideia absurda. Só estou te levando pra casa. – Ele enviou as mãos no bolso do sobretudo, olhou-me nos olhos e sorriu. – Você não faz ideia de quem você é, certo?
- Você é louco? Como pode estar me levando para casa se acabou de me tirar do meu apartamento. Eu sei muito bem que eu sou. – Olhei em direção para a porta do carro e tentei calcular como faria para conseguir abri-la e pular. Mas como as mãos presas, tal artimanha estava totalmente impossibilitada.
- Pegue leve com ela, Daniel. – Disse a uma voz infantil vinda do banco da frente, olhei e tive uma grande surpresa, a voz era de Gouiva. – Não se preocupe Sophia, logo você entenderá o que esta acontecendo.
- Gouiva? O que você fez? Meu Deus, você é cumplice do meu sequestro? – Era difícil de acreditar, mas eu havia sido enganada por uma garotinha de dez anos. A infeliz havia me drogado.
- Cale a boca vocês três. – Disse o motorista do automóvel, olhando-me pelo espelho do retrovisor. – Deixem-na descansar, temos muito chão pela frente e não podemos nos dar ao luxo de sermos encontrados por ele. – O motorista usava roupas muito parecidas com a de Daniel. A única diferença era que o motorista tinha o cabelo cumprido até a altura dos ombros.
- Nem brinque com isso. Ele vai nos matar quando souber o que fizemos. – Daniel parecia assustado.
- Não tivemos escolha, os Nefilins estão se levantando contra os Halianos e não podemos adiar as coisas por tanto tempo. A profecia é muito clara. – O motorista tinha uma voz angelical.
- Quem são os Nefilins. – Perguntei, já havia escutado Lion falar este nome.
- Hmm, é complicado de explicar. Quer dizer... Como eu vou te explicar isso? – Daniel parecia confuso. – Martin, eu posso falar pra ela?
O motorista olhou-me pelo retrovisor.
- Ela não vai acreditar, mas siga em frente. Conte, se quiser. – Martin voltou sua atenção para a estrada e Gouiva deu de ombros.
- Sophia, os Nefilins são os mestiços, filhos de humanos com anjos ou humanos com demônios. – Daniel me olhava como se esperasse que eu falasse alguma coisa, mas a loucura que eu acabara de ouvir, me fez sentir vontade de dar muita rizada e assim o fiz. Gargalhei desesperadamente e chorar de forma descontrolada.
- Viu só, eu disse que ela não ia acreditar. – Completou Martin.
- Daniel, sério. Não tinha nada mais criativo para me falar? – Indaguei e voltei a rir. Das muitas coisas que eu poderia esperar que acontecesse em minha vida, nunca cheguei a crer que seria sequestrada por um trio de loucos. O nervoso me fez ter outro ataque de riso de puro terror.
Não sei ao certo quanto tempo viajamos, mas passamos por quatro cidades diferentes, e ninguém falou mais nada durante toda a viagem. Via as pessoas passando por nós, mas era como se nenhuma delas notassem a nossa presença, éramos apenas mais um carro em meio a uma multidão indo e vindo.
Enquanto viajávamos, vi crianças pedindo esmolas, executivos em seus carros de luxo, mães carregando sacolas de compras e correndo atrás de seus filhos, jovens com seus fones de ouvidos, perdidos em seu mundo particular.
Já estava entardecendo e meus companheiros de viagem já davam sinais de cansaço. Resolvi que pediria para ir ao banheiro assim que chegássemos à próxima cidade. Olhei para minha ferida e uma mancha de sangue aparecia por cima da atadura, a dor aumentava gradativamente, olhei para o relógio de Daniel, já passava das dezoito horas, logo anoiteceria. Perfeito, assim seria bem mais fácil para fugir.
Teria sido um plano perfeito, se Martin não tivesse anunciado que estávamos sendo seguidos.
- Merda! Ele nos encontrou. – Martin pisou no acelerador e a força de aceleração jogou meu corpo para trás. Senti medo, não sabia quem era ele, mas o fato de Martin ter acelerado, só podia dizer que corríamos perigo.
Quanto mais corríamos, mais o carro que nos seguia se aproximava, meu coração batia acelerado, a adrenalina percorria por todo o meu corpo. Olhei para a estrada a nossa frente e pude ver algumas luzes, percebi que estávamos nos aproximando de uma cidade.
- Melhor pararmos, Martin. – Sugeriu Gouiva, colocando a mão no braço do motorista. Se ela não tivesse dez anos, diria que era um casal. Ele por sua vez concordou balançando a cabeça.
- Ele vai nos matar, tenho certeza disso. – Daniel parecia apavorado.
- Cara, deveríamos ter falado com ele antes de termos feito isso. – Martin respondeu à Daniel.
- Agora já era. – Gouiva suspirou.
- Quem é ele? – Perguntei sentindo meu coração bater acelerado e a boca ficando seca. Não queria morrer nas mãos dessas pessoas que eu não conhecia. Na verdade eu não queria morrer de nenhuma maneira.
- Você nem imagina. – Martin me respondeu enquanto direcionava o carro para o acostamento. – Daniel, não deixe Sophia sair de dentro deste carro. – Ele então estacionou, virou-se para o lado e olhou-me de maneira muito séria.
- Sophia, ele não sabe que estamos com você. Não faça nada que nos coloque em risco. Falarei com ele e explicarei tudo o que aconteceu. – Ele virou-se para a garotinha ao seu lado – Goui, você vem comigo. – Ela sorriu concordando e ambos saíram de dentro do carro.
Olhei apavorada para Daniel que parecia estar mais apavorado do que eu.
- Daniel, - falei. – Quem é ele, me fale, por favor. Ele vai mesmo nos matar? – Tentei fazer a minha cara de coitada e manter a minha voz o mais meiga possível.
- Matar, ele não vai. Mas, se Martin e Goui não conseguirem convencê-lo de que o que fizemos foi o correto, teremos muitos problemas. – Ele remexia-se de um lado para o outro na tentativa de conseguir enxergar o que o corria do lado de fora do carro. Tudo o que eu conseguia ver era a escuridão, já havia anoitecido e ainda não havíamos conseguido chegar à cidade que eu conseguia ver de longe.
Gouiva colocou o rosto para dentro do carro e ordenou á Daniel.
- Desamarre-a, Dani. Mas não a deixe sair. - Ela voltou para o lado de fora do carro. Notei que ela estava diferente, não parecia mais ter 10 anos, mas estava escuro de mais para que eu pudesse enxergar qualquer coisa com precisão.
- Sophia, vire-se. – Obedeci e virei-me. – Por favor, colabore, ok?
- Ok. – Como não entendia nada do que estava acontecendo, resolvi ficar quietinha e ver como as coisas se desenrolariam e na primeira oportunidade fugiria sem olhar para trás.
Daniel estava em estado de alerta, olhava incessantemente para os lados e para mim. E apesar de não enxergar nada do lado de fora, tive a impressão de que ele conseguia entender os ecos das vozes do lado de fora, pois suas expressões faciais mudavam rapidamente como se estivesse concordando e às vezes discordando de algo.
Eu sentia tanto medo que já nem sentia a dor um minha cintura. O suor escorria em minha testa, não conseguia ouvir nada do que ocorria do lado de fora, olhei para minha atadura e a mancha de sangue havia aumentando absurdamente.
Martin abriu a porta do carro, e mesmo na penumbra pude notar que seu semblante não era dos melhores, um sinal de sangue saía na lateral do lábio superior. Ele havia levado um soco.
- Sophia, venha aqui. Ele quer ver você. – Martin mantinha a porta do carro aberta e fez sinal com a cabeça me indicando que deveria sair. Olhei para Daniel que ergueu uma sobrancelha e também fez sinal para que eu saísse.
Meu corpo estremeceu e a dor voltou mais latente, respirei fundo e saí. Olhei uma ultima vez para Martin, mas este não falou nem fez qualquer gesto que pudesse me desencorajar. Ele então segurou-me pelo braço e me levou em direção ao outro carro, e a silhueta de um homem foi tomando forma.
Foi quando me dei conta de que ele era Lion.
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