Capítulo Três
Alisson sempre se considerou uma pessoa multifuncional. Ele trabalhava no bar restaurante do avô, Barbosa's Bar, desde o dia que aprendera a contar notas de cinquenta, logo, sempre precisou desenvolver uma habilidade que lhe permitisse ter uma jornada dupla. Servia pratos e bebidas e tentava memorizar os principais fatores que desencadearam a Unificação Alemã. Recitava fórmulas de função quadrática enquanto retirava um frango assado da frangueira e contava o troco para clientes mal-educados. E sempre mantinha um olho nas anotações de biologia enquanto lavava os copos.
Hoje não tinha sido diferente. A menos de duas semanas de uma prova de Mecânica dos Sólidos I, ele teve que desenvolver praticamente uma capacidade mutante de contornar a algazarra da roda de samba de aniversário de um bicheiro conhecido na vizinhança para ao menos conseguir entender o gabarito de uma questão de torção com extensômetros. E o que isso havia lhe custado¿ Uma dor de cabeça terrível, câimbra no punho de tanto anotar pedidos e tornozelos inchados por correr da cozinha para as mesas incessáveis vezes.
Agora, pouco mais de dez da noite ele finalmente fazia sua parte favorita do expediente: guardava as mesas, cadeiras e se preparava para fechar. Sua mãe, Felícia, contava o troco, enquanto seu padrasto, Edgar, o ajudava encaixotando garrafas vazias de cerveja em um engradado no canto do salão principal. A atmosfera cheirava à fritura de torresmo e cigarro, com uma leve pitada de desinfetante de pinho sol. Sua avó, Verena, acabava de sair do banheiro carregando uma trolha de baldes e produtos de limpeza.
_ Eu queria entender porque vocês homens não conseguem mirar e acertar a porcaria do vaso! _ Disse ela, irritada e enxugando o suor da testa.
Alisson riu. _ Você só sabe reclamar, mulher. _ Seu avô, Laerte, retrucou, carregando uma bandeja com sobras de churrasco. _ Pagando bem, deixo até que mijem na minha boca.
_ Se você não sabe nem pegar numa vassoura, não tem moral para falar nada. Mal vejo a hora do meu neto doutor me tirar dessa vida.
Verena disse, lançando a Alisson um sorriso.
_ Na semana passada, recebi a notícia que o filho de um amigo meu que serviu no Exército comigo passou no concurso da Polícia Federal. Seis mil de salário. _ Disse Edgar, guardando placas com preços de litrão da Antárctica. _ Sempre falo pro Alisson para fazer essa prova, ele consegue passar com uma mão nas costas.
_ Nada disso! Meu neto vai ser capitão de Marinha! _ Respondeu Laerte. _ Deus não vai me deixar morrer vendo meu neto servindo em botequim pelo resto da vida, e sim fardado!
Alisson deu um sorriso de canto de boca. Desde pequeno, ele sempre dissera que daria uma vida farta e confortável à família assim que crescesse. Ele sabia que devia isso a eles. Sua mãe lhe criara sozinho durante anos até se casar novamente quando ele tinha treze anos, e seus avós o ajudaram mais do que tudo. Além do mais, todos na casa haviam lhe dado muito amor desde que tinha se assumido no início daquele ano (o que quase todos disseram que era melhor ser isso do que entrar para a vida do crime como a maioria dos outros garotos no bairro. Ah, e nada de se tornar drag queen também... isso já era demais!).
Deixá-los continuar em um ritmo exaustivo de trabalho para sempre estava fora de cogitação. No entanto, cada membro de sua família tinha uma ideia para alcançar a estabilidade financeira. Militarismo. Provas de concurso para polícia federal e tribunais. Ele se lembrava o quanto sua mãe, inclusive, ficara um pouco abalada por ter desistido da ideia de ser médico e sim engenheiro. Aparentemente, para ela, apenas medicina e futebol eram carreiras de sucesso. E Alisson nunca tivera um joelho bom para correr.
E é lógico que ele tinha planos para o futuro. Ele tinha mantido seu coeficiente de rendimento acima de 7 desde o primeiro período para conseguir concorrer a uma bolsa de intercâmbio na Universidade do Porto. Depois de se formar, ele tentaria uma bolsa de Mestrado em Engenharia Aeronáutica na Universidade de São Paulo. Alisson queria ser um pesquisador e professor. Já estava cansado de ver cadeiras de docência sendo ocupadas por pessoas que não eram nem um pouco parecidos com ele, e quando dizia parecidos, queria dizer nem negros ou pobres. Ele mal podia esperar a hora disso acontecer. Embora, uma fração sua não se sentisse bom o suficiente para alcançar tantas coisas boas um dia. No fundo, ele sentia medo de que seu destino fosse ser um garoto da Baixada Fluminense para sempre.
Ele olhou de relance para ver o que a televisão do bar emitia. Estava ligado na Record (o canal favorito do vovô) em um noticiário que comentava sobre o primeiro mês da morte de Caetano Guimarães, o menino cujo cadáver tinha sido encontrado no jardim do prédio de sua faculdade. A polícia ainda não tinha nenhuma resposta de quem era o assassino. Como sempre, eles emitiam o mesmo vídeo do pai do garoto clamando por justiça. O coração de Alisson sempre ficava apertado ao ver um senhor viúvo e que acabara de perder o filho inconsolável, clamando pelo seu direito como pai de saber a verdade.
O menino colocou a mão no bolso do jeans, e pegou seu celular da Motorola. Abriu no WhatsApp, e seguiu em direção à aba de conversas arquivadas. A última mensagem enviada a ele por Caetano continuava lá. E possivelmente suas últimas palavras também.
_... não acha, filho¿_ Só então, Alisson se tocou que sua mãe tinha lhe feito uma pergunta. Ela tinha a mesma coloração de pele negra com o filho, cabelos negros curtos, cacheados e pretos. Seus olhos castanhos estavam arqueados, a espera de uma resposta.
_ Claro, mãe. Podemos ver isso. _ Mesmo não tendo a menor ideia do que ela tinha dito, essas duas frases sempre eram suficientes para que ela se contentasse e não fizesse mais perguntas. Ele teria tempo de descobrir o que ela tinha dito depois.
_ Bom, já estou quase fechando o caixa. Pode ir subindo pra casa. Aproveita e veja se o seu irmão ainda está dormindo. _ Disse ela.
_ Tudo bem. _ Alisson começou a retirar seu avental, e estava prestes a caminhar em direção à sua mãe para dar-lhe um beijo de boa noite.
Foi então que ele avistou a figura de um homem engravatado na entrada do bar. Seu cabelo era grisalho, e parecia penteado para trás com um daqueles pentes de mãos redondos. Pálido, magro e com dedos longos e ossudos, Alisson não sabia dizer se tinha saído de uma pintura da Era Vitoriana ou de um filme medonho do Tim Burton. Era quase como uma árvore humana petrificada saída de uma floresta escura e com muito muita neve.
_ Boa noite. _ Sua voz era rouca, e ao se aproximar, Alisson sentira o cheiro enjoativo de leite de rosas.
_ Já estamos fechando, amigo. _ Alertou-lhe Edgar.
_ Não vim como cliente. Queria ter uma conversa com o proprietário do estabelecimento. Tentei vir mais cedo, porém, o bar parecia lotado e vocês todos muito ocupados para que pudéssemos ter um diálogo sério. Aproveitei que estava por perto em um jantar de e decidi dar uma passada por aqui, supondo que já estavam prestes a fechar.
_ E quem é o senhor¿_ Felícia perguntou.
_ Me chamo Horácio Villela. Sou advogado da Secretaria Municipal. Depois de muitas advertências, tive que vir aqui lhes avisar pessoalmente que esse estabelecimento está sendo processado por sonegação fiscal.
Alisson formou um "o" com a boca. Todos de sua família ficaram em silêncio por um momento.
_ A-Alisson. Sobe para casa. Já estou indo. _ Ordenou sua mãe. Seu olhar dizia "vá-embora-e-se-me-desobedecer-eu-quebro-sua-coluna-com-a-raiva-que-estou".
Ele assentiu com a cabeça, pediu licença, e atravessou o salão caminhando em direção às escadas. Quando tinha certeza que ninguém mais o via, ele agachou-se e encostou seu corpo contra à parede de cimento pintada de branco, e repleta de rachaduras e infiltrações. Alisson queria ouvir o que estava acontecendo.
_ Como assim sonegação de impostos¿_ Indagou Felícia, ajeitando seu cabelo de um modo que sempre fazia quando estava nervosa. _ Eu mesma faço a contabilidade do bar, Seu Horácio, e posso te garantir que pagamos tudo em dia.
_ Eu sabia que poderiam dizer isso, por isso trouxe provas que comprovam o que digo. Tudo isso data desde seis meses atrás. _ Disse ele, retirando uma dúzia de papeis de sua pasta de couro marrom, e entregando à mãe de Alisson. _ É uma lista grande de impostos atrasados como podem ver, cujas multas acumuladas beiram à faixa de 40 mil reais. R$ 39.278,94 para ser mais exato.
O queixo de Felícia caiu.
_ Todos os meses damos o dinheiro contadinho para meu sogro ir pagar. Deve haver algum erro. _ Edgar massageava as têmporas. _ A menos que...
Felícia, Edgar e Verena ao mesmo tempo lançaram um olhar atônito a Laerte. Só agora, Alisson havia reparado que seu avô estava mais pálido do que ele jamais tinha visto, e engolia em seco. Ele precisou puxar uma cadeira dobrável e se sentar, respirando pesadamente.
_ Você voltou a jogar, não voltou, Laerte¿ _ Acusou Verena. Sua raiva era tanta, que uma veia de seu pescoço gorducho se sobressaltava.
_ F-foram só algumas vezes, eu juro. _ Disse ele, com os olhos cheios de lágrimas.
_ Pai, você prometeu que nunca mais ia voltar a fazer isso! _ Exclamou Felícia.
_ Eu sei, minha filha, eu sei! Mas eu juro que pensei que ia ter como pagarmos tudo de volta. O bar estava lucrando tão bem nesses últimos dias. Recebi umas duas advertências pelo correio, mas escondi todas porque pelas minhas contas íamos conseguir abater tudo até o mês que vem.
_ Você é um doente! _ Verena começou a estapeá-lo no braço e na cara. Edgar teve que apartá-la.
_ Lamento por essa situação inconveniente. Podemos lhes dar um prazo de até vinte dias para o pagamento valor total. Ou então, teremos que lhes tomar o estabelecimento. Incluindo a casa.
_ O quê¿ Vão nos despejar também¿! _ Perguntou Felícia.
_ Eu sinto muito. Temos comprovações de que os impostos da casa também estão atrasados e, por estar acoplada acima do bar, torna tudo isso bem mais difícil. Vocês têm vinte dias para realizarem o pagamento.
Dizendo isso, Horácio desejou boa noite aos familiares de Alisson, e foi embora dirigindo um Honda Civic preto. Verena explodiu em choro.
_ Eu vou consertar isso! Eu juro! Vou vender o carro amanhã mesmo! _ Disse seu avô.
_ A droga da sua lata velha não pagaria nem o caralho de um azulejo daqui! Seu imundo, doente! Como você voltou a jogar¿ Nem jogar pra ganhar pelo menos você serviu! _ Exclamou Verena.
_Dona Verena, se acalma. _ Edgar estendeu a ela um copo de água.
_ E por favor, fale mais baixo. _ Pediu Felícia. _ Não quero que os meninos escutem lá em cima. Vou mexer em umas economia, e vamos tentar dar um jeito de pagar tudo direitinho, e a partir de hoje quem vai para o banco pagar as contas sou eu. Não quero que Alisson descubra. Isso só vai deixa-lo mais preocupado, e a faculdade já o deixa numa pilha de nervos. Eu o conheço, ele vai querer trancar o período para nos ajudar se descobrir. Vamos dar um jeito.
A partir daí, a conversa entre eles tornou-se baixa demais para que Alisson conseguisse ouvir. Ele começou a subir as escadas lentamente, e ao chegar na sua casa no segundo andar ele só teve vontade de ajoelhar-se no chão e chorar. Ele corria mesmo o risco de ser despejado da casa que ele cresceu a vida toda.
Ele se lembrou das histórias que seu avô contava de quando tinha aberto o bar: no início dos anos 70, junto com seu irmão mais novo, depois que se mudaram de Pernambuco. Dois anos depois, ele conheceu sua avó e se casou quando ela engravidou de sua mãe, a filha mais velha. Seu tio avô se mudara para Araruama com uma mulher de origem cigana que costumava cantar no estabelecimento algumas vezes, e ele começou a administrar tudo sozinho.
Alisson teria que dizer adeus ao cheiro de lavanda das cortinas floridas de sua avó. Das marcas na parede em que sua mãe fazia medidas da altura dele e de seu irmão, e que se somavam a algumas crostas de mofo. Seus olhos repousaram no porta retratos da foto que ele tirara com sua mãe aos seis anos, em frente ao Colégio Pedro II de São Cristóvão, no dia em que ele tinha passado no sorteio para ingressar na instituição. Depois, na poltrona velha em que pertencia ao seu bisavô. Ele morreu quando Alisson ainda era muito pequeno, mas ele tinha vagas memórias de que, na época em que o mesmo tinha Alzheimer, de achar que ainda era uma criança que ia todos os dias brincar em uma praia de areia branquinha no Cabo Verde, país onde sua família se originou. Por um minuto ele pensou que até mesmo as coisas mais dolorosas dali o fariam falta.
Alisson sabia que seu avô tinha problemas com jogo. Por mais que sua família tentasse escondê-lo muita coisa, ele sempre teve uma audição muito aguçada. Ele se lembrava de crescer ouvindo histórias de que ele sempre perdia mais do que ganhava (ou não ganhava praticamente nada) em cassinos clandestinos. Uma vez ficou devendo a um agiota, e sua mãe teve que ajudar a pagar, sacrificando o dinheiro que tinha economizado para pagar a matrícula na faculdade de Direito. Ele se lembrava dela chorando muito por isso.
_ Alisson¿_ Ele ouviu uma voz vinda do corredor. Era seu irmão, Fernando, ou apenas Nandinho, de apenas cinco anos.
Ele era fruto da união de sua mãe com o padrasto, e possuía os mesmos traços do pai: pele branca, cabelos negros desgrenhados, um nariz arrebitado e olhinhos castanhos aveludados.
_ Eu não consigo dormir. Tive pesadelo. _ Disse ele, passando a língua no buraco dos dois dentes da frente que faltavam.
Alisson suspirou, massageando o próprio pescoço.
_ Vamos, eu deito com você, tá¿
Ele acompanhou o irmão mais novo até a cama de molas, que ficava no mesmo quarto que o dele. Mesmo depois que se deitaram juntos, Alisson esqueceu que estava exausto. Agora ele só conseguia pensar em como sua família se livraria dessa dívida. Quase quarenta mil reais. Em vinte dias, seria praticamente impossível. Ele sentiu seus dedos acariciando o rosto de seu irmão. Um ser inocente, com um pijaminha branco de seda. Ele não podia deixar que alguém tão novo passasse por algo tão traumático como um despejo. Simplesmente não podia.
No entanto, ele não sabia como ajudar. Estava impotente. Fraco. No fim das contas, ele era mesmo apenas um pobre menino da Baixada Fluminense.
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