Capítulo Seis
BMW azul marinho recém saído da retífica. Dois meses antes, ele descobriu da pior maneira possível o que acontece se acaba misturando cogumelos com poppers. Após sair de um bar na Lapa com Caetano e seus amigos da faculdade para comemorar seu aniversário, ele fez a proeza de não girar o volante o suficiente e acabar acertando em cheio um poste, derrubando um de seus retrovisores e arranhando bruscamente sua lateral. Passada a dor do impacto do volante contra seu peito, Gustavo só soube rir. Talvez fossem as drogas que ainda tomavam conta de seu cérebro ou por ver a palidez no rosto de seu namorado, que fazia uma expressão muito engraçada pra ele quando estava assustado.
_ Amor, você tá bem¿_ Perguntou ele, procurando por feridas em seu rosto. Sua testa suando brilhava, exaltando sua pele que já era oleosa.
_ Meu pai vai ficar muito puto! _ Gustavo saíra do transe das risadas e só então aterrissou no mar de problemas que acabara de se enfiar. Seu pai tinha lhe dado aquele carro de presente, que pertencia a ele antes de adquirir uma nova Mercedes. Apesar de usado, ainda tinha uma aparência muito bem conversada e cuidada. Ele ficaria furioso. _ Ele não vai acreditar que bati por acidente, vai saber que eu não tô limpo de novo. Eu não posso deixar que ele descubra que eu voltei a usar, eu não posso!
_ Se acalma! _ Disse Caetano. Ele estava com um arranhão leve na bochecha (que não teria acontecido se ele tivesse colocado o cinto de segurança como Gustavo sugerira desde o início). _ Vamos sair daqui, e estacionamos o carro em alguma rua por aí. Amanhã de manhã ligamos pra polícia e dizemos que você foi roubado, tá bom¿ Seus pais vão acreditar em nós.
Na hora, o plano não pareceu fazer muito sentido, porém tendo em vista que 1) seus neurônios ainda estavam muito chapados e 2) ele estava nervoso demais para sugerir uma saída melhor, Gustavo concordou. Na manhã seguinte, eles relataram um roubo. Na outra semana, o carro foi encontrado... completamente destruído. Janelas, faróis, lataria... tudo estava violentamente vandalizado, como se em vez de um simples poste ele tivesse batido em uma enorme muralha. Até aquele momento os vândalos não tinham sido descobertos, porém, ele não pôde deixar de admitir que aquilo tudo tornou sua história bem mais convincente. Seu pai pagou pelo conserto, e apenas agradeceu por nada ter acontecido com seu filho, que voltou a usar o HB20 antigo. No entanto, pouco tempo depois disso acontecer, houve todo o incidente com Caetano e Gustavo só conseguiu se lembrar de buscar o carro naquele dia. Na verdade, ele apenas quis uma boa desculpa para poder faltar sua aula de Arquitetura de Computadores.
Sua casa ficava mais para o fim da rua, revestida de tijolos laranjas e janelas largas e brancas, cercada por um extenso quintal com palmeiras. Quando era pequeno, ele tinha ouvido uma história de que aquela casa datava desde o período colonial, e pertencera um dia a um barão que adorava maltratar e torturar seus escravos. Algumas pessoas da vizinhança diziam que ainda era possível ouvir o fantasma deles à noite gritando e implorando por misericórdia. Ele tinha vagas lembranças de acordar muitas vezes de madrugada chorando de medo, e pedindo para dormir na cama de seus pais. Hoje em dia, fantasmas eram as últimas coisas que lhes davam medo.
A mãe de Gustavo, Ivana Calazans, era uma renomada design de interiores, o que significava que de tempos em tempos sua casa era redesenhada para uma decoração diferente. No momento, sua sala de estar era revestida por papeis de paredes arabescos, com quadros do Portinari distribuídos ao redor do cômodo. Assim que entrava, ele se deparava com uma mesa de jantar redonda, concêntrica à um lustre de cristal e rodeada por cadeiras altas estofadas detalhadas em dourado. Três meses antes, foi a era dos móveis em mogno e estatuetas de terracota. A julgar pelo seu blazer roxo de trabalho, e os óculos que ela usava apenas para ler plantas arquitetônicas, ele julgou que ela acabara de atender clientes.
Quando se aproximou, Gustavo reparou que repousando em uma das plantas estava uma foto, a qual ela encarava. Na foto, ela estava abraçada com um menino na casa dos quinze anos usando um kimono de judô azul e usando o troféu de um campeonato. O garoto era muito parecido com o Gustavo. Mesmo corte de cabelo, e formato de nariz. Os olhos, no entanto, eram da cor castanho de seu pai. Era o irmão de Gustavo na foto. Bernardo.
_ Oi, filho. Chegou cedo da faculdade hoje. _ Disse ela, tentando enxugar as lágrimas de seu rosto sem que Gustavo reparasse, sem sucesso. Como sempre, ela arqueava os olhos verdes profundos (que ele herdara dela) sempre que sorria. Seus cabelos eram grisalhos e arrumados em um corte estilo Joãozinho.
Gustavo olhou de soslaio o calendário disposto na cozinha. Dezoito de outubro. Hoje era o nono aniversário do suicídio de seu irmão.
_ No que está trabalhando hoje¿ _ Perguntou ele.
_ Ah, eu ainda há pouco atendi um casal que vai reformar a casa para receber o filho que está voltando de um intercâmbio no Canadá. Geralmente, eu sempre acabo querendo saber um pouco mais sobre a vida dos clientes, e quando eles me disseram que o menino tinha a mesma idade que o seu irmão tinha quando... quando...
Ela se desabou a chorar. Gustavo envolveu-a com os braços. Ainda era extremamente difícil para ele e sua família tocar no assunto, e ainda mais entender o que aconteceu. Ele só tinha onze anos na época, e seu irmão dezesseis. Talvez fossem as drogas destruindo seus neurônios, mas ele tinha pouquíssimas lembranças. Apenas lembrava de chegar da escola, e ter duas ambulâncias estacionadas na porta de sua casa. Seu pai foi o primeiro familiar que o menino encontrou, e ele nunca foi um homem de eufemismos. Ele simplesmente disse "Seu irmão tomou muitos comprimidos e se matou". Fria e secamente, e com os olhos inchados e vermelhos.
_ Também não está sendo nada fácil pra mim. Especialmente esse ano. _ Disse ele, apoiando o nariz na cabeça da mãe.
_ Eu já conversei com muitos grupos de mães, e todas elas disseram que mesmo com o passar dos anos, nunca fica mais fácil. E torci tanto para que elas estivessem erradas, mas é verdade. Nunca conseguirei superar.
Ela se afastou por um momento, para se recompor. Sua maquiagem estava totalmente borrada, e ele conseguia sentir o quanto ela estava irritada por isso. Ivana se dirigiu à cozinha, e abriu o armário para pegar preparativos de um chá de camomila.
_ Ai, que falta me faz a Solange, ela preparava um chá como ninguém. Não consigo até hoje acreditar que ela tentou roubar um dos talheres de prata que sua avó me deu de casamento.
_ Pois é... não dá para confiar em mais ninguém hoje em dia. _ Disse Gustavo, começando a suar frio. Ele sempre ficava nervoso quando o nome da antiga empregada deles vinha à tona.
_ Filho, você ainda não me respondeu. Largou cedo da faculdade¿ _ Ela insistiu.
_ Meu professor cancelou a aula de hoje, e eu decidi dar um pulo na retífica pra buscar o BMW. _ Ele mentiu. _ Está novinho em folha.
_ E você não irá usá-lo até parar de ser um mentiroso. _ Uma voz grave ecoou do outro lado da sala. Seu pai, Nelson Calazans, vestia um paletó de linho preto com a gravata vermelha que sua mãe lhe dera no último aniversário de casamento, o mesmo visual de promotor de justiça de sempre.
_ Do que está falando¿ _ Perguntou Ivana, franzindo o cenho.
_ É isso que você ouviu. Seu filho está mentindo para matar aula... de novo. _ Ele continuou, apoiando sua pasta, próxima à estatueta de elefante indiano na mesa de centro. O sol vindo da janela, fazia sua cabeça calva reluzir. _ Eu tomei a liberdade de pegar o telefone e o e-mail de cada professor do Gustavo desse período, a última coisa que eu esperava ter que fazer com ele estando na faculdade. Enfim, todos eles disseram a mesma coisa: Gustavo está matando várias aulas e até agora não entregou nenhum trabalho extra que lhe foi passado. Se continuar assim, reprovará todas as matérias do período.
_ Gugu, isso é verdade¿ _ Perguntou Ivana.
_ Eu... eu só...ainda não tô preparado para voltar à rotina normal. Vocês têm que entender que ainda está sendo muito difícil pra mim! _ Ele respondeu, os olhos enchendo de lágrimas novamente.
_ E quanto tempo mais você vai precisar¿ E todos os planos que nós temos pra você¿ Pro seu futuro¿ E mesmo que esteja passando por um mau momento, isso te dá desculpa para mentir para sua mãe e eu¿ O que me remete à última pergunta: O que você tem feito nesse tempo todo em que disse estar indo para a faculdade¿
Gustavo sentiu que estava prestes a desmaiar. Ele sabia exatamente para onde aquela conversa os levaria.
_ Filho, por favor não me diga que você voltou a usar...¿
_ Claro que não! _ Ele interrompeu sua mãe antes que terminasse a frase. _ Eu estou totalmente limpo há anos! Desde o dia que saí da reabilitação, não coloquei mais nada no meu corpo. Eu juro!
_ "Eu juro, juro, juro e juro!". Eu queria muito que sua palavra valesse de alguma coisa, meu filho. _ Nelson massageava as têmporas. _ Desde que você teve aquela overdose há quatro anos, eu nunca mais consegui ter uma noite de sono em paz! Seu coração literalmente parou de bater! Fico o tempo inteiro pensando que você pode estar se destruindo de novo. Eu já perdi um filho pra essas drogas malditas e não vou perder outro! Qualquer deslize seu, e você vai voltar direto para a clínica! Estamos conversados¿
_ Nelson, não precisa ser tão severo. _ Repreendeu-o Ivana.
_ Ah, não¿ Você acha que falando doce e angelicalmente igual a você ele chegará a algum lugar¿ E tem mais uma coisa: até parar de mentir e suas notas voltarem ao normal, você não anda mais de carro! Pegará um ônibus como a maioria dos seus colegas. Não quer ser tratado feito um garoto¿ Eu vou te tratar feito um garoto! Suba, pegue suas coisas e vá correr atrás de algo pra sua vida!
Gustavo subiu às escadas obedientemente, com a cabeça cabisbaixa, o rosto aquecido pelas lágrimas quentes. Enquanto subia, ele ouvia os murmúrios da discussão começava a nascer entre seu pai e sua mãe (que discordavam da maneira como ele deveria ser tratado), que, conforme o percebiam se afastar começou a ficar mais e mais calorosa. Ele tinha lembranças de crescer ouvindo essas mesmas brigas junto com Bernardo, quando ainda era vivo.
"Não se preocupe, sei de algo que vai te fazer se sentir melhor", ele dizia, puxando-o para o próprio quarto. Bernardo retirava alguns cobertores velhos no fundo de seu armário e em menos de cinco minutos eles tinham um acampamento de lençóis improvisados. Os dois ficavam acordados assistindo a desenhos animados em canais como o Cartoon Network e Nickelondeon. Quando o relógio dava meia noite, ambos contavam um ao outro histórias de terror. Gustavo não tinha tempo para sentir medo, pois sempre acabava dormindo antes que ele terminasse a primeira história. E em todo esse momento com o irmão mais velho, ele esquecia completamente que a Terceira Guerra Mundial estourava no andar abaixo. Uma pena ele não ter notado que ao passo em que o confortava, seu herói sempre esteve enfrentando um grave caso de depressão que o levou a ter o fim que teve.
Agora, ao adentrar em seu quarto, Gustavo já não era recebido com comida não saudável e um acampamento de lençóis. Apenas o vazio em seu quarto com a mesma decoração de espaço sideral de quando ele tinha dez anos. Ele desabou sobre a cama. Certamente, se estivesse vivo, Bernardo saberia dizer exatamente as coisas certas para defende-lo e acalmá-lo.
Porém, aquela não era sua realidade. Sua realidade consistia em ter todas as pessoas que ele amava ceifadas de um jeito cruel. Ele jamais perdoaria Deus, o Universo, ou qualquer coisa que existisse de tirar tudo dele. Primeiro foi o Bernardo. E agora, Caetano Logo depois da morte do irmão, Gustavo voltara à ter crises de ansiedade e de pânico, tal coisa que não vinha tendo desde muito novinho. E, com isso, ele voltou à frequentar terapeutas e mais terapeutas, psiquiatras e mais psiquiatras por tempo suficiente para só conseguir se acalmar na base de ansiolíticos. E é claro que seu corpo não aceitou bem quando os médicos disseram que ele deveria diminuir a dose deles. Foi então que ele recorreu a comprar sem receita de alguns garotos de sua escola. E ele não parou somente nessas drogas. Gustavo sentia a necessidade de expulsar toda a dor de seu corpo, como se fosse um enorme demônio que tomava posse de cada célula sua. E apenas os remédios e drogas sintéticas o deixavam sentir o mais perto da paz que ele jamais sentira. Quando não tinha dinheiro, roubava algum utensílio valioso em sua casa, como uma joia de sua mãe ou um relógio de seu pai. Em alguns casos, bastou apenas bater uma punheta ou chupar um cara que estava tudo certo. Em um dia, no entanto, ele exagerou na dose de Xanax na festa de dezesseis anos de uma amiga do Ensino Médio e teve uma parada cardíaca. Desesperados para que não tivesse o mesmo fim que seu irmão, seus pais o mandaram para um clínica de reabilitação. Os piores três meses de sua vida que se resumiram apenas à crises de abstinência e comer alimentos com gosto de privada. No entanto, ele fez o que foi preciso para que o tirassem de lá o quanto antes. Inclusive prometer que nunca mais usaria nada de novo, o que ele não cumpriu. Entretanto, agora ele sabia de seus limites, e jamais cometeria o deslize de ter uma overdose novamente. E sim, ele tinha aumentado bem mais o consumo nas últimas semanas, mas caramba: seu namorado foi assassinado! Era demais para a cabeça dele lidar. E ainda ter que ser forçado a voltar para a "vida real", onde ninguém dava a mínima pelo fato do garoto que ele amava ter morrido em um lugar em que deveria estar seguro. Vítima de um crime de ódio. Foda-se a faculdade!
Quando viu no Moovit que o próximo ônibus para o Fundão passaria dali a vinte minutos, ele decidiu dar uma conferida em algo no seu Mac Book. Primeiro, ele vasculhou o sistema da delegacia responsável pelo caso de Caetano em busca de alguma nova informação. As pastas de depoimentos, inquéritos e autópsia não possuíam nenhuma nova atualização. O mesmo no sistema do computador de seu pai (que ele também hackeou), que ele sabia ter acesso ao caso por meio de outros promotores conhecidos. Os dias passavam e nada de Gustavo ter uma resposta.
Gustavo pegou os três últimos ansiolíticos que usaria para passar o dia, escondidos no fundo falso de sua escrivaninha, e assim que caminhou em direção à sua mochila, ele reparou que ela já estava aberta. Dentro, além de seus cadernos a cor amarela de um envelope lhe chamou a atenção. Havia muito dinheiro naquele envelope. Ele deu uma contada rápida nas inúmeras notas de cem e cinquenta e totalizou cerca de vinte e cinco mil reais ali. Como isso tinha parado em sua mochila¿
O dinheiro, no entanto, não era a única coisa no envelope. Ele se deu conta de que havia fotos. Fotos dele no envelope. Ao pegá-las, sua respiração começou a ficar pesada. Eram as fotos dele na semana anterior, comprando drogas na faculdade com Luno. O Apple Watch de seu pai, que usara para pagá-lo estava bem visível. Se mais cedo seu pai ou sua mãe decidissem bisbilhotar sua mochila (como já fizeram mais de uma vez para ver se escondia alguma droga) eles teriam visto aquilo e sua vida iria por água abaixo. Na última foto, ele reparou que havia uma mensagem colada atrás, com letras recortadas de jornais e revistas.
QUER EVITAR VOLTAR PARA A CAMISA DE FORÇA? É SÓ FICAR DE BICO FECHADO SOBRE ESSE DINHEIRO!
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