Capítulo Dois
No fim da manhã da sexta-feira, no Centro de Tecnologia, Gustavo caminhou a passos largos em direção ao mural de notícias do bloco H, de modo tão rápido que fazia o capuz de seu moletom da Engenharia de Computação e Informação chicotear suas escápulas. A essa hora da tarde, o cheiro de marmitas e quentinhas variadas de pessoas dispostas nas cadeiras vermelhas de plástico do lado de fora do corredor, preparando-se para almoçar, serpenteava na atmosfera.
_ Posso saber o que estão fazendo¿_ Ele tentou fazer com que sua voz soasse o menos agressiva possível.
Uma menina com os cabelos crespos armados em tranças boxeadoras o fitou e fez um "o" com a boca. Gustavo reparou que a mesma utilizava uma camisa cinza da Liga de Investimentos.
_ Estamos colando o cartaz anunciando o processo seletivo para a Stocks Club, a Liga de Investimentos que fazemos parte. _ A menina respondeu com um sorriso, revelando que usava um aparelho móvel. _ Gostaria de se inscr....¿
_ Eu quis dizer por que vocês estão tirando isso do mural¿_ Gustavo apontou para a mão do menino loiro, o qual vestia a mesma blusa polo e que a acompanhava. Ele segurava um cartaz anunciando o desaparecimento de Caetano.
Gustavo reconheceria aquele anúncio em qualquer lugar, até porque ele mesmo que fez e imprimiu. Centenas deles. Na foto, s eu namorado sorria e usava uma blusa de sua girl band de K-Pop favorita, Loona.
_ Ah, isso¿_ O garoto perguntou, franzindo o cenho. _ O mural estava com pouco espaço, e não vimos mal em arrancar esse cartaz já que o menino da foto, bem... você sabe...
Ele fez um gesto com um dos dedos indicadores passando em torno de sua garganta para sinalizar o que Gustavo relutava em acreditar nesse último mês inteiro.
Que Caetano estava morto.
Ele cerrou os punhos e contou até dez mentalmente, ainda que cada um de seus trilhões de neurônios estivessem a ponto de lançar uma injeção de adrenalina para seus braços e pernas que o fariam saltar em direção ao casal de blusa polo e feia e quebrar, um a um, os ossos de ambos.
_ Eu sei que não fizeram por mal, mas..._ Ele iniciou, engolindo em seco. _ Eu agradeceria muito se vocês não tirassem esse cartaz. Por que não tiram algum outro¿
_ Reinaldo, acho que sei quem é ele. É o namorado do menino que morreu. _ A garota com tranças pensou ter sussurrado ao menino loiro, porém Gustavo ouvira tudo. _ Amigo, eu respeito o seu luto, mas todos os outros cartazes são de processos seletivos e editais de intercâmbio ainda vigentes, e notas de provas. O cartaz do Caetano é o único que não está exercendo uma utilidade.
_ Está dizendo que colar os cartazes foi inútil¿ _ Gustavo começou a cerrar os dentes.
_ Ela só tá dizendo de que não há mais necessidade de ter esses cartazes por aí agora. O corpo dele foi achado. _ Retrucou o loiro.
_ E você acha que eu não sei¿! _ Gustavo elevou o tom de voz. Pessoas começaram a encará-lo. _ Eu estava nesse dia! Vi o corpo dele ensacado! Chorei junto com o pai dele no funeral! Eu coloquei esse cartaz no mural, e ele só vai sair quando eu quiser que saia! Então vocês dois filhos da puta tirem as patas desse cartaz!
Gustavo, então, arrancou com força o cartaz da mão de Reinaldo. Em seguida, tirou o cartaz do processo seletivo da Liga de Investimentos da mão da garota de tranças, amassou e arremessou ao mirar na cesta de lixo mais próxima. Acertou na cesta verde de coleta seletiva a três metros de distância.
_Ou! _ Gustavo só teve tempo de ver o menino loiro com o rosto em cólera vindo em sua direção e tudo que se seguiu foi muito rápido.
A injeção de adrenalina em seus braços dessa vez não hesitou, e ele sentiu estar empurrando alguma coisa que não era Reinaldo pois o mesmos e encontrava de pé, e agora com uma expressão atônita. Sua amiga entrou na frente dos dois para apartar a suposta briga, e acabou sendo empurrada com força em direção ao chão, caindo de bunda e soltando um gemido rouco.
Os murmúrios no corredor ficaram mais altos, e um número maior de pessoas se aproximou. Gustavo sentiu a pressão dos dedos de Reinaldo enroscando e puxando seu moletom com força. Outra pessoa chegou para afastá-lo.
_ Parou! Parou! _ Exclamou Giovanni Bravo, seu professor e orientador. Apesar de estar na casa dos quarenta anos, ele era um homem que parecia estar bem conservado pelo tempo, com olhos azuis penetrantes e cabelos negros ondulados com pouquíssimos fios grisalhos saindo da raiz. Seu visual, como sempre, consistia em um blusão social xadrez, sempre com dois botões desabotoados que revelavam o pelo em seu peito (um detalhe que Gustavo não deixava de achar sexy). _ O que está havendo¿
_ Esse lunático nos xingou e depois empurrou a Érica! _ Respondeu Reinaldo, furiosamente. _ Só queríamos pendurar um bendito cartaz.
_ Você está bem¿ _ Giovanni perguntou à garota, que agora Gustavo sabia que se chamava Érica.
_ Sim. _ Erica respondeu, apoiando-se nos braços do amigo para se levantar. _ Vamos embora, Reinaldo. Penduramos isso depois. Tô cheia de vergonha.
Os casal da Liga de Investimentos seguiu em direção para fora do bloco H, esquivando-se da fileira de curiosos que se estendia por todo o corredor.
_ Ok, o espetáculo aqui acabou, galera! _ Exclamou Giovanni, dispersando-o. _ Você. Vem pra minha sala agora. Precisamos conversar.
Gustavo tentou ignorar os olhares estranhos que lançavam a ele. Dobrando o cartaz com a foto de Caetano, o empurrando-o para dentro do bolso de seu moletom, ele subiu as escadas junto de seu professor em direção ao terceiro andar.
***
Como um bom virginiano, a organização impecável da sala de Giovanni sempre alegrava os olhos de Gustavo. Os livros eram organizados por cores, das mais frias às mais quentes. Sua coleção de lápis, de diferentes grafites, eram dispostos enfileirados com as pontas emborrachadas armadas milimetricamente colineares. Post its amarelos, com lembretes de diferentes afazeres preenchiam o mural, seguindo uma ordem sistemática de prioridades e cronologia e marcados por canetas esferográficas de tons distintos. O cheiro no ar era uma mistura de desodorante aerossol e bala de café.
Giovanni acomodou-se em sua cadeira giratória. Gotas de suor se formavam em sua testa, e Gustavo não soube dizer se era devido ao nervosismo ou se pelo ar condicionado não estar dando vazão suficiente.
_ Você sabe por que eu te chamei aqui, não sabe¿ _ Ele indagou.
_ Eu tenho sido um pé no saco pra todo mundo me afundado cada vez mais e mais na merda. _ Gustavo respondeu, encarando a foto de Giovanni segurando sua filha no colo, em frente a um brinquedo Parque do Beto Carreiro.
_ Bem, eu estava tentando arrumar maneiras mais polidas, mas basicamente é isso. Bom saber que meu aluno favorito ainda continua fera em ter a resposta certa na ponta da língua.
Gustavo conseguiu esboçar um mini sorriso. Arrancar-lhes sorrisos singelos, mesmo em situações tempestuosas era uma das características que o faziam admirar Giovanni com convicção. Fora o currículo acadêmico, os inúmeros livros e artigos publicados, e sua maravilhosa didática dando a matéria de Banco de Dados para ele no período passado. Gustavo se lembrava o quanto tinha ficado feliz quando Giovanni aceitara orientá-lo até o último período com sua Monografia. Aquele homem era a verdadeira definição daquilo que o menino realmente queria ser como programador um dia.
_ Suas notas estão diminuindo. Ouço os comentários dos professores dizendo que você está o tempo todo esquecendo de entregar trabalhos, e faltando às aulas. E agora você decide agredir uma menina na frente de todo mundo. Quem você tá se tornando¿
Gustavo ficou em silêncio por algo em torno de quinze longos segundos. Ele estava exausto. Mais magro, e com os braços mais finos do que o normal, com várias veias azuladas salientes em ambos os pulsos pálidos. Ele se sentia fragilizado e impotente, como se o corpo inteiro fosse feito de mini borboletas que morriam aos poucos, uma a uma e caíam duras e frias no chão.
_ Eu só não... não descobri ainda como seguir em frente. _ Disse ele, passando a língua entre os dentes. _ Quando os cartazes do Caetano estavam colados, quando ele ainda era apenas um menino desaparecido, ainda havia esperança. No fundo, eu ainda acreditava que era apenas ele pregando uma peça, se escondendo em algum lugar, bebendo e debochando de mim todo preocupado. Mas depois ele ia aparecer. Bem. E com a mesma vida e luz que irradiava. E então, encontraram o corpo dele. E, com o passar dos dias, os cartazes foram sendo tirados. E as pessoas foram parando de falar dele e, começando a esquecê-lo. Sempre achei que Caetano seria uma dessas pessoas que mesmo depois de morto continua imortal, professor. Porém, só o que me restou foi um único mísero cartaz dele num mural. E quando esse cartaz sumir, ele vai desaparecer dessa faculdade pra sempre. Eu tenho medo de que, em algum lugar, ele se sinta esquecido. É por isso que estou tentando ajudar a fazer justiça por ele.
_ Fazer justiça¿ Isso não é trabalho seu, é o da polícia.
_ Que parece não estar nem um pouco interessada no assassinato de um menino gay, haja visto que não tivemos nenhuma evolução nas investigações até agora.
Gustavo retirou o MacBook de sua mochila.
_ Sabe guardar segredo, professor¿_ Gustavo perguntou.
_ Experimente ficar casado por quinze anos, e verá que com o tempo aprende a guardar coisas para si. _ Ele respondeu com uma risada leve.
_ Bem, desde o dia que o Caetano desapareceu, eu hackeei o celular e o computador dele pra vasculhar mensagens e procurar alguma pista sobre seu paradeiro. Nada muito difícil, os aparelhos dele nunca tiveram mecanismos de defesa muito bom, então passar pela firewall dele foi como tirar doce de criança. Infelizmente, não encontrei nada significativo. Difícil mesmo foi conseguir acesso ao sistema da polícia.
_ Você o quê¿!_ O professor engasgou.
_ Quando estava no Ensino Médio, um amigo meu e eu quisemos criar um aplicativo que conseguisse adivinhar as senhas de qualquer rede de wi-fi que estivesse por perto. O resultado¿ Criamos um algoritmo que invade servidores de diversas formas e com muita precisão: chutando diferentes combinações de senhas, checando entradas do teclado, desvendando a criptografia. Conseguimos acessar qualquer coisa que não tivesse um sistema de segurança mais potente do que o nosso. E esse foi o caso da delegacia.
Gustavo virou o computador para Giovanni. Diferentes arquivos confidenciais da delegacia que investigava o caso do assassinato de Caetano flutuavam na tela.
_ Eu estou diariamente acompanhando o avanço da investigação por aqui, e eles não têm a menor ideia de que estão sendo hackeados. Já consegui descobrir bastante coisa tendo acesso aos laudos do legistas, depoimentos, entre outras coisas mais.
_ E descobriu algo de útil¿
_ Só que, no momento, o que eles mais estão tendo dificuldade é de conseguir passar pelo sistema de defesa do site ListaRosa.com. Foi lá onde meu namorado foi anunciado. Já ouviu falar¿
_ Achei que fosse apenas uma lenda urbana ou algo assim.
_Não. É muito real. Teve um caso parecido com isso na Rússia, com um site que promovia à caça de ativistas LGBT's. Aqui, as pessoas oferecem recompensa para matar gays, lésbicas, travestis, drag queens... isso no país que mais mata pessoas como nós no mundo.
Gustavo abriu a página da Lista Rosa e sentiu seu estômago embrulhar como o usual ao ver o layout macabro da página: um fundo vermelho que se assemelhava a sangue, inúmeras fotos de possíveis vítimas e letras brancas com fontes garrafais divulgando seus nomes, o endereço e o preço pelas suas vidas. Era quase como ver dezenas de cartazes de bandidos procurados no velho oeste, com recompensas para quem os encontrasse. Se a foto da vítima estivesse cinza, isso significava que ela já estava morta. O rosto de Caetano estava.
_ De fato, meu algoritmo não chegou nem a fazer cosquinha nessa página. É um sistema criptografado que eu nunca tinha visto antes. A polícia também tá quebrando a cabeça há dias. Mas eu acho que o senhor pode me ajudar.
_ Como assim¿
_ O senhor é o programador mais inteligente que eu conheço. Aposto que consegue ser mais esperto que o próprio serviço de inteligência. Preciso que o senhor me ajude a rastrear quem tá por trás desse site. Juntos podemos conseguir e, quem sabe, descobrir quem matou o Caetano.
Giovanni pigarreou.
_ Filho, olha... eu acho que você já está indo longe demais com isso tudo. Se a polícia sequer sonhar que você está invadindo o sistema deles, e que eu sei disso, eu posso perder tudo. Infelizmente, não posso arriscar. Me desculpe.
Gustavo formou um "o" com a boca, e sentiu seus olhos caindo, configurando uma expressão triste. Um misto de sentimentos o atravessou. Angústia. Tristeza. Raiva. E, por fim, vergonha. Muita vergonha. Ele estava suplicando ao seu orientador que cometesse um crime virtual por ele. Onde estava com a cabeça¿
_O-o senhor está certo. Eu só, achei que... eu...
Ele não conseguia concatenar ideias o suficiente para terminar a frase. Apenas guardou o laptop novamente em sua mochila, e começou a levantar-se da cadeira. Enquanto se ajeitava para sair, ele ouviu o professor se desculpando, e dizendo que ia tentar convencer alguns professores amigos dele a lhe passarem trabalhos extras para repor suas nota se conseguir a aprovação em algumas matérias. Até tocou no assunto sobre a carta de recomendação para tentar o intercâmbio na universidade francesa a qual ele mesmo estudou quando jovem. No entanto, o menino quis apenas de despedir de maneira seca e, antes que se desse conta, já estava descendo as escadas e caminhando em direção ao estacionamento.
***
Vinte e cinco minutos depois, Gustavo estava dentro de seu HB20 prata estacionado no prédio de Ciências da Saúde. Sua nécessaire repousava em seu colo. Aberta, ele conseguia ver três cartelas de comprimidos totalmente vazias. Seus braços tremiam, e seu coração estava ligeiramente acelerado. Ele sabia que estava prestes a ter uma crise de ansiedade a qualquer momento. Foi então que ouviu umas batidas no vidro de sua janela.
_ Olá, princeso. _ Um menino branco, com dreads no cabelo e uma tatuagem de filtro de sonhos no braço esquerdo apareceu. Luno Dias, como sempre, fedia a cigarro de palha e estava com os olhos vermelhos. Ele estudava um curso que Gustavo acreditava ter a ver com Farmácia, ou algo do tipo. Um pequeno filete de pó branco repousava um pouco acima de seu lábio superior. _ Andou sumido. E aí, o que vai querer¿ Anfetamina para ficar acordado e estudar mais tempo para aquela prova¿ LSD para aproveitar bem aquela festa¿ Chegou uma amostra nova de coca bem diferente daquelas alaranjadas que você tá acostumado a comprar. Todo mundo só fala nela.
_ Eu só quero o de sempre. Alprazolam. _ Gustavo respondeu.
_ Eu também quero o de sempre. Que me pague o que me deve. Você usou e abusou naquela última festinha, campeão. E ainda não terminou de quitar suas dívidas.
Gustavo revirou o fundo de sua mochila, e entregou ao garoto uma caixa.
_ Toma. Um Apple Watch novinho que meu pai comprou no ano passado quando fomos pra Los Angeles e nunca usou. Vai dar pra pagar tudo o que te devo, repor minha demanda de ansiolítico e de quebra você também pode me descolar algumas graminhas de erva. E vou querer um pouco dessa cocaína nova também.
Luno deu um sorriso de orelha a orelha. Entregou a ele tudo que pedira, e foi embora depressa, pois suspeitava que um dos seguranças o observavam. Gustavo tomou um comprimido de ansiolítico junto com o que restou de uma lata de Red Bull que comprara na cantina do Centro Acadêmico minutos antes. Sentiu, aos poucos, sua pulsação desacelerar e os músculos ficando menos enrijecidos.
Quando seus pensamentos começaram a tornar-se mais claros outra vez, ele soube que não importava o que Giovanni dizia. Ele ia encontrar um jeito de descobri a verdade do que aconteceu com Caetano e quem quer que tivesse feito isso com ele iria pagar muito caro.
The things I do for love, ele repetia essa mesa frase de Jaime Lannister, do primeiro episódio de Game of Thrones, incessáveis vezes em sua cabeça. Não sabia se pelo efeito das drogas, mas ele gostava de como ela soava, e como representava o quão disposto ele estava de correr atrás e fazer justiça pelo menino que ele amou mais do que tudo. Foi então que algo atravessou sua cabeça. Enquanto hackeava o celular de Caetano, ele vira que a última mensagem que ele enviara tinha sido um "Eu te amo". Lágrimas rolaram por sua face, enquanto ele ligava a ignição e manobrava o carro em direção à estrada.
Aquela mensagem não tinha sido para ele.
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