CAPÍTULO DOIS.
Toronto, 10:42 AM.
Entro no meu querido apartamento e uma agradável sensação de estar em casa me invade. Tiro meus sapatos e os deixo ao lado da porta como sempre faço, livro-me de toda a roupa que me incomoda e deixo que meu corpo caia sobre o sofá, sentando nele e dando um tempo para finalmente respirar e relaxar. Mas meu celular começa a vibrar, eu sei muito bem quem é e não posso ignorar.
“Estou numa loja com a galera, já chego aí.”
A mensagem brilha no ecrã do celular.
Respondo apenas com um polegar, mesmo sabendo que ele odeia isso e sempre afirma que apenas se usa para alguma coisa irônica.
Arrumo forças para ir em direção ao meu quarto, tirando minha regata à medida que meus pés caminham em direção ao banheiro. E então, justamente nessa hora, o interfone toca. Bufo e vou até ele, enquanto passo minha regata pela minha cabeça novamente o mais rápido possível.
— Fala — digo assim que o coloco no meu ouvido.
— Senhorita Ball? Hiran Gray está aqui — arquejo.
Já consigo imaginar ele dizendo “não precisa avisar, eu já sou de casa!” como sempre faz. Mas é uma ordem que dei desde que cheguei aqui, ninguém sobe sem o meu consentimento, além de Ethan, claro. O que Hiran está fazendo aqui, afinal?
— Pode mandar subir. — Coloco o telefone de volta no gancho.
Espero um pouco e ouço a campainha. Vou em direção a porta e a abro, encontrando o moreno sorrindo e os olhos jubilosos. Dou espaço e então ele passa pela porta.
— Já está com saudades, assim tão rápido? — Faço beiço enquanto ele revira os olhos, mas com uma expressão divertida.
— Troy me mandou aqui para resolver algumas coisas, e...
— Que coisas? — interrompo.
— Alguns documentos. — Ele dá de ombros. — Pensei, por que não visitar minha querida amiga? E aqui estou — ignoro o deboche e a tentativa de mudar de assunto sobre o porquê de ele vir até Toronto. — Quando Hailey me disse que cortou o cabelo eu não acreditei, mas — ele aponta para mim —, parece que foi verdade.
— É, e espero que cresça logo.
— Combinou com você. — Faço um gesto convencido e sigo até a cozinha com ele me seguindo. — Ah, antes que me esqueça, Miller quer falar com você.
— Eu já mandei o relatório da missão.
— Sim, mas ele precisa falar urgentemente com você, diz ele que é coisa séria.
— Qual a dificuldade de ligar? — Sussurro para mim mesma e mudo meu trajeto, indo até meu quarto. Pego meu notebook e sento no sofá da sala com ele no meu colo, e Hiran está atrás de mim com as mãos apoiadas no acolchoado.
— Na verdade, eu me ofereci, falei a ele que te avisaria — ele diz e bagunça meu cabelo.
— Não me diga! — exclamo irônica, olhando para a tela do notebook.
— Claro, quando dá as caras na escola eu não consigo te ver — beija o topo da minha cabeça e se afasta de mim enquanto eu inicio uma chamada de vídeo. Logo o rosto franzido de Troy aparece na tela.
— Existe tecnologia, Troy. Hiran não precisava vir na minha casa — brinco e ele revira os olhos.
Nesse momento, o garoto já está invadindo minha cozinha.
— Sem gracinhas hoje, Mia — ele murmura com sua voz grossa. — Preciso de você.
— Pra variar...
— Não se esqueça com quem está falando — ordena, mostrando que realmente está de mau humor hoje, nada de novo sob o sol.
Com um copo na mão, Hiran vai em direção à minha janela, para observar o movimento lá fora.
— Calma, senhor Miller — declaro com uma voz doce e irônica. — Diga, do que precisa?
— Primeiro: volte para cá — sorrio esperando que realmente seja uma piada.
— Óbvio que não! — exclamo sem ignorância, mas mesmo assim a cara de Troy não se tornou muito boa. — Eu literalmente acabei de voltar — me explico
— Ok, e vai sair de novo — ele fala como se fosse óbvio.
— Não pode mandar em mim, Troy! Não posso estar aí quando você quiser! — a parte mais burra de mim mesma alega, como se tivesse esquecido de todo o acordo que propôs. Espero o sermão sobre isso, mas ele felizmente não vem.
— Realmente esqueceu com quem está falando — os lábios grossos se abrem em um pequeno sorriso. — Chegue até a meia-noite de amanhã, ou então, eu mesmo vou aí — ele se aproxima um pouco da câmera. — E acredite, Mia, não vai querer me ver aí.
E então a chamada termina, depois de Troy desligar na minha cara. Fecho o notebook, o coloco de lado e me levanto do sofá.
— Uau! — Hiran começa, batendo palmas — Pra quem me chama de pau-mandado, você não está muito diferente, não é mesmo, gata? — Lhe arremesso uma almofada, mesmo sabendo que não vai fazer nem cócegas no brutamontes que ele é.
— Pelo menos eu saí daquela maldita escola, enquanto você ainda está preso e o único prazer que tem é ver a vida miserável de tudo mundo pela janela quando finalmente sai para ver a luz do dia! — Solto tudo de uma vez e ele tira a atenção da janela e me lança um olhar entediado, enquanto eu permaneço com meu sorriso cínico. — Agora, sai daqui. Ethan vai chegar logo, logo.
— Oh, Ethan — ele não perde a oportunidade de tirar minha paciência. — O que vai falar a ele dessa vez? — pergunta à minha frente, com as mãos no bolso da calça jeans surrada.
— Interessa a você? — Fico com os braços cruzados como uma criança birrenta. — Sai logo daqui!
— Calma, calma — sorri e me abraça, beijando minha testa logo depois.
— Se cuida — concordo e retribuo com um “você também.”
Quando as mãos dele tocam a maçaneta, a campainha toca e Hiran cautelosamente encosta a testa na porta, observando pelo o olho mágico.
— Ethan é um carinha pálido? Se for...
— Você tem que sumir daqui! — digo e começo a puxar o braço dele para longe da porta e ele começa a reclamar das minhas unhas em sua pele.
— Disso eu sei, gênia! Mas por onde vou sair? — Continuo o arrastando pelo apartamento enquanto tento relaxar para que meu coração não saia na minha boca. — Outra coisa, por que eu tenho que pedir permissão para subir e ele não? — Às vezes tenho, vontade de cortar a língua dele fora para que pare de falar.
— Se esconde — ordeno.
— E se eu me esconder e escutar vocês transando? — Dou um soco no seu braço e continuo o puxando para a janela onde fica a saída de emergência.
— Some daqui — sussurro, quase jogando o corpo dele para a escada e depois corro até a porta. Respiro fundo e puxo um pouco minha regata antes de abrir a mesma.
— Ethan — o alívio na minha voz quando pronuncio seu nome é evidente.
— E aí? Trouxe hambúrguer — ele sacode a sacola em sua mão e eu lhe puxo para dentro do apartamento.
Ele coloca a sacola na mesinha de centro e caminha até mim, abraçando e apertando meu corpo. Seguro o rosto dele, matando a saudade que estava desses olhos azuis e a marca do maxilar que resulta no queixo pontudo. Ele sorri e deposita um beijo em minha testa, saindo dos meus braços.
— Me conta, como foi? — ele pergunta ainda com um risinho no rosto, indo em direção à cozinha com a sacola em mãos, pegando dois pratos.
— O quê? — Inquiro, implorando para que ele fuja do assunto, perguntando sobre as paisagens ou onde me hospedei, menos a questão sobre o que realmente disse que iria tratar em Nova Iorque.
— Ver sua mãe... — ele tira a touca branca, revelando o cabelo que já fora preto, verde, loiro e agora está roxo.
— Ah, sim, mesma coisa de sempre.
Para Ethan, eu raramente ia visitar minha família. E todas essas vezes foram as que Troy precisou de mim, como ele mesmo diz.
— E você? O que fez sem mim nesse tempo?
Encosto-me na bancada.
— Voltei para casa — ele brinca. Realmente estava dormindo todos os dias aqui. — E meu pai, como sempre, não me deu sossego — ele vem em minha direção. — É por isso que eu preciso morar com você logo — diz com o tom divertido e eu sorrio, mesmo sabendo que ele está falando sério.
— Pensei que este apartamento já fosse nosso — ele abre um sorriso e leva os dedos ao meu rosto fazendo carinho na minha bochecha.
— Senti saudade — ele admite e eu rodeio meus braços em sua cintura para abraçá-lo de novo.
Como eu poderia dizer que teria que voltar para ver minha “mãe” novamente?
Ele se afasta de mim e abre o armário que tem em cima da pia quando um estrondo ecoa pelo ambiente de repente. O garoto para o que está fazendo e olha para o local de onde veio, uma corrente fria percorre toda minha espinha quando olho na mesma direção. É a janela pela qual, minutos atrás, Hiran tinha saído.
— Ouviu isso? — Ele se afasta da pia e aproxima-se da janela cada vez mais.
— Deve ser alguma obra no prédio vizinho — tento manter a tranquilidade, mas minha voz sai trêmula.
A cada passo que as botas dão meu corpo gela ainda mais. Se pudesse agir por impulso, eu faria exatamente o que meu cérebro está mandando: avançar na frente dele e interrompê-lo antes que chegue na maldita janela. Mas há uma regra básica que aprendi sobre disfarces: se algo dá errado, não entre em desespero, pois isso deixa tudo mais óbvio. Então, espero que ele vá à janela, olhe para os dois lados, mas antes que olhe para o andar superior ou inferior eu o chamo.
— Ethan, preciso avisar a minha mãe que cheguei, pode pegar meu celular no meu quarto?
— Sério, Mia? — Ele volta a atenção a mim.
— Por favor, estou morrendo de fome! Vou arrumar nossos pratos.
— Tá! — Ele se dá por vencido e vai em direção ao corredor, quando passa por mim, puxo o seu rosto e beijo a bochecha corada.
Espero ele virar o corredor e assim que o faz, corro para a janela. Olho para os dois lados como Ethan fez e para baixo, escuto um “psiu” vindo do andar acima. Ergo minha cabeça e forço meus olhos pelo sol, achando a silhueta de Hiran.
— O quê você tá fazendo aí? — Sussurro.
Ele desce alguns degraus da escada de incêndio e para próximo a minha janela.
— Estava fazendo uma ligação e meu celular caiu lá embaixo, perdi meu celular, Mia! — Reviro os olhos pelo desespero.
— Perdeu nada! Você tem que pegar, se alguém achar ele vai ser pior, vem cá — ainda estou sussurrando. Ele pula a janela e entra no apartamento, fazendo com que o tênis bata no chão com força.
— Faz silêncio, Ethan tá lá em cima.
O guio até a porta e viro a maçaneta delicadamente para não ter nenhum ruído. Hiran acena antes de passar por ela, e eu fecho do mesmo jeito devagar.
— Mia, não tem nada lá.
Pulo quando ouço a voz de Ethan e viro meu corpo bruscamente na direção dele, que está parado na sala me olhando com as sobrancelhas franzidas.
— O que foi?
— O que foi o quê?
— Você ia sair?
Alterno o olhar entre ele e a porta, dando um risinho logo depois.
— A-ah, não! — Começo a ir em direção a janela de novo. — Eu escutei um barulho e como já teve aquele estrondo aqui na escada, achei melhor dar uma olhadinha.
Ele balança a cabeça, mostrando que acredita na minha explicação, fazendo com que eu consiga soltar o ar do meu peito tranquilamente.
— Droga, onde tá meu celular? — Dou continuidade à mentira. Tiro as almofadas do sofá e peço para Ethan ligar para mim, segundos depois o toque soa pela sala.
— Aqui, lerdeza — ele tira de perto de um dos pés do sofá o smartphone preto e eu o agarro.
Voltamos para a cozinha e ele novamente começa a pegar os dois pratos, os coloca sobre o balcão e começa a dispor os hambúrgueres. Pego o prato que ele me ofereceu e sento na mesa pequena.
— Preciso falar uma coisa com você — eu começo quando já estou na segunda mordida, olhando.
Ele estava apoiado na bancada com o hambúrguer numa mão e o celular na outra, mas quando digo isso ele deixa o celular no granito.
— Eu voltei, mas combinei com minha mãe de voltar o mais rápido possível para lá — falo e a expressão tranquila que estava no seu rosto antes, se evapora.
Eu odeio mentir para ele. É a única pessoa que eu posso confiar. Mas isso não se trata de confiança, não é um segredinho qualquer, e não sou a única envolvida nisso. Envolve sangue, polícia e outras vidas. Não posso contar para ele, não posso envolvê-lo nisso tudo.
— Qual é... — suspira e vira o rosto enquanto mastiga, o seu maxilar está marcado e eu respiro fundo, tentando manter o foco. Prometi para mim mesma que iríamos ser só amigos agora. — Por que ela não vem pra cá? — Ele pergunta como se fosse óbvio.
— Porque ela tem trabalho, Ethan — respondo no mesmo tom.
Eu o entendo, completamente, eu me sinto da mesma forma longe dele.
Nossa amizade e talvez outra coisas que já tivemos — que não passou de sexo — nos leva para um lugar diferente, só nosso. E, principalmente, o leva para um lugar distinto, onde ele não tem problemas com a família. Nós precisamos um do outro para fugir da realidade e temos o prazer de nos ajudar.
— E quando vai?
Não está tão à vontade como antes. Uma das mãos magras seguram o mármore com força e a outra puxa o cabelo para trás, numa tentativa de arrumá-lo, mas logo depois uma mecha cai, desmanchando tudo.
— Amanhã. — Ele vira o rosto bruscamente me observando.
— Você acabou de voltar! Qual é Mia? Você nunca foi próxima da sua mãe! — Começa a ficar agitado, mexendo o corpo, coisa que sempre faz quando está irritado ou nervoso.
— São poucos dias — o tranquilizo e me levanto da cadeira, deixo o prato na mesa e logo depois vou na direção do garoto. — E você pode ficar aqui, se quiser te dou a chave.
— Do que adianta estar aqui sem você? — Ele morde os lábios, talvez se repreendendo por ter dito isso.
— Então me ligue — dou de ombros e beijo sua bochecha. Ele coloca o hambúrguer no prato que está ao seu lado e puxa minha cintura fazendo com que eu me aconchegue entre os braços finos.
— Você não vai morar com ela, não é? — pergunta quando ainda estou com meu rosto sobre o seu peitoral.
Eu não iria, iria? Eu não sei o que responder, Troy não falou para quê me quer novamente lá. Preferi não responder. Ele me olhou e desfez o abraço, segurando meus ombros.
— Responde, Mia — ele me conhece tão bem, sabe que quando eu não respondo é porque não tenho certeza.
— Não seja rude comigo, não quero brigar com você — isso é tudo que digo e ele chia.
— E eu não quero perder minha melhor amiga — sorrio pelo nome.
— Não vai me perder, sabe disso — declaro e me afasto dele, voltando para a cadeira onde estava e dando atenção à comida.
— Tomara que esteja certa — lamuria, ainda me encarando.
— Então, vai dormir aqui? — Tento mudar de assunto e um sorriso escapa dos seus lábios.
— Já que insiste. — Ele encolhe os ombros e puxa novamente seus fios coloridos para trás.
— Deixe de frescura e durma na cama comigo, sabe que pode, se quiser — deixo que as palavras saiam da minha boca e não me arrependo, eu preciso tanto dele esta noite, mesmo sabendo que pode ser uma despedida.
— Para — tenta ser sério, mas o sorriso está crescendo nos lábios.
— Só estou dizendo, para você com seus pensamentos pervertidos! — brinco e dou de ombros, segurando um sorriso.
Nova Iorque, 01:21 PM
Aqui estou eu em um beco escuro, tentando achar o lugar onde Troy marcou para nos encontrarmos. O ar frio sopra por toda minha pele, fazendo com que eu aperte meu casaco contra meu corpo mais uma vez. Alguns moradores de rua seguem-me com o olhar e outros até soltam gracinhas. Minha raiva por Troy só aumenta a cada passo e a cada esquina que viro.
Por que ele simplesmente não marcou na escola?
Depois de virar mais uma esquina, chego em uma rua mais iluminada pelos postes, solitária igual a todas as outras por onde passei, nem mesmo morador de rua há aqui. Ouço alguns barulhos da noite; cachorros latindo, risadas ecoando e o zumbido do vento frio.
Vejo a estatura baixa encostada na parede do prédio de tijolos brancos à vista. Ele está todo agasalhado e com os braços cruzados. Os anos realmente não estão favorecendo esse homem. A falta de cabelo e o cansaço está claramente aparente, sem contar nas rugas presentes no canto da boca e ao lado dos olhos. Por aparência, Troy não é assustador, mas em compensação, ele faz com que todos tenham medo por vários outros motivos. Eu sei muito bem disso como todos naquela escola.
— Pontual como sempre — digo, ainda com minhas mãos no bolso do casaco cinza.
— Pois é, queria dizer o mesmo de você — retruca ríspido, mas eu solto um riso nasalado, com minha cabeça baixa. Ergo meu olhar e vejo a expressão neutra no rosto amorenado.
— E então? — pergunto e ele desencosta da parede, vindo em minha direção.
— Me siga — ordena, e quando dá as costas, eu reviro os olhos.
Andei isso tudo para nada? Eu poderia ter pegado um táxi e ido direto ao endereço! Então ele me surpreende quando e entra no prédio que estava encostado segundos atrás.
Por Deus, o que está acontecendo?
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