Capítulo 37
Assim que a Bia desligou o carro e soltou o cinto de segurança, sua porta abriu e ela foi puxada para fora, com violência.
Seu grito involuntário ecoou pela rua deserta, mas ela levantou as mãos, mostrando que ia obedecer. Reação automática de ter escutado o pai repetir mil vezes que nenhum bem material era mais importante que sua segurança e que era só com aquilo que ela devia se preocupar no caso de um assalto. O resto era substituível.
— Quietinha, moça — um homem disse perto do seu ouvido, e ela concordou com a cabeça.
— Solta ela, porra! — O Lourenço deu a volta no carro correndo. — O seu papo é comigo, Dezinho.
Então, não era um assalto, mas saber que o Lourenço conhecia o cara fez seu coração bater com mais força e ela começou a tremer. A intensidade dolorida do aperto no seu braço deixava claro que não era uma visita amistosa.
— Olha o mané, cheio das exigências. Agora, tu quer conversar, Lôro? Agora, é tarde.
Outros três homens apareceram do nada. Um parou atrás da Bia e os outros dois, um de cada lado do Lourenço.
— Escuta, eu faço o que você quiser — o Lourenço tentou negociar. — Só deixa ela ir embora.
— Pra ela chamar os cana? Tu acha que eu sou otário? — O tal de Dezinho a soltou e fez um sinal. O homem que estava atrás da Bia passou os braços em volta dela, a imobilizando completamente. — Tu fica quietinha, sacô? Um barulhinho e o bicho vai pegar pra tu também.
Ele não precisava se preocupar, a voz da Bia tinha sumido e suas pernas não seriam capazes de levá-la a lugar nenhum.
O Dezinho se virou para o Lourenço e os outros dois caras seguraram os braços dele. O terror da Bia virou puro pânico e ela olhou em volta. Copacabana era um bairro movimentado, mesmo às duas e pouco da manhã, mas a rua estava vazia e as janelas dos prédios, escuras. E com o mundo do jeito que andava, ainda que alguém visse, não ia querer se envolver.
— E, tu, vacilão? — O Dezinho parou na frente do Lourenço — Aguenta tudo calado, ou a porra da tua mulher tá fudida. Da próxima vez, que o mestre chamar, tu comparece, tá ligado?
O Lourenço só teve tempo de pedir desculpas para a Bia com o olhar, antes de levar o primeiro soco na barriga. O grito da Bia foi instintivo, mas o homem que a segurava percebeu sua intenção, soltou um dos braços e tampou sua boca.
— Calada. — Ele a apertou com mais força. — Tá vendo o que acontece com o mané que não obedece?
A pancada seguinte foi no rosto. O grunhido abafado de dor do Lourenço foi como uma faca no peito da Bia. Ele estava aguentando tudo calado por sua causa. Ele nunca teria chance contra três, mas se ela não estivesse ali, ele tentaria, ao menos, se defender.
Ela fechou os olhos, lágrimas silenciosas escorrendo pelo rosto, e se concentrou em respirar através da mão com um fedor azedo contra seu nariz e boca. Os sons dos socos e gemidos continuaram, e quando a Bia achou que não podia piorar, o homem atrás dela se manifestou.
— Até que pra uma magrela sem graça, tu é bem cheirosa. — Ele enfiou o rosto nos cabelos dela e respirou fundo. Ela sentiu a ereção e tentou se afastar, mas ele não deixou e esfregou o quadril no seu traseiro. — Relaxa, vadia, quem sabe tu também não vai se divertir hoje?
A Bia foi tomada pelo desespero da certeza de que quando eles terminassem com o Lourenço, seria a sua vez. E não era uma surra que eles estavam planejando. Ela seria estuprada em plena Copacabana, na frente do namorado que não poderia fazer nada para impedir. As palavras para implorar, oferecer o carro, dinheiro, qualquer coisa, ficaram travadas na sua garganta porque a mão do homem continuava tapando sua boca.
Depois de uma eternidade, os socos finalmente cessaram. Ela tomou coragem e abriu os olhos. Seu coração parou de bater ao ver o Lourenço curvado, sem forças, as pernas dobradas, em pé só por causa dos homens o segurando pelos braços, mas sua atenção foi desviada para o Dezinho vindo em sua direção, abrindo e fechando as mãos.
Ele estava calmo, os olhos cruéis, frios, como se espancar alguém fosse um acontecimento corriqueiro. O homem atrás dela destapou sua boca e segurou seus punhos, virando seus braços para trás. A dor nos ombros não foi nada perto do medo que cresceu conforme a distância entre ela e o outro bandido com o sorriso insensível no rosto diminuía. Ela trancou o maxilar e o encarou, eles iam fazer o que quisessem com ela, mas ela não ia perder a dignidade.
— Quanto mais a gata é brava, mais eu gosto. — O Dezinho deu uma gargalhada que quase desfez seu disfarce, mas ela aguentou firme. Ele passou a ponta do dedo pelo seu rosto.
— Encosta nela que eu te mato, seu filho da puta. — A ameaça do Lourenço não fez efeito por causa da dificuldade com que passou pelos lábios sangrando, e ele foi calado por outro soco de um dos covardes que o seguravam.
— O Lôro não tá mal. — O bandido desceu o dedo até o decote da blusa da Bia e puxou o tecido, olhando para dentro. — Eu prefiro mulher mais avantajada, mas pra tu, eu abro uma exceção.
Ele agarrou seu queixo e aproximou o rosto, parando a um centímetro da sua boca. A Bia teve que se segurar para resistir ao impulso de cuspir na cara dele porque não seria só ela quem sofreria as consequências da sua revolta.
— Tu tá com sorte — o Dezinho sussurrou. — O mestre mandou deixar tu em paz. Por enquanto.
Ele deve ter feito algum tipo de sinal, porque os homens soltaram o Lourenço e a Bia ao mesmo tempo. Ele desabou no chão. Ela quase o imitou, mas saber como ele estava era mais urgente, e ela conseguiu correr até ele.
— Tu sabe o que tem que fazer, Lôro. Não vacila de novo que dá próxima vez eu pego pesado — o Dezinho avisou, enquanto abria a porta do carro da Bia. Depois de remexer lá dentro, ele se endireitou, a pizza numa das mãos, e a bolsa dela, na outra. — Minha noiva vai gostar do presente. Tá com sorte que eu não vou levar o carro, vadia.
Eles desceram a rua calmamente, como se nada tivesse acontecido.
— Lourenço? Fala comigo? — A Bia segurou a cabeça do namorado com as duas mãos. Os olhos estavam quase fechados de tão inchados e o sangue do nariz se misturava aos dos lábios cortados.
— Bia... eles te machucaram? — A pergunta saiu baixa e ela só escutou porque estava muito perto.
— Não, eles não me fizeram nada. Você consegue levantar?
Eles precisavam sair dali. Ir para qualquer outro lugar onde ela se sentisse protegida. Os braços dele seriam o ideal, mas o Lourenço não estava em condições de ajudar ninguém, pelo contrário, ele precisava dela. Ela engoliu o medo e o nervoso, e ficou de pé.
Com sua ajuda e se apoiando na parede atrás deles, o Lourenço conseguiu levantar, e se segurou na Bia para andar. Só quando ela abriu a porta do carro, ele percebeu suas intenções.
— Não, não... pra minha casa...
— Lourenço, você precisa de um hospital.
— Não! — Ele se apoiou no carro e se recusou a entrar. — No hospital... vai dar polícia...
— A gente inventa uma tentativa de assalto.
Apesar de a razão exata do Lourenço ter apanhado não estar clara, era óbvio que tinha alguma coisa a ver com ele ter parado de vender drogas. Não envolver a polícia seria a situação ideal, mas ele podia ter quebrado algum osso, ou estar com hemorragia interna por causa das pancadas na barriga, e a médica na Bia estava falando mais alto.
— Presta atenção... — O Lourenço respirou fundo e fez uma careta de dor. — Isso foi uma demonstração de força... o chefão que me passava o bagulho me chamou pra conversar e eu não fui, mas... foi um teste também. Pra ver se eu aguento a pressão de ficar fora... A gente não pode meter polícia nisso. Confia em mim?
No fim, foi o medo que brilhou nos olhos meio abertos que a convenceu. Contrariando tudo o que achava certo, a Bia fez o que ele queria. Uma visita à delegacia seria inevitável, por causa dos cartões e documentos que o Dezinho tinha levado, mas aquilo ficaria para depois. Primeiro, ela ia se preocupar com o namorado.
Depois de tirar a chave da ignição e trancar o carro, ela ajudou o Lourenço a se arrastar pelo resto do caminho. Ele lhe entregou as chaves dele e ela abriu e segurou a porta do prédio para ele passar.
Foi só depois que o som da porta batendo atrás deles ecoou pelo vestíbulo vazio, que seus pés grudaram no chão. Uma provação, bem menos perigosa do que a que ela tinha acabado de passar lá fora, mas igualmente aterrorizante a esperava ali na sua frente.
O elevador.
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