27- A missão de um homem generoso.
( Os sete magos olhavam para o espelho e viam João, a compor um baú enorme que estava sobre uma mesa)
João, aliviado, fechou o baú, estava feito, tudo arranjado, Amélia podia ficar descansada.
João, em breve poderá concretizar o seu projeto. Em vez de cinco pequenas regiões na África, poderia, com um pouco mais de tempo e esforço, desenvolver sete pequenas regiões e tirar as pessoas da pobreza. Cansaço, apenas cansaço!
Está cansado, mas o esforço é válido, a alegria das pessoas alimentadas é um prazer enriquecedor. A fome é o alimento da pobreza espiritual. Olhou para o jornal emoldurado na parede. Uma alegria enorme ver os rostos sorridentes das crianças. Ele havia matado a fome daquelas crianças, jamais esqueceria.
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10 anos antes:
João, parava em frente a uma casa, de tinta descascada pelos tempos de miséria. No seu saco 1 kg de arroz, duas latas de salsichas, não era muito, mas mataria a fome por hoje, daquela família. Atrás de si o jornalista, para fotografar a alegria das crianças. Aqueles olhos de fome, uma mente carente. A bondade não tem preço, mas o valor à vida que ela acrescenta é incalculável.
Outras crianças vieram. Não há mais comida. Culpa, muita culpa, sempre esta culpa!
Ah, aquela maldita sombra que fala, e sempre diz — "Não te preocupes".
O seu pai tinha razão — "Afasta-te da sombra". João benzeu-se três vezes, três tinha de afastar aquela sombra. Três a conta que Deus fez.
Aquela sombra, sempre o acompanhava, distorcendo os passos cambaleantes. Maldita sombra, que tenta e arrasta para longe da luz da generosidade, do caminho da virtude. A sombra que a sua mãe lhe tinha deixado.
Ah, acredite, o vazio da alma pode ser preenchido com títulos garrafais que inundam os jornais. Mas o vazio persiste. É preciso arrebanhar, afastar a sombra da tentação que sempre me persegue.
Culpa e cansaço, sempre este cansaço!
A fome, essa malévola que aflige tantas almas carentes, é a ausência não somente de alimento, mas também de esperança e de amor. O sonho! É preciso sonhar, só o sonho pode guiar o ideal.
A generosidade é a luz que ilumina os caminhos estreitos da vida. Queria ser generoso como o seu pai. Ah, como ele estaria orgulhoso. A sua mãe era uma gastadora, corrompida pelo dinheiro, levada pela tentação.
Sombra maldita! Nunca um sonhador será uma pessoa normal. Nunca! Tem de se ir mais além, trabalhar mais, levar a luz aos que mais necessitam. Uma igreja, é isso!
João olhou para as três moedas que o seu pai lhe deixou. Três moedas na mão, representam a generosidade, a missão. Se lembrou do dia em que o seu pai lhe deu as moedas, quando passou a administrar o pequeno banco familiar. O pai ficaria orgulhoso, o banco havia se tornado o maior do país. Três moedas, uma a uma, revistas para não esquecer. O pai havia falecido há anos, mas a sua memória estava viva.
Quando Amélia o viu entrar na igreja, sentiu que havia qualquer coisa de diferente nele. Benzia-se três vezes. Era um homem de Deus sem dúvida. Era alto e magro, com olhos, negros. Aquelas olheiras, transpareciam alguém com fantasmas da noite. Mas quem não tem fantasmas?
João, visitara aquela igreja pela primeira vez, já era contabilista da mesma, um trabalho de voluntariado para ajudar a causa. Olhou para Amélia, aquela voz angelical, era mesmo um anjo. Depois da missa foram apresentados, 3 anos mais tarde acabariam por casar.
Amélia esperou três anos, queria que João lhe tocasse, mas era tão difícil...
João nunca, nunca abandonou a sua missão. Ajudar, trabalhar, investir, a carne é uma distração, além que antes do casamento nem pensar! Amélia, não pode ser contaminada pela maldita sombra, está sombra vã, que quer que eu tenha prazer, com tanta gente na miséria. Sê feliz João, cuida de ti! Maldita sombra, que vê na felicidade a tentação. Cansaço é o que a sombra diz. "Estás cansado. Dorme João, dorme, dorme." — sempre três vezes a maldita sombra diz "dorme".
O pai de Amélia adorava João, tão bom homem, bem-sucedido, jovem e dono de um banco que crescia a cada dia. Não se via, João, a desperdiçar um cêntimo que fosse. E com razão enquanto houver fome no mundo a ostentação é o maior pecado. A filha estaria bem entregue, nada lhe faltaria. Homem de ouro, assim o pai dizia: "Fé é o caminho que ilumina o coração generoso de João. É um homem de ouro, um homem de Deus."
Amélia estava na flor da juventude, um certo desejo, é saudável, nestas idades. Nem só de espiritualidade vive a mulher! Nenhuma palavra de ordem para um beijo sério, apenas três leves beijos, no início, e mais três ao se despedirem.
"Tenho que ser inabalável, capaz de superar todas as tentações do mundo" — diz João. Mas e uma mulher? Quando os calores sobem...? Pôr o casamento em questão? Não! O pai não permitiria.
Ao menos fosse só os desejos carnais, mais qualquer coisa incomodava Amélia. Um medo estranho de quando João falava da sombra que o queria seduzir. Uma boa esposa levará João ao caminho certo, o amor tudo consegue. Depois do casamento, tudo estabiliza, é preciso dedicação e amor. Ah, o cuidado que ele tem com os pobres, só mostra o bom coração que tem. O seu destino é grande e não estará sozinho nesta caminhada, Amélia o ajudará.
João casou com Amélia. Ela era um anjo. Sempre compreensiva, ela entendeu o caminho que ele havia traçado, alguém tinha de o fazer. Com tanta miséria no mundo, alguém tinha de arregaçar as mangas, não oscilar.
Foi difícil para Amélia nos primeiros tempos de casamento, os hábitos de João faziam-lhe confusão. Jantar sempre às 21:00, às 23:00 revia as contas do banco, lia a bíblia às 2:00 dando 3 voltas à mesa, antes de subir ao quarto confirmava se a porta estava trancada, 3 vezes confirmava, às 3:00 deitava-se. Mas antes de deitar, olhava para ela sempre com carinho. Todos os dias, a princípio era confortante, depois Amélia descobriu que ele olhava para ela exatamente 30 segundos, nem mais, nem menos, isso deixou-a com medo. Às 7:00 estava sempre na igreja, às 9:00 no banco e regressava às 20:00h.
Amélia, cantava na igreja de João. João fundara uma nova igreja, a igreja — DTG — "Deus Todo Generoso". Uma igreja que crescia a cada dia, os seus sermões eram aplaudidos de pé. Muito orgulho, Amélia sentia, não tivesse de morar na mesma casa que João e ele seria um anjo. Temos de nos resignar, há obras maiores que nós. Ele mudaria um dia quando conseguisse o seu objetivo de eliminar a fome, numa pequena região da África. Já tinha fundado a primeira igreja lá. João prometeu que depois do projeto se dedicaria à esposa.
No dia da inauguração sua própria igreja. João discursou como se fosse a véspera de uma batalha: "O caminho que não é de Deus abre as portas das trevas. A peneira de Deus é estreita..." E os fiéis cantaram em êxtase seguindo a voz de Amélia: "Glória ao Senhor". Muitos disseram que João era um anjo. Nesse dia, chegou a casa, jantaram, Amélia deu-lhe três beijos na testa e subiu para o quarto. João pegou as três moedas na palma da mão, olhou uma a uma e, antes de deitar, foi até a porta e conferiu três vezes se estava fechada. Rotina diária, temos de ter hábitos. Nessa noite, sonhou com um anjo que lhe disse que, ao invés de levar comida para uma região, levaria para três. Primeiro, as igrejas seriam fundadas, depois as sucursais dos bancos. Era necessário dinheiro, quanto mais dinheiro, mais pessoas ajudaria. Amélia compreendeu, mas depois acabaria ali, três regiões e depois João olharia para o casamento.
Todos os dias, procurava situações para investir dinheiro. No final do mês selecionava pessoas com dificuldades e comprava alimentos para elas. Às vezes era tanta gente carente que João ficava frustrado. Culpa, muita culpa! Ele precisava trabalhar mais, investir mais! Amélia entendeu, ela era um anjo. Todos os dias, ela preparava o jantar com amor incrível, às nove horas em ponto. Diariamente lhe dava boa noite com três beijos na testa.
João não cumpriu a promessa a Amélia, o anjo apareceu novamente no sonho, em vez de 3, seriam 5 regiões, fundaria mais duas igrejas para fazer as 5 igrejas.
Amélia queria ir embora, como a sua mãe, foi. Amélia estava cansada, sucumbira à sombra.
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Agora:
Chuva torrencial, relâmpagos iluminavam a casa. O som do trovão impediu-o de ouvir o que viria a acontecer. Três ladrões entraram na casa, prontos para saquear o que pudessem. Quando viram João, hesitaram. A escuridão da noite e o som do trovão mascararam a presença de João, mas o raio iluminou-lhe o rosto, e um dos ladrões resolveu atirar nele. João caiu no chão, o seu pensamento foi que não conseguiria se levantar para verificar a porta, como sempre fazia. Três vezes, todas as noites, ele verificava-a. Mas agora, ele não podia. Um tiro, um único tiro foi disparado na cabeça de João.
Ali deitado, João lembrou-se da sua mãe, como era linda, um anjo. Maldita sombra que a corrompeu. O pai tinha razão em a ter fechado na cave, à fome, uma semana à fome. João foi tentado, era criança, queria dar-lhe alimento — arroz e salsichas, foi o que conseguiu. Não lhe tivesse dado de comer e o jejum ter-lhe-ia purificado a alma. Era criança, não sabia. O seu pai nunca lhe perdoaria se soubesse que foi ele que lhe abriu a porta para ela fugir com outro homem. Lembra-se das últimas palavras dela — "Dome João, dorme, dorme. Já não dormes há três dias. A mamã tem de ir. Um dia voltarei. O dinheiro não é tudo!". Nunca voltou. Tivesse ele escondido o mealheiro, e a mãe não teria dinheiro para o autocarro. Razão tinha o pai em lhe esconder o dinheiro! Ah, como aquele dinheiro agora faria falta, João multiplicaria o mealheiro por mil, por um milhão de vezes.
Lembrou-se da noite anterior, quando chegou a casa. Tocaram à campainha um homem de rosto indefinido, vestia uma gabardina cinzenta, ofereceu-lhe um ramo de rosas.
Oh e ainda se lembra bem como olhava com carinho, todos os dias para Amélia, 30 segundos, todas as santas noites.
Olhou, novamente, para o jornal na parede, e ainda se lembrava do dia que comprara a empresa do jornal para noticiar as suas bondades. Acabara de oferecer um kg de arroz e duas latas de salsichas aquela família. O jornalista, bom jornalista, não ligou aos bens materiais e estampou no retrato a felicidade das duas crianças pelo alimento recebido. Muito ato de bondade fez João, as letras garrafais dos jornais são a prova.
Recorda-se de ter chegado a casa e Amélia não estava. Primeira vez, desde que eram casados, que Amélia não estava para o receber. Ficou preocupado. Pouco tempo depois, Amélia chegou, pediu desculpa pelo atraso e pegou em alguns trocos para ir comprar alguma comida. João pegou no espeto de atiçar as brasas. Amélia parecia estar com fome.
— O que vais fazer homem de Deus? — perguntou Amélia...
— Não te deixo levar o meu dinheiro.
— João, o dinheiro é para te dar o jantar, homem de Deus.
— Na capa da generosidade se esconde o lobo da ganância!
...
Quando os ladrões abriram o baú ficaram horrorizados com o que viram. Um corpo de uma mulher despedaçado.
João adorava a esposa, ela estava cansada, já não servia para cantar na igreja. Aqueles trocos para comprar comida fez-lhe lembra a mãe, uma gastadora, a sombra também a corrompeu. Adorava Amélia. A quantia que ela ia gastar, ele multiplicaria por mil e ajudaria outras pessoas, talvez até criasse uma instituição para a homenagear.
E olhava para o jornal, de novo, como aquelas pessoas ainda frequentavam a igreja dele e deixavam o seu salário lá. Lembrou-se do ensinamento do seu pai — "Três moedas, a primeira de 20 cêntimos é para investir e dela fazer a segunda de 50 cêntimos, e da segunda retiras a terceira. A terceira, de 1 cêntimo, é a mais importante de todas, pois é para investir na tua reputação. Seja generoso com a reputação, dela tirará o maior lucro."
O seu pai educou-o bem, dia 3 de cada mês, dia em que a sua mãe havia fugido, lhe dava três chibatadas, para não se esquecer nunca. Uma para amar sempre a sua mãe, mesmo sendo ela uma pecadora gananciosa que só pensa em sexo, a segunda para se lembrar sempre que o jejum purifica a alma e a terceira para não se esquecer de poupar dinheiro. O dinheiro corrompe quando se gasta. O Diabo procura o homem pelo dinheiro, quando se gasta, uma parte da nossa alma se perde. Ah e depois o seu pai o abraçava e nunca se esquecia de olhar para ele com carinho, 30 segundos de carinho, o pouco vale muito. Se o carinho ficar na memória, na memória se expande e se multiplica, como o dinheiro. A alma cresce na luz do senhor, é preciso recordar.
"É necessário viver no inferno para acreditar no céu." — disse um dos assaltantes ao olhar para o forro da tampa do baú, que mostrava uma pintura do paraíso.
João fechou os olhos, lembrando-se do homem de gabardina. Seria um anjo, ou um presságio da tragédia que estava por vir? E se não conseguisse levantar-se, quem fecharia a porta? ... Dorme João, dorme, dorme.
Dormir nunca, falta verificar a porta, é preciso determinação. Pegou o atiçador de brasas, que ainda estava sob a mesa, e arrancou o estômago do ladrão junto ao baú. Levantou-se e olhou com carinho para o homem que tinha uma arma na mão que tremia como varas verdes. Um ladrão, talvez com fome, não podia deixar levar os trocos que eram para homenagear Amélia. Sempre esta sombra, "João são só uns trocos, não te preocupes!". Ah, mas João é mais forte que a sombra. A arma não disparou, o que só confirma que aquele anjo dos sonhos estava do seu lado. O ladrão queria falar qualquer coisa, mas a voz não saía, talvez cansaço, desespero causado pela fome, é preciso acabar com o sofrimento, pensou João. Espetou-lhe o atiçador na garganta, aquele ladrão podia agora descansar em paz.
Sono tanto sono, mal conseguia ver o terceiro ladrão a tentar fugir, pela janela. Era preciso esforço e determinação como o seu querido pai lhe ensinou. Mais rápido que uma bala não o deixou escapar, parecia que o homem tinha ficado hipnotizado com os olhos de João, ou com o sangue na cabeça. Talvez estivesse a ver todos os pecados que cometeu, mas Deus sabe perdoar, como João lhe perdoou ao livrá-lo da ganância. O dinheiro corrompe a alma.
João foi à porta, confirmou, três vezes, se estava fechada. Eram 3 da manhã, estava na hora de dormir, foi ao baú e olhou com carinho, 30 segundos, para Amélia. Verificou três vezes se ainda havia algum dinheiro na mala de Amélia... Dorme, João, dorme, dorme.
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