0.10- O livro e a biblioteca
O armazém da biblioteca é um espaço amplo, repleto de prateleiras de madeira escura que se estendem do chão ao teto, formando corredores intermináveis. O ambiente é iluminado por luzes suaves, que conferem uma sensação acolhedora e misteriosa ao espaço.
Oraca e Morpheus, conduzidos por uma humanoide, encarregado da manutenção do armazém, dirigiam-se para uma secção em particular. Uma pequena secção onde estão empilhados papéis, manuscritos e outros materiais de escrita que, aparentemente, não foram considerados importantes o suficiente para serem catalogados. Esse espaço é pouco visitado pelos leitores, mas seria um tesouro para os estudiosos mais curiosos, se os houvesse.
Morpheus sentia alguma necessidade de falar com Oraca sobre o bebé. E a maneira invulgar como ela conseguiu convencer o Senado da utilidade da futura criança, podia-se questionar. A forma como o fez parecia-lhe extremamente desumana, não tanto como a desumanidade do Senado, mas ainda assim algo de estranho. Não acreditava que Oraca pudesse querer que o seu filho fosse uma cobaia para toda a vida. Queria falar com ela, mas, por outro lado, tinha receio que não conseguisse camuflar os seus pensamentos, entre o querer e o não querer, olhando para aqueles livros mesmo que bastante danificados, havia ali muito conhecimento. E entre livros danificados, a conversa emana:
— Muitos livros danificados, partidos ao meio, como se o conhecimento tivesse sido rasgado. Como se houvesse apenas metade do conhecimento e outra metade fossem páginas em branco que ninguém entende. — disse Morpheus, ele sabia que se dissesse algo menos claro, Oraca iria querer responder.
— As pessoas que muito falam e pouco pensam, podem só ter metade do conhecimento disponível. Ter apenas uma compreensão limitada do mundo, ou seja, que há muitas coisas importantes que eles não sabem ou não podem aprender devido à falta de informações completas. — disse Oraca com um pequeno sorriso. Morpheus ficou perplexo, não com a resposta, mas sim com o sorriso, era um sorriso natural, não forçado.
— Mas não será hipocrisia essas pessoas que saibam a metade rasgada e não transmitirem aos outros? — Morpheus tentando encaminhar a conversa para onde pretendia, veja-se que Morpheus elabora milhares de perguntas para a reprogramação neuronal não ser acionada.
— Imagina que uma pessoa, tem a metade do livro desaparecida e a lê, mas quando a vai mostrar todos observam que as páginas estão em branco. Mas essa pessoa vê que é ilusão de toda a gente. Pode ela dizer a verdade? A escolha por dizer a verdade, não fará que ela seja tratada como louca? A hipocrisia é uma característica que envolve a falsidade, a dissimulação e a falta de coerência entre as ações e palavras de uma pessoa. Mas a escolha, pela verdade, nem sempre é livre. — disse Oraca.
Morpheus ouviu com atenção a resposta de Oraca, e percebia agora as suas palavras, aparentemente, contra o filho, mentiu para o salvar. Que sociedade é esta que uma mulher tem de mentir para salvar o seu filho? Muitas vezes, a hipocrisia é a própria realidade. Para proteger quem amamos, temos que o negar, um paradoxo. Morpheus colocava agora em causa a sociedade. No entanto, queria saber mais. Será que agir com hipocrisia é realmente a melhor forma de proteger alguém? Não seria mais honesto e ético buscar alternativas que não envolvam falsidade e dissimulação?
— Quando as pessoas agem com hipocrisia, elas podem causar grande prejuízo para a sociedade, pois as relações humanas são baseadas em confiança e sinceridade. Não é verdade?
— Primeiro, é importante esclarecer que é possível ter acesso a informações completas e ainda assim agir com hipocrisia — disse Oraca, antes de responder diretamente à pergunta. Após uma breve pausa, ela continua — Com certeza, a sinceridade é fundamental para a construção de relações saudáveis e para o progresso da sociedade como um todo. No entanto, muitas vezes, as pessoas sentem que precisam agir de forma hipócrita para se proteger ou proteja aqueles que amam. Por exemplo, a pessoa que leu a metade do livro que falta, pode depositar esperança em outra pessoa que a possa entender. Um sonhador que coloque em cada fala milhares de hipóteses, que veja as páginas escritas em vez de vazias. Mesmo que tenha que esperar pelo acordar do sonhador, não perderá a esperança.
Morpheus, percebeu claramente que Oraca se referia a ele, como se ela tivesse entendido o truque que ele fazia para ludibriar a reprogramação neuronal. Estava feliz por Oraca depositar esperança nele. Oraca sem dúvida estava à frente de todos os outros, só não percebia porque levava tão a sério a imaginação de Triny.
No armazém da biblioteca, um mundo está escondido, entre prateleiras de madeira escura e luzes suaves. Histórias, segredos e mistérios, sem sentido, até alguém com imaginação, as torne mais atraentes e suaves.
Entrou Triny na biblioteca perseguindo um corvo que não era visível. Aproximou-se da mãe e a abraçou. A mãe parecia estar além, num outro mundo, numa outra realidade. Triny abraçou a mãe que sentiu novamente a solidão, mas agora via naquele pequeno olhar que a filha lhe dirigia uma esperança, uma certeza.
Albertina abraçou a filha, surpreendentemente foi a primeira vez que o fez. Pode ser a primeira vez, mas que mal faz se não for a última, será pedir demais? "Estou além de mim, preciso de alguém, preciso, sim, de um amor que me completa e que me leve para longe deste breu. Preciso da minha filha". — Pensou Albertina abraçando-a com mais força ainda. Teve ali um acesso à consciência. Seria duradouro ou efémero?
Triny ficou feliz, a mãe estava bem, assim parecia. "Talvez o corvo, não estivesse aqui", pensou Triny. Triny foi chamada ao armazém, pois Oraca e Morpheus não encontravam o que ela dizia ter lido.
Triny, correu para o armazém, queria ver Oraca, Morpheus e o bebé. Corria por aquele piso branco de mármore como se as pernas fossem capazes de acompanhar o desejo de ver os seus amigos.
A biblioteca é um lugar imenso, um vasto templo de conhecimento. A arquitetura é fantasiosa, com paredes de vidro que se estendem ao teto e abrem para até uma vista panorâmica de um mundo repleto de natureza, embora artificial. As prateleiras são feitas de um material resistente, mas elegante, e se estendem por toda a parte, desde o chão até o teto. Os corredores ramificam-se em caminhos infinitos, criando um labirinto de livros que nunca termina. Mas Triny conhecia cada canto e sabia exatamente onde Morpheus e Oraca estariam.
Após alguns minutos Triny chegou. Ela abraçou Morpheus, correu depois para Oraca abraçando-a e encostando ao ouvido da barriga desta. Oraca ficou estática, foi surpreendida, não estava habituada, se fosse um raciocínio ela sabia como reagir, assim não.
Enquanto Morpheus sorria, Triny disse, entusiasmada como se tivesse visto ali a origem do mundo e descoberto todos os mistérios:
— O bebé mexeu-se!
— Pois mexeu — disse Oraca sorrindo e abraçando a miúda.
— Triny podes nos dizer onde está o livro que falaste no hospital, o livro de física quântica. — pediu Morpheus de forma simpática.
— Não é um livro, é um caderno — disse Triny, dando dois ou três passos em frente para buscar o caderno que Morpheus já o havia visto, era um caderno que não tinha nada escrito. Tinha apenas, pelo meio, algumas folhas perdidas com uns rascunhos e umas histórias e lamentos de um pai que tinha a filha em coma.
— É este — disse Triny, pegando no caderno onde se podia ler na capa: "Apontamentos de Edmundo Stein".
— Eu já tinha visto Triny, esse não tem nada escrito — disse ele com a forma mais calma que consegui, pois havia prometido a ele mesmo que iria compreender e cuidar desta criança.
— Posso ver? — perguntou Oraca.
Quando Oraca pegou nalgumas das folhas, soltas, ficou espantada, um brilho nos olhos tomou conta dela. Para espanto de Morpheus.
— O que se passa Oraca?
— O que diz a MenteDivina sobre estes rascunhos matemáticos — no meio das histórias e das lamentações do autor, tinha de fato alguns rascunhos de fórmulas matemáticas.
— Ah, isso já foi analisado, e são apenas coisas sem sentido, sem qualquer lógica ou fundamento, provavelmente de um matemático amador, talvez um estudante dos tempos antigos. — disse Morpheus após o seu AniPower lhe transmitir a informação proveniente da MenteDivina.
Quem não concordava que fossem só rascunhos era Oraca, pois as semelhanças, embora arcaicamente, com a sua teoria eram demais evidentes. Edmundo Stein, não era um nome conhecido, dos antigos, a sua obra nunca foi divulgada, talvez por não ter sido percebida. Também não era estranha a análise da MenteDivina, pois estava claro que ela ainda estaria muito longe de compreender estes rascunhos e, consequentemente, de compreender a sua teoria.
No entanto, isto ainda não explicava o que Triny havia dito no hospital, e Oraca perguntou.
— Onde está a metáfora da areia e da teia, no livro?
Triny pegou e abriu o caderno, foi folheando, com Morpheus e Oraca a verem as páginas vazias, até que parou de folhear.
— Está aqui — disse Triny apontando para uma página vazia.
Morpheus não sabia o que dizer, para consolar a criança, mas evidentemente ela precisava de ajuda. Inexplicavelmente o AniPower não achou estranho e não estava desligado. "Teria Triny descoberto os truques de Morpheus para evitar a programação neuronal?", questionou Morpheus a ele mesmo.
Oraca ficou intrigada com aquilo. De fato, a criança poderia estar a dizer a verdade, apesar de não ter visto nada. Com base nas fórmulas, poderia haver uma hipótese interessante.
— Oraca, o que acha? — inquiriu Morpheus.
— A sua metáfora da metade do livro desaparecido. — disse Oraca.
Morpheus estava abismado, pode Oraca acreditar assim na criança? Será que ela pensa mesmo que há algo escrito ali que só Triny vê? "Pode Triny estar a falar a verdade, e todos pensarmos que é apenas imaginação da criança?" — pensou Morpheus.
Oraca, vendo que Morpheus estava confuso, resolveu explicar de forma simples o que podia estar a acontecer, com um exemplo:
- Vamos imaginar que um homem, dos antigos, ia ao médico e dizia: "Senhor doutor, estou preocupado com a minha mulher, parece estar a ficar surda, pois preciso sempre de falar três vezes para ela ouvir.". O médico respondeu: "Então vamos fazer o seguinte, você cola-se a 8 metros de distância e pergunta-lhe qualquer coisa. Se ela não ouvir, faz a mesma pergunta a 4 metros de distância. Se mesmo assim não ouvir faz a pergunta a 1 metro de distância. – disse Oraca e após uma breve pausa continuou:
- O homem assim fez, chegou a casa, colocou-se a sensivelmente a oito metros e perguntou: "Maria o que vamos jantar hoje?". A mulher não respondeu, ele colocou-se a 4 metros e voltou a perguntar, nada, voltou a não responder. Então o homem colocou-se a um metro de distância e perguntou: "Maria o que vamos jantar hoje?". A mulher, com uma voz de impaciência, respondeu: "Já te disse três vezes que o jantar é omelete, porque perguntas tantas vezes o mesmo?" – disse Oraca.
Oraca ficou incrédula por ver que Morpheus e Triny, riam que nem perdidos. Era um exemplo simples para ilustrar que a perceção errada dos factos.
– Quando a nossa perceção dos fatos não é precisa, podemos falhar em entender os outros e tomar decisões injustas. A importância de buscar uma compreensão adequada dos fatos é fundamental para evitar mal-entendidos e garantir a justiça nas nossas relações interpessoais. – Comentou Oraca, para tentar colocar água na fervura e baixar a temperatura daquela risota. No entanto teve o efeito contrário ao pretendido. Quanto mais Oraca falava, mais eles riam. Oraca percebeu após algum tempo que fazia aquilo que os antigos chamariam humor. Não foi intencional, mas deduziu que talvez o humor seja importante. O humor é capaz de alçar voo sobre as diferenças e fazer-nos compreender fatos que, de outra forma, não compartilharíamos.
Após algum tempo, como se estivessem a ouvir uma piada pela primeira vez, o riso acalmou e Morpheus, perguntou:
– Quer dizer que podemos ser nós os surdos, que não conseguimos ouvir a Triny?
Oraca, acenou com a cabeça, dizendo sim à questão. Ela, pensou que se queria educar o seu filho, Neo Edolon, teria de aprender a fazer humor. Quanto a Triny, sentiu-se feliz por haver uma possibilidade de alguém acreditar nela. Quanto a Oraca
Pode o humor pode ser uma ferramenta poderosa para promover a compreensão e a empatia? Pode transcender diferenças e fazer entender realidades que inicialmente nos pareciam estranhas ou distantes? Ou contribuir para uma imagem de superação e liberdade? Reforçando a construção de pontes entre pessoas e culturas.
Morpheus, que nunca tinha experimentado tão intensamente o humor, tal como Oraca e Triny, pensou que: "O humor pode ser uma forma eficaz de desarmar tensões e conflitos, permitindo que as pessoas se aproximem umas das outras de maneira mais amigável. Quando as pessoas riem juntas, elas sentem-se mais próximas e podem desenvolver um senso de empatia e compreensão umas pelas outras. Além disso, o humor pode ajudar a diminuir a hostilidade e o preconceito, permitindo que as pessoas se abram para novas ideias e perspetivas."
"E a bruxa? Ou o corvo?" – pensou Morpheus, sem nada dizer. Ele queria acreditar, queria mesmo, mas as páginas do caderno estavam vazias.
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