0.09- A voz que se apega ao ouvido
Albertina, mãe de Triny, contemplava o horizonte através da transparência da esfera que a levava para a biblioteca dos antigos. Pensava como o seu corpo, tão bem cuidado, teria sido admirado em tempos antigos, em que a tonicidade corporal era valorizada. O seu Adónis é um artista nas artes do prazer e ela não resistia às lembranças. O seu corpo estava desvairado e a sua mente estava num pandemónio de pensamentos, tentando compreender a dualidade que a dominava. Como poderia ser que, ao mesmo tempo, em que sentia o calor do prazer na sua pele, também era capaz de pensar em conceitos tão elevados? Seria possível conciliar corpo e alma, ou esses eram dois aspetos que não poderiam coexistir em harmonia?
A MenteDivina não concordava com tais pensamentos, pois eram desprovidos de lógica. Enquanto as NanoAlmas criavam redes neuronais, mais racionais, o seu AniPower recomendava reflexão:
Refletir sobre a vida e a existência é algo inerente à condição humana, mas a MenteDivina exigia o pensamento lógico, deixando as emoções de lado por agora.
"O prazer corporal é natural, mas a emoção só atrapalha. No NovoCéu, lugar onde a vida é completa, as emoções têm tempo e lugar para viver, e é lá que as próximas gerações poderão usufruir. Agora, é hora de acalmar a mente para pensar.
No NovoCéu, sem o conceito de corpo, os pensamentos não são gerados de forma lógica pelas almas. É um lugar onde a vida é completa, e onde se pode viver naturalmente, confiante com pensamentos que enriquecem a sociedade. Após crescer espiritualmente, pode-se ainda ascender a um segundo plano, o céu do céu.
Temos a obrigação de zelar pelo pensamento agora, para que as próximas gerações possam usufruir mais tarde. Foi o raciocínio e a MenteDivina que trouxe a humanidade novamente à superfície. Mas o trabalho não está feito, é preciso reconstruir a natureza. E os seres humanos que morrerem, entretanto, desfrutaram dessa natureza no NovoCéu. É hora de olhar para o futuro com esperança, e deixar as emoções fluírem no lugar certo. Pode levar milhares de vidas no NovoCéu até ascender ao segundo plano, portanto haverá muito tempo, muitas vidas para sentir desejos primitivos, embora naturais..."
Algo aconteceu, e o seu AniPower deixou de falar, noutras circunstâncias Albertina acharia estranho. No entanto, a cabeça estava cheia de memórias quentes da noite anterior e por esse motivo não dou atenção ao insólito da situação.
É nos momentos de maior calor que a lógica é forjada e dá sentido ao desejo. A ideia de que o desejo muitas vezes é originado em situações intensas ou emocionais, e que o pensamento racional é utilizado posteriormente para justificá-lo, não é comum no novo ser humano. No entanto, era o estado momentâneo de Albertina.
Enquanto o seu AniPower se silenciava misteriosamente, Albertina permitia que os seus pensamentos se voltassem para desejos mais intensos e sensuais. Ela sabia que havia uma beleza nisso, uma beleza que não podia ser encontrada apenas na razão. E se essa dualidade era parte do ser humano, por que não a abraçar e explorá-la ao máximo?
Concorda-se, que o corpo comanda a cabeça, é coisa do século XXI. Na opinião de Albertina precisava de um pensamento que a afastasse dos primitivos que destruíram o mundo. E o raciocínio, de Albertina, foi o seguinte:
"Se o ser humano, vai para o paraíso, experimentar a natureza que lhe é devida e dará uso ao corpo como ser natural que é, porque não nos prepararmos já em terra para a outra vida. Sabe-se que é necessário viver várias vidas para a mente se libertar do conceito do corpo e ascender ao segundo plano, onde só existe a ideia pura e o pensamento elevado. O fim último do ser humano é tornar-se espírito puro e doar os seus pensamentos às futuras gerações aqui na Terra. É então natural dar ao corpo já movimente memórias em matéria de desejo para que no NovoCéu a transição para o segundo plano se tone mais rápida. Participando assim com os pensamentos o mais depressa possível.
O que nos leva a pensar sobre a vida e a existência? Ter desejos é inegável, felizmente. Não é loucura, é raciocínio. Afinal, a vida após a morte implica numa simulação da vida na natureza, algo que sempre sonhamos nos momentos de escuridão, ver o sol aparecer e a flor nascer.
Para viver plenamente tem de se dar uso ao corpo - é assim nos animais, será assim no NovoCéu. O problema da continuidade já não é mais um debate persistente, mas algo que é presente. Se o problema da ascensão é questão, é por demais evidente que o novo ser humano não tem limites, e o céu já não basta.
Tão bom sentir os dedos no cabelo, descendo pelas sensações montanhosas em direção ao riacho de onde brota a essência que a alma faz crescer. Crescer ou ascender? Com a eternidade presente, no NovoCéu, o destino é aprender e viver no meio da natureza. Ainda bem que existe Adónis, feito à semelhança da MenteDivina. Feita apenas no conceito, que a MenteDivina é a pura ideia omnipresente. Que sabe tudo, até os desejos mais íntimos que coloca no corpo do Adónis. Ah, esse rapaz, que não me sai da cabeça, que me inunda de prazer. Ah, quanta memórias ao meu corpo dá. Para bem da ciência, claro está."
Se o amor se faz na carne, é para me preparar. Pensar é antever. Por isso penso, pensar é estar prevenida quando o momento aparecer. Preciso treinar, as artes corporais, até a febre desaparecer. É preciso deixar navegar os dedos de Adónis para a lembrança perdurar e a adaptação ao NovoCéu ser mais rápida, quando a hora, da morte, chegar.
Na próxima vida o que conta é a ideia, e se é melhor ter corpo para pensar, que assim seja. Se vamos apenas pelas sensações da mente, sem experimentar fisicamente os deleites da natureza, perderemos tempo em ascender. Então é bom que as memórias terrenas sejam erguidas também no corpo. "
Chegou então o momento de pôr em prática o que havia racionalizado, para bem da ciência e da humanidade. Albertina contempla, no seu íntimo, a ausência de resposta do AniPower, enquanto a sua mente revolvia-se em pensamentos. Como a MenteDivina permanecia em silêncio, ela deduziu que a sua ideia era inovadora, um pensamento de grau elevado. Como quem cala consente, significa que a MenteDivina deve achar o raciocínio correto.
"É tempo de mudar, é tempo de viver, é tempo de prazer.", assim pensou. Claro que se o AniPower estivesse presente acionaria os mecanismos necessários para o juízo voltar, e não deixaria que os desejos corporais criassem um raciocínio artificial.
Talvez até, o AniPower, substituísse a frase por, "É hora de produzir, é hora de pensar, é hora de projetar". Transmitindo a importância de ser produtivo e pensar em soluções e projetos.
Mas como não estava, imaginou ou sentiu uma voz, antecipando o que à noite poderia acontecer: "Sinto o toque da tua mão, o meu coração acelera a cada sensação. O meu corpo vibra, os meus sentidos despertam, não consigo resistir, quero-me entregar..."
Chegada à biblioteca, sentou-se, as pernas balançavam, abriam e fechavam os joelhos se roçavam. Na mente a imagem de Adónis soltando investidas no seu corpo... Não conseguia parar, quando o corpo pede e a cabeça não para, e uma voz baixinha soava ao inconsciente, como uma música, "muda de vida, muda de mente". Uma voz que ia de encontro aos seus desejos, como uma música quando se apega ao ouvido e não quer sair "Deixa o desejo envolver-te, deixa a paixão se alastrar. Deixa o corpo estremecer, deixa o prazer se manifestar... Muda de vida, muda de mente..."
O seu corpo pedia, a mente cantava, imaginava, parecia presa em algum lugar. O corpo tremia, num frenesim sem fim Os pensamentos corriam sem rumo, sem fim
Foi puxada para a realidade quando Oraca e Morpheus entraram na biblioteca. Descomposta, atordoada foi atendê-los. Mas logo a chegou tristeza, devagarinho E a solidão tomou conta, como um espinho. O que é a solidão?
Ali, sem o seu AniPower ligado, viu que não conseguia enxergar os olhos daquele rapaz alto, bem-parecido. "A solidão é não nos conseguirmos mirar nos olhos de alguém." – pensou Albertina – Como se a solidão estivesse ligada à incapacidade de outras pessoas nos verem como nós somos. Mas mais, como se não existisse uma imagem, sobre nós, da outra pessoa que entrasse em nós.
"A solidão é não nos conseguirmos mirar nos olhos de alguém", pensou Albertina, como se estivesse a descobrir um mistério antigo. Era como se a solidão estivesse ligada à incapacidade das outras pessoas de nos verem como nós somos, de entenderem as nossas nuances e complexidades. Albertina sentiu que havia algo mais profundo na sua solidão. Era como se a outra pessoa não tivesse uma imagem sobre ela que se conseguisse infiltrar dentro do seu ser. No fundo, era como se o mundo não soubesse da sua existência para além da pele. Ela se sentiu como uma sombra, uma presença invisível que vagava pelo mundo sem nunca ser notada.
Morpheus, sabia que Albertina estava desligada e que não estava bem. Pensou que talvez fosse devido aos traumas da filha, ao coma do marido, o que era perfeitamente natural sentir-se desamparada, ainda por cima sem o AniPower. E disse a Albertina que ele e Oraca iriam procurar um livro na biblioteca que não estivesse catalogado, e que não precisariam de ajuda. Para Morpheus, aquele momento foi mais um indicador que Triny precisaria de ajuda e que ele ia ajudar a criança.
Oraca e Triny entraram no armazém da biblioteca, um espaço enorme onde havia alguma obras de arte, livros antigos que tinha sido rasgado, etc. No geral tudo catalogado, poderia existir pequenas coisas não catalogadas, mas à partida seria algo sem importância. No entanto, Oraca queria saber...
Albertina ficou, novamente, entregue aos seus pensamentos:". Estar só é uma angústia que nos consome, uma sensação de vazio que nos elimina. Procuramos por um olhar, um afeto, um toque, que nos arranque dessa dor que tanto nos sufoca. Uma forma de o mundo vir até nós. Entrar dentro de nós."
De repente, Albertina voltou a sentir aquela música, "muda de vida, muda de mente" ..., e os pensamentos trouxeram Adónis de novo, à imaginação.
Talvez fosse uma tentativa de escapar da solidão, ou talvez uma maneira de se sentir parte de algo maior. Mas a verdade é que o mundo parecia distante, inalcançável. Ela ansiava por uma sensação de pertencimento, talvez fosse uma forma inconsciente de transferir o mundo para si como uma forma de compensação. Ele queria sentir o mundo com o corpo, como se ao ultrapassar os limites físicos, a alma pudesse absorver a essência da experiência e transformá-la em prazer duradouro. O desejo viciante que Adónis penetrasse o seu corpo como se este pudesse levar o mundo a si.
Será que Albertina poderia explicar o que sentia quando saísse do transe em que se encontrava? Ou será que tudo isso era muito mais do que um simples desejo? E quem seria o responsável por aquela música que ecoava nos seus ouvidos? Seria apenas imaginação ou algo mais misterioso e transcendental?
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