𝐈𝐧𝐭𝐫𝐨𝐝𝐮𝐜̧𝐚̃𝐨 (𝐏𝐭.𝟏)
2005, oito anos antes da morte de Julia Klum.
Como uma criança de dez anos de idade, existiam poucas certezas em sua vida que Heather Lung confiava cegamente.
A primeira era que gostava muito de quebra-cabeças. Para os dedinhos calejados da garota, juntar peças em seus encaixes no rumo da grande imagem final era uma tarefa estranhamente satisfatória. Ela colecionava tantos daqueles passatempos que a mãe não lhe permitia mais comprar novos enquanto não desapegasse dos antigos — o que volta e meia punha em dúvida, mesmo que rapidamente, a segunda certeza:
Heather tinha uma mãe que a amava pra caramba.
Heloise Lung era uma mulher de fibra, muito competente em tudo o que fazia, que trabalhava como esteticista em uma clínica para dondocas e ainda arranjava tempo e energia para cuidar da filha. O amor recarrega, Heather, não esgota.
A mãe cozinhava, brincava e dava beijinhos de boa noite, tudo de bom grado. Naquele dia, só fora um pouco diferente porque a mulher dera o beijinho mais cedo ao deixar a filha para dormir na casa dos Klum. Heloise prometera passar a noite com a avó doente no hospital e não considerava o local adequado para uma criança descansar em plena quarta-feira, muito menos um apartamento deserto sem a supervisão de um adulto.
O que levava Heather à sua última certeza: Julia Klum e sua família eram gente boa.
— Boa noite, garotas — sussurrou a Sra. Klum da porta do quarto.
— Boa noite, mamãe — disse Julia, coberta até o pescoço pelo lençol estampado.
— Boa noite, tia Tina — Heather imitou.
Tina curvou os lábios e fez um clique no interruptor. A porta fechou com um ganido, cuspindo para dentro do cômodo somente um fraco feixe da luz do corredor.
Virada para a parede da sacada, Heather não fechou os olhos ao sentir o colchão se remexer sob seu corpo. Quem é que tinha uma sacada inteira à pura disposição no próprio quarto?
Heather não, mas Julia sim.
Elas haviam se aproximado no primário, lá pelo estágio da alfabetização, unidas pelas dificuldades em acertar a pronúncia da letra R. Uma complementava a outra e se completavam em suas diferenças, tipo um quebra-cabeças. Heather era mais na dela, Julia era hiperativa. Heather amava o calor, Julia preferia o frio. Heather não se dedicava a socializar com muitas crianças, Julia queria liderar uma gangue do parquinho. Heather não vivia com mais do que o necessário, e Julia tinha uma sacada só sua.
A anfitriã cutucou a hóspede na costela com o cotovelo.
— Ei — falou, segurando uma caneta laser que escondera na fronha do travesseiro. — Olha como eu treinei o Tom direitinho.
Julia agitou o raio pelas paredes, depois para baixo do vão entre a porta e o tapete. O gato de estimação de longos bigodes não demorou a anunciar sua presença com as garras arranhando a madeira. Julia recolheu a luz para a penteadeira e as duas esperaram até que Tom milagrosamente abrisse a porta para continuar perseguindo o pontinho vermelho. Trocaram risadas sonolentas ao vê-lo enlouquecer pelo quarto.
— Muito legal, Jules — concedeu Heather.
— Né? E se a mamãe ou o papai vêm aqui, é só fingir que estou dormindo e largar toda a culpa com o gato.
Heather riu.
— Ele deve odiar você em gatês.
— Eu bem que gostaria de saber. — Julia direcionou o laser para o interior do armário, e assim foi o gato arranhar portas outra vez. — Sempre quis aprender a falar gatês.
Heather virou de novo, reacomodando a cabeça no travesseiro.
— Você quer aprender muitas coisas — comentou a verdade.
— É claro! — Julia guinchou em agudo. — Você não vê o meu pai? Ele sabe de tudo! Vou ser igual ele quando crescer.
— Uma neulorogista com um buraco na cabeça?
— Sem o buraco. — Julia tateou a cabeça para se certificar de que todos os cabelos permaneciam intactos.
As pálpebras de Heather começavam a pesar, puxando seus cílios para baixo. Aquele papo de buracos na cabeça e futuros extremamente distantes estava lhe cansando.
— Você podia ser uma treinadora de gatos...
— Podia — Julia concordou, reflexiva. Tom agora rodava em círculos para tentar acompanhar o laser. — O que você vai ser?
Heather bocejou ao mirar o céu pontilhado para além da balaustrada da varanda.
— Uma resolvedora profissional de quebra-cabeças difíceis.
— Daqueles de duzentas peças? — Julia ponderou.
— Daqueles de mais peças do que nós sabemos contar.
Julia imaginou a amiga na frente de uma mesa repleta de pecinhas soltas, gastando dias para montar um quadradinho que fosse.
— Deve pagar bem — conjecturou, séria.
— Com certeza paga — Heather retrucou.
Ficaram em silêncio, exceto pelo som do gato pulando e da televisão em volume baixo no térreo. Heather se permitiu ninar pela exaustão e foi perdendo a consciência conforme relaxava devagar. Estava na beira do abismo para o sono profundo quando o quarto foi engolido por uma quietude pétrea repentina. Tom tinha parado de atacar o laser e encarava fixamente um ponto cego do outro lado da cama, os olhos amarelos arregalados.
Confusa, Julia balançou a caneta com mais força.
— Heather — chamou ela, com uma urgência assustada. — Acho que quebrei o gato.
Relutantemente, Heather abriu um dos olhos.
Ela pensou estar sonhando acordada ao avistar uma linda borboleta fosforescendo em círculos fáceis pelo ar. Igual ao gato, arregalou os olhos.
O inseto parecia quase místico, brilhando em tons néons a cada bater gracioso das asas azuis com detalhes em branco. Voava em trajetórias curtas, delicadas, largando atrás de si rastros azuis que instantaneamente se dissipavam no escuro. Heather era incapaz de desviar sua atenção dele, sentindo como se falasse com ela. Em seu coração, uma implacável sensação de familiaridade palpitava.
Ela estendeu o indicador lentamente na direção da borboleta, com esperança de que pousasse.
O bicho voou seu caminho para descansar sobre o dedo dela. De perto, era ainda mais mágico e encantador. Parecia notar o fundo da alma de Heather, desvendar os segredos que a menina sequer sabia ter.
— Julia... — sussurrou ela. — Você está vendo?
Ainda encucada com o gato, Julia franziu as sobrancelhas para a amiga.
— Vendo o quê? — perguntou, sem entender.
— A borboleta! — Heather exclamou.
Julia estreitou os olhos e moveu a cabeça, tentando enxergar nas sombras. Sem sucesso. Tudo o que via era Heather sorrindo feito uma paspalha para a varanda, com um punho erguido e um dedo estirado. E Tom paralisado na mesma posição de alerta, é claro, alheio ao laser que ela não desistira de chacoalhar em seu focinho.
— Ai meu Deus — resfolegou Julia. — Será que eu quebrei também?
Como ela podia não ver?, Heather se perguntava. Estava diante delas, tão cintilante e gloriosa que era impossível ignorar.
A borboleta voou até a mochila da garota, em um canto atrás das cortinas farfalhantes. Heather se levantou e a seguiu na ponta dos pés para não atrair ninguém. O animou pousou no bolso lateral, onde ela enfiou a mão e agarrou uma tira de papel amassada com o número telefônico fornecido pela mãe para casos de emergência.
Não havia nenhuma emergência, mas... Heather precisava ligar.
Olhou pra Julia, que a encarava com infinitos pontos de interrogação na testa.
— Você tem algum telefone aqui em cima?
Julia volveu-se para a porta entreaberta.
— Acho que no escritório da mamãe. — Ela demonstrava chateação nas írises castanhas ao fita-la novamente. — Você quer ir embora?
— Não, não. Só quero falar com a minha mãe rapidinho.
Elas saltitaram habilmente para o corredor, o impacto dos passos amortecido pelo carpete. Os cochichos do Sr. e da Sra. Klum eclodiam do piso inferior, depois das escadarias de mogno e do corrimão talhado em dourado. Julia carregava Tom em seus braços, espreitando-se na frente de Heather para o escritório. Os miados do gato eram direcionados para a borboleta e suas patas gatunhavam aleatoriamente.
— Quieto, Tom! — Julia gralhou, a mão na maçaneta prateada.
Heather conteve a risada.
— É a vingança do gato.
As dobradiças rangeram em um gritinho fino pela noite.
O escritório era envolvido por um breu impressionante, apesar da luz do luar se espremendo de leve pelas persianas. Na mesa abarrotada de cacarecos e papéis com cara de importante, um singelo telefone fixo estava quase soterrado, e o próximo pouso da borboleta foi justamente nele.
Convencida de que agia certo, Heather discou o número do papel nas teclas do telefone.
— Vai depressa — Julia pediu, esmagando mais o pobre do gato contra a barriga. — Eu vou ficar vigiando.
A chamada emitiu um tuuu, tuuuu, tuuuu contra o ouvido de Heather algumas vezes antes da embargada voz de Heloise aparecer no lugar.
— Alô?
— Mamãe? — Heather abaixou a cabeça.
— Heather? — Heloise se espantou. — O que aconteceu? Por que você não está dormindo?
A menina mirou a borboleta bonita, que agora se exibia em rasantes garbosos ao redor do computador da Sra. Klum.
— Eu não consegui... — Heather mentiu. — Precisava falar com a senhora.
Heloise suspirou longamente na linha.
— Ah, querida...
— A bisa tá bem? Tá dormindo?
A mãe limpou a garganta, escoltada por uma fungada.
— A bisa... a bisa faleceu, amor — Heloise contou, cabisbaixa. — Há uns dois minutos.
Heather piscou, vidrada na borboleta casualmente parada no alto do grampeador. O movimento de suas asas era mais sossegado do que nunca, que nem um sorriso de conforto ou um cafuné garantindo que tudo ficaria bem. Curiosamente ou não, ela parecia de fato sorrir.
— Faleceu? — Heather balbuciou, boba.
Outra fungada.
— É. Virou uma estrelinha no céu, filha.
A borboleta se deslocou até ela, tocando-a na ponta do nariz com as anteninhas. A garota sabia que não era nada fruto da sua imaginação, porque sentiu as cócegas agradáveis e o aroma de pomada. Borboletas tinham aquele cheiro? Heather desconfiava que não.
Em seguida, observou o bicho flutuar para longe, desaparecendo em meio a uma vívida névoa azulada antes de alcançar a janela.
Por fim, Tom parou de miar.
— Finalmente. — Julia bufou. — Gato sacana.
Foi quando Heather ganhou uma quarta certeza: Ela era definitivamente especial.
Pra me encontrar nas redes, é @hounselllara2 no passarinho e @hounselllara no Instagram ッ Obrigada pela leitura e até o próximo domingo!
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