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ᴵˣ. 𝐂𝐚𝐩𝐢́𝐭𝐮𝐥𝐨 𝐧𝐨𝐯𝐞

2013, a noite da morte de Julia Klum.

Por coincidência ou não, em seu último dia de vida, tudo o que Julia menos queria era viver.

Sentada no banco carona de Felix, com quem ela evitara passeios de carro desde o primeiro, a garota pensava que seria muito mais fácil simplesmente não existir. Ou, ao menos, não existir em uma realidade tão caótica como a sua.

Em casa, os pais andavam se desentendendo como nunca. Edgar quase não escondia mais as traições e Tina pouco suportava o descaramento do marido. Se não fossem as discussões sussurradas envenenando a residência, Julia não teria se convencido a sair para falar cara a cara com a deusa grega que vivia ignorando suas mensagens ultimamente. Ela talvez tivesse sobrevivido até o dia seguinte.

Ao seu lado, Felix trocou de marcha. A namorada se empertigou, com medo de que o Lexus desembestasse de novo.

— Você não vai falar comigo? — perguntou o garoto, olhando pra frente.

Julia esfregou os punhos fechados em seu colo.

— Estou pensando — mentiu. — Tem os meus pais....

— Eles não vão se importar se você não voltar. — Felix permanecia calmo, diferente de sua afirmação terrivelmente verdadeira. — Você já é maior de idade, Julia, pode dormir na casa do seu namorado.

Ela baixou os olhos para as luvas de renda. Posso, mas não quero.

O tema da festa de iniciação daquele agosto era Anos 50. Julia estava vestida a caráter com uma roupa de poás preto e branco, no tipo de corte que valorizava seus peitos e a emprestava uma silhueta muito curvilínea. Ela ficara com preguiça de arrumar o cabelo no mesmo estilo das fotos antigas, mas lhe confortava saber que não era a única desleixada na ocasião.

Com uma comemoração em tema de Anos 50, Ártemis só podia querer enterrar o The Francium de vez.

— Olha, Felix, eu vou pensar — Julia reforçou, com um suspiro. — Até o fim da noite te dou uma resposta, tá bom?

O garoto riu, sem humor, acelerando conforme a perna de Julia sacodia incansavelmente.

— Não entendo você, Jules, não entendo. Um dia está beijando garotas e no outro não quer nem passar a noite na minha casa? — Mais uma troca de marcha. — Imagina se eu não estivesse indo embora mês que vem.

Julia engoliu uma respiração trêmula para conter o desejo de se atirar no asfalto. Felix prometera não dirigir que nem um maldito Lewis Hamilton dos colapsos nervosos, mas ela não parava de olhar para o velocímetro tendencioso de números altos. A sensação de que estava comendo na palma da mão do namorado já era um tanto frequente, e Julia nunca se habituava com ela.

— Se você me perdoou mesmo, Felix, não é pra ficar jogando isso na minha cara — ela argumentou, tensa. — Já disse que foi um erro.

— E eu não disse que te perdoei — Felix devolveu. — Disse que não íamos nos separar, mas ainda estou trabalhando na outra parte.

— Está mesmo? — Julia içou uma sobrancelha. — Pois não parece.

O sorrisinho frio que o namorado a dedicou poderia congelar até os caldeirões mais quentes do Inferno.

— Você não vai virar essa culpa pra mim, Julia. Quem colocou os chifres na minha cabeça não tem o direito de ditar como eu devo ou não trabalhar o perdão.

Okay. Fora uma patada merecida.

Eles estavam há semanas naquela situação, e quem não entendia mais nada era ela. Felix insistia em manter o relacionamento, mesmo com as desavenças de gato e rato e as preces de Julia pelo término. O amor próprio do garoto havia se escafedido, sabe-se lá para onde. Seu namorado claramente não queria perdoá-la, mas também não abria mão.

Julia estava se fingindo de boba. Na verdade, entendia tudo muito bem.

— Não acho que você esteja trabalhando nada. — Ela arranjou coragem para murmurar, sem encará-lo. — Acho que está utilizando minha culpa contra mim para me fazer de gato e sapato. — O passeio de carro era um exemplo. — Não vai ser assim na sua casa? Se eu dormir lá, não vai me convencer a transar com a merda da traição na ponta da língua?

Travada, a mandíbula de Felix dançou sob a pele do queixo.

— Não sei se conheço outro jeito de conseguir perdão, linda — ele confessou.

Julia sentiu os olhos arderem, mas se recusou a chorar. A maquiagem estava impecável demais para ser arruinada antes mesmo da festa.

Felix não conhecia nada sobre perdão, e Julia não conhecia nada sobre ele. Ela havia perdido seu menino sapeca para o crápula nojento que guiava o Lexus pela avenida. O Felix por quem se apaixonara perdidamente (o pacote completo) não parecia ter algum dia existido. Julia apenas idealizara alguém com uma personalidade perfeita para um rostinho bonito, e estava pagando o seu preço.

— Quem te contou, Felix? — Voltou a questionar. — Quem te contou sobre a traição?

— O que interessa?

— Muito. Interessa muito.

Felix a fitou rapidamente antes de parar o carro em um sinal.

— Interessa por que você não teria me contado?

Julia o fitou de volta. Estavam tão distantes que o veículo parecia apertado, minúsculo demais para as toneladas de ressentimento que cresciam entre os dois.

Em uma segunda análise, Julia concluiu que os restos de seu namoro não estavam muito diferentes dos restos do casamento de seus pais. Era tudo o que ela menos queria, mas, de tanto se espelhar na duvidosa excelência de Edgar, acabara destruindo tudo ao seu redor que nem o pai. Julia era uma adúltera como ele, e quase tão terrível quanto o namorado que havia traído.

Quase.

— Quem te contou, Felix? — Julia repetiu, incisiva.

Felix respirou fundo, a caixa torácica se expandiu sob o paletó. Ele estava protegendo o dedo-duro há meses, o que provavelmente não seria de sua índole caso a pessoa não fosse uma amiga.

Taylor.

A prima Ballinger fora a única a saber acerca da burrada com Ártemis, e só porque Julia desejou retribuir a confiança dela. Depois do relato sobre a agressão de seu pai, não falar de um mero beijo pareceu injusto, sobretudo quando Taylor questionou o motivo da demora de sua cerveja — bem-feito para Julia por acreditar que a sinceridade não lhe traria transtornos.

Ela sabia que Ártemis não abriria o bico. Pelo olhar seco que fugia do seu na volta para a cidade, a deusa grega também odiaria que o segredo se espalhasse. De fato, quem estava certa era ela.

Julia havia errado em beijar outra boca e esquecer que, ironicamente, ela só podia confiar mesmo nos seus problemas de confiança.

— Foi Valerie — Felix soltou.

A namorada piscou.

— Valerie?

— É. Eu não quis falar nada pra vocês não brigarem, mas foi ela. Por mensagem. Ainda tenho a conversa, se você quiser ler.

Valerie. Instintivamente, o fim do mistério só revoltou Julia ainda mais com a realização de que fora apunhalada duas vezes. Por duas amigas próximas.

Taylor poderia não ter dado com a língua nos dentes para Felix, mas com certeza dera para Valerie, e nenhuma das duas teve a decência de assumir sua cretinice. Apesar de Julia não ter acusado ninguém explicitamente, ela desabafara muito com a prima Walcott para que Valerie nunca desse um indício de que era uma filha da puta — e que sua condição corria na genética.

Sem sombra de dúvidas, Julia estava arruinada. Não havia mais ninguém em toda a sua vida que pudesse confiar.

— Pense bem mesmo sobre ficar comigo lá em casa — Felix disse, ao estacionar o Lexus na entrada da mansão. — Acho que nós dois estamos precisando disso.

Ele saiu do carro, e Julia se apressou nos saltos para acompanhá-lo. Músicas velhas eclodiam do casarão imenso cujo jardim era pontilhado por convidados no mesmo visual retrô. O chafariz de pedra fora revestido por discos de vinil decorativos, em uma das cafonices mais absurdas que Julia já testemunhara no The Francium. Estava óbvio que o bom gosto do grupo se perdia junto de seu prestígio.

Que bom que ela decidira se desligar de vez dele.

— Felix! — Julia ralhou para o namorado que acelerava as pernas pela grama. Felix não se virou. — Espera!

Ele a ignorou completamente e desapareceu pelas escadarias suntuosas. Debaixo de uma bufada irada — e um pouco constrangida —, Julia praguejou bem uns cinco palavrões.

Ela girou bruscamente nos calcanhares, movida apenas pela raiva que borbulhava em suas veias. Não foi preciso procurar muito para localizar o rosto de Taylor na festa, junto de mais alguns com quem a prima linguaruda conversava e dividia risadas. O cabelo loiro estava armado em um penteado de época, em conjunto com a camiseta preta dentro da saia de bolinhas.

Julia segurou a bolsa com força, feito um tanque de guerra prestes a passar por cima dos adversários. Ela largou alguém falando sozinho às suas costas e marchou determinada até Taylor.

— E eu nem estava... ah, Julia! Quem é vivo sempre aparece! O que...

Julia a puxou pelo antebraço sem a menor cerimônia, desprezando os olhares confusos e os protestos de Taylor acerca do drink que derramava no chão. Em uma área mais reservada perto da piscina, onde a música não soava tão alta e pouca gente circulava, Julia resistiu ao impulso de empurrar a garota na água — o que a segurou foi o trauma da memória do acidente de Heather naquele verão.

— Você falou pra Valerie sobre eu e Ártemis? — Ela foi direto ao ponto.

Taylor empalideceu alguns tons. Em milésimos de segundo, sua expressão pulou de desentendida e indignada para criminosa e sem-graça.

— Foi sem querer... — Ela se encolheu.

Julia cerrou os punhos e inflou as bochechas com um grunhido reprimido.

— Sem querer? Sem querer? — Ela avançou um passo truculento pra cima de Taylor, que recuou o dobro. — Vocês foderam com toda a minha vida sem querer?

— Ei, eu só me descuidei com a Valerie — a loira se defendeu. — Quem contou para o Felix foi ela.

— Por que você falou, Taylor? Eu disse que era segredo.

— Escapuliu! Eu não sou acostumada a esconder nada da Valerie.

— Só que isso não dizia respeito a você, merda!

Taylor exibiu um biquinho de arrependimento.

— Desculpa. Foi sem querer mesmo.

Julia quis espernear, se debater, brigar, mas de nada adiantava — como as desculpas de Taylor, era inútil. Não mudaria o que já havia rolado.

— Você poderia ter se redimido se tivesse dito que Valerie quem me entregou — Julia apontou, chateada. — Mas aposto que não disse porque ela pediu, não é? Porque sua boca grande obviamente tem preferências.

Taylor estreitou os olhos, só um pouquinho.

— Você tá reclamando porque eu sou mais amiga da minha prima do que sua?

— Puta que pariu, você ainda admite. — Julia abriu os braços só para deixá-los despencar logo ao lado do corpo.

— Fala sério, Julia. Eu conheço a Valerie desde que nasci. — Taylor franziu o cenho. — Não é como se você também não tivesse as suas preferências.

— Entre vocês duas eu prefiro a morte agora.

Taylor riu com um inacreditável quê de deboche, e dobrou um braço atrás do que empunhava seu copo de bebida. Tinha cheiro de cereja, ao que Julia era perigosamente alérgica.

— Estou falando da Heather — Taylor atalhou.

Julia parou, encarando a outra.

A garota quase não falava sobre a melhor amiga de infância com Valerie ou Taylor, embora logicamente nunca tivesse se esquecido dela. Longe das lembranças já nubladas, Heather era um assunto sensível que as três preferiam evitar, em uma espécie de acordo subentendido que perdurara durante os anos — Julia não gostava mesmo de citar Heather em suas conversas.

Era doloroso, confuso, e ela sabia que ninguém entenderia. Tinham sido somente Heather e Julia contra o mundo por praticamente uma década. Ninguém a conhecia como Julia e, portanto, ninguém sofria a sua falta como Julia. Valerie e Taylor talvez chegassem o mais perto de todos, mas alguns poucos meses de convivência jamais se comparariam à uma vida toda.

Julia inalou o ar com força. O raciocínio de Taylor fazia sentido, mas ainda não a salvava da irresponsabilidade de seus atos.

— É, você tá certa. Heather nunca sairia fofocando os meus segredos por aí. É esperado que eu prefira ela mesmo.

Taylor não aparentou levar para o pessoal.

— Aposto que prefere, o que só deve piorar mil vezes que ela não seja mais uma opção.

A visão de Julia embaçou sob lágrimas de uma tristeza avassaladora. Visto que a amizade nunca tivera um fim propriamente dito, ela sempre se perguntava se Heather realmente virara carta fora do baralho. A ausência de encerramento era uma das partes mais doloridas do problema, ao ponto que Julia podia quase odiar a melhor amiga por ter lhe condenado a um castigo tão cruel.

— Não tente fugir do assunto, Taylor — balbuciou. — A Heather não tem nada a ver com a sua cretinice.

Taylor suspirou, e entornou um gole do drink mortal.

— Sinto muito por ter falado pra Valerie, Julia. Sinto muito também por não ter impedido que ela contasse pro Felix. E eu tentei, acredite. — Ela engelhou a testa, os olhos arregalaram-se ligeiramente. — Estou arrependida de verdade pelos dois vacilos, mas, por favor, não me obrigue a ficar escolhendo entre vocês duas. Não é justo.

Julia exibiu um sorriso afetado.

— Não é. Até porque você já escolheu.

— Julia...

— Eu nunca deveria ter te contado nada. Foi só porque tive pen...

Julia selou os lábios assim que percebeu seu deslize, mas Taylor já emitia um ruído de escárnio que tangia o desapontamento.

— Só me contou porque teve pena? — A garota cruzou os braços. — Eu te falei que não precisava disso.

Dissimulada, Julia rodou uma meia volta nos saltos. Não proporcionaria à Taylor o gostinho de ver seus olhos encharcados.

— Onde está a X9, afinal? — perguntou.

— Vai se atrasar um pouco — Taylor disse. — Parece que a tia Ann não gostou do vestido que ela ia...

— Tá, tanto faz. Quando for avisá-la que eu já sei de tudo, peça pelo menos para não demorar muito. — Julia esticou os lábios num sorrisinho sardônico. — Eu quase não tenho mais o que fazer aqui além de gritar com ela mesmo.

Taylor tomou fôlego para uma resposta, mas Julia não lhe deu a chance. Pelo contrário, deu-lhe as costas e se encaminhou para a mansão pouco convidativa.

Sugar o choro pra dentro foi impossível. A realidade era que sentia inveja de Valerie e Taylor, as primas infelizes, por terem algo que ela costumava ter com Heather: Uma conexão. Mesmo com as diferenças e as alfinetadas, as duas encontravam uma na outra a parceria pra tudo. Julia fora torcer por ela em um torneio de quebra-cabeças uma vez, e Heather fora em uma festa só para agradá-la.

De inúmeros momentos sinceros, haviam despencado para o nada. Pelo visto, Julia falhara em dar a volta por cima.

O casarão estava ainda menos movimentado que o jardim, habitado somente pelos quadros nas paredes, a música e os gatos pingados transitando nos cômodos.

Pareciam um cultivo de plantas murchando na seca. Deprimente era a definição.

Julia se deteve na busca por um banheiro ao avistar as costas ossudas bem conhecidas do outro lado do salão. Mesmo no comando de um navio em naufrágio, Ártemis conservava toda a elegância de quem não tinha nada a temer. Ela estava a sósia de Marilyn Monroe, com o famoso vestido vermelho, os cabelos curtos ondulados e até a pintinha característica ao lado da boca.

Julia respirou fundo, e aprumou os ombros enrijecidos. Por alguma irracionalidade boba, ela tinha pavor de abordar Ártemis em público desde o beijo, como se mais gente fosse desvendar o segredo só por vê-las interagir. No entanto, havia se forçado a comparecer àquele último evento por um motivo, e não podia amarelar perto do conflito grandioso para o qual tanto ensaiara.

Após se certificar de que não estava com rastros de rímel escorridos pela cara, Julia foi ao ataque.

— Preciso falar com você, Ártemis — ela intimou a garota, séria, e sorriu duramente para o rapaz com a deusa grega. — A sós, por favor.

Ártemis se virou com uma agilidade mais que suspeita e o garoto não gostou muito da interrupção, que não soara tão cordial quanto Julia imaginou.

Inabalada, ela içou as sobrancelhas para enfatizar o pedido e ele grunhiu antes de se retirar com uma cara de bunda excepcional.

— Você tem a educação de uma condessa — Ártemis repreendeu, meio sarcástica.

Julia semicerrou os olhos.

— Por que está me evitando desde a casa do campo?

Ártemis titubeou, surpresa pela objetividade da mais nova, e trocou o peso de perna.

— Te evitando? Pfft. — Ela desviou o olhar envergonhado para um Mickey Mouse de papelão. Jesus. Eu só estava ocupada, Julia. Sua arrogância acordou em chamas hoje, não?

— Ocupada com o quê? Com essa festinha de criança? Pfft — Julia a imitou. — Tente de novo.

A carranca de Ártemis adquiriu proporções bíblicas, mas ela também fez vista grossa para o insulto.

— O que você quer, Julia?

Julia alisou a saia do vestido em um tique nervoso. Ia comunicar que estava deixando o The Francium oficialmente, no máximo de dignidade que lhe restava. Ela ainda ficava em cima do muro antes, com os receios de sempre agravando a indecisão, mas o beijo esquisito e toda a confusão que ele causara foram o estopim final da batalha — o lado que não aguentava mais o grupo venceu.

A garota empinou o queixo.

— Estou saindo do The Francium depois de hoje. Achei que deveria te falar pessoalmente.

Tudo em Ártemis derreteu. Seus lábios se arrastaram para baixo, os ombros caíram e o queixo também. O porte de perdedora que ela tanto tentava disfarçar saltou aos olhos.

— Como é que é?

— Você ouviu. Me desculpa, Ártemis, mas eu não posso mais.

— O que... do que você está falando? — Ártemis ficou agitada, como se tentasse assimilar mil coisas ao mesmo tempo. — O que aconteceu?

Julia jamais descobriria como cabia toneladas de audácia em uma garota só.

— Eu não posso mais conciliar as exigências do grupo com... com... Com todo o resto. — A garota gesticulou, suas justificativas muito bem treinadas foram espantadas da língua pelo olhar suplicante que Ártemis fixava em seu rosto. — Eu quero ingressar em Harvard no ano que vem e minha dedicação precisa ser total desde ag...

— Argh! — Ártemis subiu os braços para o teto. — Você não entendeu nada do que eu disse naquele dia?

As palmas de Julia suavam. Porcaria de luvas.

— É você quem não entende, Ártemis. Eu sinto muito.

— Não, Julia, que droga. — Ártemis a agarrou pelo pulso, os olhos verdes injetados em desespero. — Por favor. Se você for, as suas amigas vão junto, e não tenho mais nada sem vocês.

Julia chiou um risinho ácido, e se desvencilhou da deusa grega.

— Não precisa se preocupar, Ártemis. Não acho que Valerie e Taylor vão junto comigo pra qualquer lugar mais.

— Mas que diabos! — Ártemis resmungou, uma veia pulava em seu pescoço. Era evidente que o que ela queria mesmo era gritar. — Eu comecei esse grupo como uma piada, Julia, uma brincadeira idiota, e não vou permitir que ele se torne isso de novo. Você tem noção de tudo o que eu já conquistei pra chegar até aqui? Nem acredito que estou me humilhando para uma qualquer.

Julia ia bancar a superior e só ir embora, sem dar trela para as provocações; ela jurava que ia. Entretanto, as ofensas de Ártemis a atingiram mais do que o normal.

Julia nunca havia esperado que o beijo delas fosse transformar algo na relação conturbada das duas, mas talvez tenha pensado que Ártemis gostava dela um pouquinho mais do que admitia — gostava o bastante para beijá-la e tratá-la melhor do que tratava desde que se conheceram. Ser chamada de qualquer foi um golpe brutal, que estilhaçou a ilusão de Julia e a pescou no anzol da deusa grega.

Gradativamente, ela se virou de volta para Ártemis.

— Nada pode se tornar o que nunca parou de ser, Ártemis. — Julia rangeu, os joelhos tremiam em harmonia com os punhos. — Um grupo tosco que põe um punhado de adolescentes populares em um pedestal que só existe nas nossas cabeças é uma piada pronta por natureza. É o que sempre vai ser, não importa o quanto você tente se convencer do contrário.

Ártemis assoprou um riso ofegante.

— É feio cuspir no prato que você adorou comer por anos, Julia Klum.

— Mas não sou só eu que estou cuspindo, sou? — Julia se aproximou cada vez mais, encurralando uma Ártemis angustiada na quina da parede. — A sua única forma de ter gente por perto vai ruir, Ártemis, e não há absolutamente nada que você possa fazer a respeito. — Ela projetou o queixo pra frente, preparada para o arremate. — Nem mesmo se humilhar para uma qualquer.

O coração batia desenfreado, carregado pela enxurrada de rancores que incendiavam Julia de dentro pra fora. Foi óbvio que eles queimaram Ártemis também.

— Beba — ela respondeu, os olhos vermelhos, e Julia só notou o copo nas mãos da garota quando o vidro foi prensado contra a sua barriga. — Curta a festa e depois conversamos.

O drink tinha uma cor apagada de rosa, consumido até um pouco mais da metade, e cheirava a uma mistura forte de gin e limão. Credo. Julia não ia negar que estava muito tentada a se embebedar para afogar as mágoas, mas, pelo andar da carruagem e a pobre variedade de bebidas, parece que só se sustentaria a base de água pelo resto da noite.

De súbito, sua boca gritou por Ártemis antes que seu cérebro compreendesse o porquê.

— O que foi? — A impaciente deusa grega, já a alguns enfeites bregas de distância, a encarou.

Julia engoliu em seco.

— Por que você me beijou?

Ártemis não esboçou nenhuma reação além da piscada de olhos, sem-graça pela pergunta.

— Eu estava chapada — ela sussurrou, a voz falhava os decibéis. — Faço idiotices estranhas quando estou chapada.

— Não pareceu que foi só porque você estava chapada.

Ártemis a fitou por um longo tempo, que poderiam ter sido séculos ou anos-luz.

— Mas foi. Você não é nenhuma Coca-Cola no deserto, Julia — ela completou, enquanto se afastava com pressa.

Julia entornou um gole do drink sem fraquejar, pela primeira vez não mentalizando o pai ou seus sermões imbecis. Edgar não tinha qualquer moral para julgá-la se era o cara que a trouxera ao mundo para uma família que nem respeitava mais, junto de uma mulher que não se importava em devastar.

A garganta de Julia ardeu furiosamente, e ela não soube se era pela amargura ou pelo limão. O gin rodopiou em seus sentidos até que a garota cambaleasse para avistar o namorado na ponta oposta do piso, a atenção presa nela que nem o cigarro preso entre seus dedos.

Felix estava encostado ao batente de uma portinhola na traseira da cozinha, que dava para um deque com churrasqueira nas entranhas da mansão. A escuridão além da porta engolia a fumaça cinza do cigarro e soprava uma brisa fina que sacodia os cabelos do garoto.

Felix havia observado toda a sua conversa com Ártemis. Do ângulo onde estava, não era difícil. E não parecia irritado, mas quase entretido, como se algo inapropriado o divertisse imensamente.

— Mas que merda, Felix? — Julia gralhou, do outro lado do balcão preenchido por bandejas de quitutes e jarras de bebidas.

O garçom e a garçonete estavam circulando por entre os convidados, mas a senhora que era chefe deles não. Concentrada na preparação de uns canapés na beira da pia, ela fingia não ouvir a discussão prestes a se desenrolar às suas costas.

— Drink de limão, huh? — Felix escorregou os olhos para o copo da namorada. — Achei que você não era fã.

Julia esboçou uma careta, tanto para o cigarro quanto para a fruta. Definitivamente odiava sabores ácidos e nicotina. Havia limites até para quando ela mesma queria extrapolar.

— E eu achei que nós tínhamos um trato sobre você fumar na minha frente. — Julia roubou da boca dele o cigarro, interrompendo uma tragada, e atirou na grama úmida.

Aí, sim, Felix ficou irritado. E tossindo.

— Porra, Julia, ainda estava no começo! Qual é o seu problema?!

— Qual é o seu problema?! — Julia afundou um indicador em riste no peitoral dele. — Por que não termina logo comigo?!

O questionamento escapou no tom de uma reclamação por algo que Julia, em teoria, deveria ter agradecido. Na doce e utópica teoria, onde Felix também era o príncipe que a garota amava incondicionalmente, ela teria o agradecido de joelhos por não ter terminado o relacionamento. No entanto, na realidade, Julia não deveria ter continuado com Felix depois da primeira fisgada de desconfiança.

Agora, era uma prisioneira no aguardo que seu carrasco demonstrasse um pouco de misericórdia. Não conseguia se livrar das correntes dele por si só, porque a culpa lhe escondia as chaves.

Ela abaixou a cabeça para se esquivar do semblante severo de Felix, constrangida pela honestidade acidental. O namorado a seguiu com um olhar desdenhoso até as bebidas preparadas no balcão, que esperavam somente por um garçom para distribui-las.

Sem se importar com a logística do serviço, Julia apanhou um copo com um líquido diferente e aproximou do nariz para cheirar. Ah! Mirtilo-vermelho. Por fim, algo que poderia tolerar.

Quando provou um gole, Felix já sacava o maço velho do bolso.

— E nem tente me livrar deste — se antecipou, em referência ao cigarro, antes que Julia abrisse a boca. — Todos os nossos tratos foram pro saco quando você fodeu com o de fidelidade.

Julia trincou o maxilar.

— Se fosse um garoto, você teria terminado?

Felix a olhou, impassível.

— O quê?

— Se eu tivesse te traído com um garoto, você teria terminado?

A postura dele se desmontou, uma das mãos correu nervosamente para dentro do bolso. Felix achara mesmo que ela não tinha sacado.

— Se está afim de arriscar, vá em frente. — Ele tragou tão fundo que as bochechas viraram sulcos na pele. — Teremos a noite toda pra você se desculpar.

Julia riu sinceramente pela primeira vez em semanas. Daquele tipo de risada que, se durar tempo demais, começa a latejar no rosto e no abdome. Riu tanto que a senhora do buffet conferiu discretamente por cima do ombro. O namorado permaneceu vidrado no quintal.

— Você é um filho da puta asqueroso, Felix — disse Julia, também muito sinceramente, e saiu pelo grande arco da cozinha.

Ela gostaria de dizer que aquela festa valera pelas horas finais de sua vida, mas o decorrer entediante da noite fora quase mais péssimo que o seu fim. As músicas desconhecidas, obedientes ao tema idiota, não eram nem de longe combustível para alegrá-la. A morte caminhava pelos presentes sem que ninguém desconfiasse, quem sabe analisando Julia com a melhor das intenções.

A mansão estava quente, abafada, ou talvez fosse a vodca lhe subindo a cabeça.

Julia costurou pelas esquinas da propriedade feito uma bêbada, embora não tivesse ingerido mais do que quatro ou cinco drinks. O mirtilo-vermelho adocicava sua boca, mas nunca suas vontades. Ela queria confrontar Valerie e ir embora para casa pelo resto do outono, com as brigas dos pais já se insinuando pela porta do quarto. A garota tinha plena convicção de que o bicho-papão existia. Se deparava com ele na insônia regular, nos pesadelos, na mesa vazia do café da manhã e no olhar preocupado que o mordomo lhe arremessava.

O bicho-papão estava até no reflexo.

— Ei, você tá bem? — alguém indagou. — Quer que eu chame alguma ajuda?

Julia abanou uma mão a esmo. Já era tarde demais para lhe oferecerem ajuda.

A garota ouviu a voz de Valerie depois do que pareceram gerações imersa no sofá. Naquele estágio, com o sexto copo espremido na mão, Julia tropeçava entre uma condição alucinógena e real. A caipira de consolação havia chegado e era exatamente para ela que a prima Walcott sorria, com uma seta apontando a coroa de trairagem no alto de sua cabeça. Aquilo era alucinação, mas nem tanto.

Julia estacou à esquerda de Valerie e sorriu.

A luz cintilante de um holofote se convergiu para a garota, lançando tudo ao seu redor em sombras. Não era o auge do caos, mas tinha um bom potencial.

Valerie olhou para Julia. Seu sorriso alargou-se antes de desaparecer devagar. A caipira disse algo também, mas Julia não ligava. Ela piscou os olhos pesados que por pouco não se abriram de novo.

— Você me dedurou para o Felix — afirmou, incrivelmente calma.

Valerie arregalou os olhos.

— O que...

— Não adianta negar. Eu sei de tudo. Ele me contou.

A garota olhou para um lado e para o outro, os lábios apertados em uma linha nervosa.

— Julia, vamos conversar lá dentro. — Ela agarrou a outra pelo pulso e puxou.

Julia quis contestar com um barraco na frente de todo mundo, mas era mais fácil se deixar levar sem reclamações. Ela sentia falta da facilidade.

— Você é uma falsa. Uma traidora.

— Não. Eu só fiz o que era certo a fazer.

— O certo era falar a verdade ao Felix e mentir pra mim? Chupe o pau dele logo, porra.

Elas se enfiaram no subterrâneo da casa, abaixo das canções caquéticas e da festa com pinta de fracasso. O salão de jogos da família Mattingly era do tamanho de um térreo comum, com uma mesa de sinuca e móveis que poderiam muito bem pertencer a um cassino californiano. Valerie esbanjava a tensão de um poste de energia, uma covarde que jamais achara que seria desmascarada.

— Eu sabia que você ia reagir mal — atestou ela. — Sabia que não ia entender.

— E o que há pra entender? — Julia se exaltou, satisfeita pelos gritos liberatórios. — Você estragou tudo o que já não estava bom!

— Eu estraguei?! — Valerie esganiçou a voz. — Eu não estraguei nada! Você quem beijou outra pessoa pelas costas do Felix!

— E NADA DISSO ERA DA SUA CONTA! — Julia a empurrou violentamente pelos ombros, um pouco de sua bebida espirrou nos rostos das duas. Valerie se desequilibrou, mas não caiu pelo apoio da mesa de sinuca. Ela estava bonita, com um vestido de fenda na coxa e lábios pintados de vermelho-vivo. — O que merda deu em você, Valerie?! Eu pensei que fosse minha amiga!

— Eu sou sua amiga! — Valerie a segurou com força, os olhos faiscavam. — É por isso que odeio quem você está se tornando!

Julia a encarou, ofegante pelo acesso de raiva, os punhos a postos diante do rosto.

— Quem eu estou me tornando?

Valerie aparentou refletir, com um aspecto agora desolado.

— Eu não sei, Julia, mas não a reconheço mais. Você está com raiva de mim por um erro seu. Como não consegue perceber quem realmente é a errada aqui?

Julia se arrancou do alcance dela, e mais da bebida caiu no tapete.

— Você não tinha o direito. Não tinha o direito.

— Eu só agi pelo o que acredito. Estou preocupada com você. Também queria que o Felix tivesse terminado.

— É por que você tá encalhada e precisa que eu me junte ao clube? Ou porque realmente quer chupar o pau dele? Não é bem a sua cara de boa samaritana.

O que estava dizendo...? Julia não conseguia pensar corretamente. Os desaforos disparavam mais depressa do que ela podia contê-los e a cabeça continuava a doer. Sua vista estava turvada, como se tentasse enxergar debaixo de uma água muito poluída. A lógica danificou-se. Julia não estava de fato com raiva de Valerie e Taylor, mas de si mesma — e a sensação já era bastante antiga.

Inesperadamente, um som desafinado e cortante se condensou na sala. Valerie ria, lágrimas gordas enchiam seus olhos.

— Você está se tornando uma vaca. Mais do que sempre foi. Eu deveria ter sido a líder do nosso bando desde o princípio. A sua fachada de garota bacana é quem eu sou de verdade, e você sempre zombou de mim por isso. Você acha que é a maior coitada pelo seu pai exigente e mandão, mas deveria conhecer os meus. Eu que mereço mais popularidade do que todo mundo, principalmente você.

Prestígio, popularidade, renome. Aquelas merdas soavam tão insignificantes.

— Se é o que acha, o que deveria era trabalhar mais por ela. Tente parar de se escorar em mim, para começar.

Valerie sorriu.

— Você? Você não é nada, Julia. Você passou os últimos quatro anos da sua vida obcecada em ser a melhor e olha só aonde chegou. — Valerie abriu os braços para abranger todo o ambiente, e Julia finalmente compreendeu: Como Ártemis, estava sozinha. Rebaixada por alguém que não falava nenhuma mentira. — Duvido que muita gente agora goste muito de você.

Julia não rebateu, a língua amortecida na boca.

Com seu silêncio interpretado como uma vitória para Valerie, a prima Walcott subiu as escadarias para o andar superior, apertando a saia do vestido e pisando duro nos saltos. Os barulhos da festa alcançaram Julia com mais clareza nos ligeiros segundos em que a porta foi aberta. Ártemis estava recitando seu clássico discurso e o microfone amplificava as palavras para todos os ouvidos.

Até que a porta bateu novamente, e Julia estava distante de novo.

Sozinha.

Não eram os melhores últimos minutos de vida, ela teria pensado, se imaginasse o perigo que a rondava. Contudo, ignorante acerca da finitude iminente da própria existência, o que pensou era que não tinha nada. Nem razão, nem amigos, nem qualquer sentimento positivo que pudesse curá-la daquela espécie de ressaca adiantada que embrulhava seu estômago.

Julia virou o rosto e se assustou com um espelho retangular em cima de uma poltrona. O coração veio galopar na garganta pelo o que via, com uma nitidez assombrosa e quase anormal.

O bicho-papão estava ali. E pareceu que nunca mais ia partir.

Pra me encontrar nas redes, é @hounselllara2 no passarinho e @hounselllara no Instagram ッ Obrigada pela leitura e até o próximo domingo!

NOTA DA AUTORA:

Esse é o último capítulo da primeira fase e o primeiro que eu posto como uma universitária oficial! Agora a mãe tá na faculdade e se não piorar muito, só vai melhorar. Enfim, valeu pela leitura e até o próximo domingo, com fase nova e nossa Heather de volta!


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