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82 - Vazio

À tarde, Alencar foi ao hospital colher o depoimento de Ana acerca do sequestro, e com isso, Helena foi embora.

– Sabe se o Lucas vem pra cá? – Ana perguntou assim que Alencar encerrou o interrogatório.

– Não vi o Russo hoje. Achei que ele estava aqui, afinal, ele está de folga.

– Ah...

– Obrigado pelo depoimento, Ana. Quando vir o Russo, diz pra ele que ainda preciso dele essa semana. Dei a ele alguns dias de folga, mas na sexta-feira vou precisar que ele volte, a D.P. está uma loucura.

Mas Ana não deu o recado a Lucas, porque não o viu naquele dia, nem depois.

Ana começou a psicoterapia e foi liberada para iniciar a fisioterapia logo na manhã seguinte, e descobriu que voltar a andar era mais fácil do que voltar a falar. Ela que sempre fora tão desconectada de tudo, alienada, como Lucas gostava de classificar, se sentia presa nos próprios pensamentos e temores. Sempre que questionada sobre qualquer assunto relacionado ao sequestro ou até mesmo à gravidez, ela mudava a conversa ou apenas se calava.

Lucas não voltou mais ao hospital até o fim da semana, mas foi buscá-la quando ela recebeu alta. A presença dele a surpreendeu, porque ele não tinha dado notícias por quatro dias, e como ela já vinha com problemas para lidar com as próprias emoções, a atitude dele a irritou de tal forma que ela se recusou a ir com ele.

– Ana... Ainda que você não queira me ver ou falar comigo, eu vim te buscar para te levar pra casa.

Qual casa, Lucas?

– Ana... Não faz assim... – Ela percebeu que, de maneira inédita, ele não a olhava nos olhos. E ele sempre a olhava nos olhos.

– Você sumiu e agora chega aqui sem mais nem menos pra me levar pra casa? – ela imprimiu um tom irônico na palavra "casa". Isso soou estranho, até maldoso, e não se parecia em nada com algo que ela faria. Isso a fez se questionar sobre o motivo de estar se comportando assim, tratando-o desta maneira tão rude, e não encontrou uma razão.

– Só quis te dar espaço, Ana. Não quero te obrigar a me suportar agora.

– Só quer me obrigar a ir com você.

Lucas colocou as mãos nos bolsos, baixou a cabeça e soltou o ar de forma lenta, como quem tenta separar o que deve dizer do que realmente gostaria de dizer.

– Ok, Ana. Como você preferir. Eu vou só... – Ele fez um gesto nervoso com a mão – deixar você na pousada, só isso, ok? Depois vou embora. É uma ajuda que vou dar ao Antônio, porque ele pediu que eu viesse buscar você.

– Então é só por isso que você veio.

Lucas não respondeu mais nada.

Ana voltou ao silêncio depois da breve discussão. Sentia-se mal por estar dificultando as coisas, e como não sabia interpretar o que estava acontecendo dentro de si, preferiu se calar. Quando chegaram à pousada, diferente do hospital, quando fora transportada numa cadeira de rodas, dessa vez foi Lucas quem a tirou do carro e a levou no colo para o quarto.

No instante em que seu corpo se acomodou ao dele, ela se deu conta do tempo que fazia desde que eles se tocaram pela última vez. A consciência dos braços fortes em torno de si a encheu de calor, o cheiro dele, aquele aroma que ela tanto amava, fez despertar cada célula do seu corpo. Com o rosto acomodado na curva do pescoço dele, sentiu-se envolvida com as lembranças de como eles sempre se encaixavam de forma tão perfeita quando juntos, e a sensação a deixou cheia de saudade e com vontade de chorar.

Enquanto sustentava Ana nos braços, Lucas sentia a respiração dela, morna e irregular contra seu pescoço, e seu corpo se aqueceu a partir daquele ponto e reagiu como se fogo corresse em suas veias. Seu coração bateu mais forte com a consciência da proximidade e do quão perto esteve de não senti-la mais, tão macia, tão quente e viva, então caminhou de forma lenta, protelando o fim do contato.

Ele se sentia tão grato por ela estar respirando que isso sobrepôs todos os outros sentimentos que se digladiavam em seu peito. Quando finalmente a acomodou sobre a cama, seus pensamentos estavam tão confusos que ele nem percebeu como ela estava ansiosa e sensível. Sem dizer nada, saiu apressado do quarto como quem quer fugir de tudo.

– Lucas!

Ele ignorou o chamado de Ana porque não estava confortável para uma conversa; seu o peito doía, sua cabeça sentia, seu corpo inteiro sofria. Ele tinha medo do que poderia dizer e, principalmente, do que iria ouvir.

Os dias em que se privara de visitá-la no hospital só não foram piores do que o período em que ela estava desacordada, e ele se sentiu tão cansado, tão desanimado e tão envergonhado por se achar no direito de ficar sentido com a atitude dela, que achou melhor se manter longe. Quando chegou na recepção, Antônio o chamou para conversar.

– Muito bem, filho – Lucas já tinha se acostumado com o fato de Antônio chamá-lo de filho. – Claramente, você gostaria de levar Ana para sua casa.

– Eu... Em algum momento, cogitei a possibilidade, mas não penso mais nisso agora.

– Eu também não acho que seja a melhor alternativa. Ela vai precisar de alguns cuidados, ainda não consegue andar direito... Como você pretendia cuidar dela naquela casa?

Como não era o responsável direto por Ana, Lucas achou curiosa a pergunta, principalmente vindo de Antônio. Ele não tinha planejado nada a não ser tirar Ana do hospital e ficar com ela. Eles não chegavam a moravam juntos, nem tinham um relacionamento claro ou um comprometimento oficial, então ele sabia que essa responsabilidade não cabia a si. Todavia, durante todo o período de internação, ele agiu como se fosse o dono da situação, como se fosse o dono dela, e isso não passou despercebido a ninguém.

Antônio, em contrapartida, percebia que algo não estava encaixado entre eles, e não era desde o momento que Ana abrira os olhos, mas vinha de antes. Ficara claro para ele que as coisas estavam confusas no dia em que Ana chegara à pousada tão magoada que não conseguia parar de chorar. Antônio conhecia Ana, sabia que ela iria ficar remoendo as dúvidas e as mágoas e não se abriria pra ninguém e, cacete, Lucas ia fazer igual!

– Fique com ela aqui na pousada, Lucas. Passe uns dias com ela... Conosco. Ela precisará voltar ao hospital ao menos duas vezes por semana para a fisioterapia e para falar com o terapeuta, você pode me ajudar muito com isso, além do que, você é o que ela mais precisa agora.

Antônio sabia que estava forçando a situação, mas não queria que esse clima confuso perdurasse por muito tempo. Ele sabia que os dois só precisavam ficar juntos num espaço só deles, sem enfermeiras, sem médicos e sem hora de ir embora, e só assim poderiam se abrir um com o outro.

Mesmo chateado, Lucas acabou aceitando a proposta. Não estava mais tão certo de ser o que Ana precisava, mas ao menos poderia cuidar um pouco dela e ser útil. Sim, ser útil era o que lhe restava, porque já não tinha expectativas de nada agora que se sentia solto de tudo, sem uma missão, sem nada que objetivasse sua vida a não ser um bebê que, caramba, ele esperava ter o privilégio de poder criar.

Ele daria o melhor de si, porque o melhor de si era o mínimo que podia oferecer, e ainda assim, talvez não fosse suficiente.

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