81 - Pacotes
Na manhã seguinte, Lucas precisou retornar ao trabalho. Ele deixou uma Ana sonolenta e silenciosa para trás, mas aparentemente bem, dentro do possível. Após o trabalho, ele voltou ao hospital, mas não pôde ficar com ela, então foi para casa, retornando ao hospital posteriormente apenas para as visitas permitidas, visitas que ocorreram em curtos períodos nos quais Ana mais dormia do que qualquer outra coisa.
Dois dias depois, após exames que concluíram que os níveis de oxigênio se mantiveram seguros, os médicos acharam por bem transferir Ana para um quarto. Quando ela foi devidamente acomodada, Lucas voltou ao hospital e passou a noite no quarto com ela.
Ana continuava quieta e Lucas atribuiu o fato ao seu quadro geral de saúde, à sensibilidade na garganta causada pelo uso prolongado do tubo respiratório, à preocupação com a gestação e alguns outros agravantes, como o fato de vomitar muito por causa da gravidez, e a cirurgia no joelho, ainda em fase de recuperação.
Ele até tentou conversar um pouco com ela, mas as respostas eram lacônicas, desanimadas e, mesmo preocupado, ele não insistiu mais.
Era madrugada quando algo o acordou. Deitado num sofá que acomodava apenas metade do seu corpo, ele mantinha as pernas esticadas para fora do assento, e a posição incômoda fazia doer sua a lombar. Mas não foi esse desconforto o responsável por acordá-lo. Foi um ruído leve, entrecortado e rouco. Em alerta, percebeu que o som vinha do leito de Ana, e prontamente foi até ela.
Ana mantinha os olhos fechados, mas pelo tremular das pálpebras, era notório que estava sonhando. Lucas levou a mão à face dela e sentiu uma camada de suor frio e pegajoso. Dos lábios trêmulos, os sons pareciam de angústia e de medo.
Lucas reconheceu o quadro, bem como os sintomas. Era um pesadelo, provavelmente provocado pelo estresse pós-traumático. Entristecido, ele correu as mãos pelos cabelos espalhados no travesseiro, e com a outra mão, segurou a ponta dos dedos delicados, pressionando-os de modo suave, porém firme.
– Ana, meu amor. Acorda... Sou eu.
Ela se debateu por um breve momento, então abriu os olhos. Lucas notou a confusão nas pupilas dilatadas, e quando finalmente ela o reconheceu, uma única lágrima correu por sua têmpora e se perdeu na fronha do travesseiro.
– Ana, quer falar sobre isso?
Ela só moveu a cabeça numa negativa e fechou os olhos. Lucas se sentiu mal, excluído, rejeitado como se ela tivesse fechado uma porta na sua cara. Ele não deveria se sentir assim, visto que nunca compartilhara nenhum dos próprios pesadelos com ninguém, nem com o terapeuta, nem com ela.
Com delicadeza, Lucas a cobriu com o lençol e beijou sua têmpora ainda úmida pela lágrima solitária, e aquele sentimento antigo voltou, misturado a vários outros, como se um dos pacotes das prateleiras se desprendesse e, ao desabar, trouxesse outros consigo.
Medo. Culpa. Insegurança. Impotência.
Medo de não ser perdoado, culpa pelo que aconteceu, insegurança de como agir, impotência por não poder mudar os fatos, reescrever a história e apagar as marcas já em cicatrização, porém ainda tão sensíveis, como vergões vermelhos, explícitos e infames que não passavam despercebidos.
Lucas passou a noite em claro pensando nessas coisas. Talvez Ana precisasse de espaço, de tempo para processar as coisas, para se curar. Talvez ela estivesse ponderando se a relação deles era o que ela desejava, se ele era realmente o que ela queria.
Ele nunca foi de insistir demais em qualquer coisa, e com Ana não seria diferente; como ele não sabia o que esperar, quando amanheceu, sem se despedir dela, ele voltou à delegacia e não retornou ao hospital, nem naquele dia, nem no dia seguinte.
≈
– Você precisa de alguma coisa? – Helena perguntou assim que percebeu Ana olhando de um lado para o outro, como quem buscava algo ou alguém.
A mãe de Lucas tinha chegado ao hospital na manhã do dia seguinte. A visita foi marcada por grande comoção, quando finalmente Helena soube da gravidez, e a revelação causou muitas lágrimas de emoção, de ambos os lados. Ana lamentou que Lucas não estivesse com ela quando deu a notícia, algo que não havia mais como protelar.
Depois do momento especial, Ana recebeu a visita do médico, que a atualizou sobre seu quadro de saúde, explicou a respeito das sessões de fisioterapia que começariam em breve, e que havia uma consulta marcada com um terapeuta.
O agendamento com o psicólogo lembrou Ana da terapia de Lucas, e ela se perguntou se ele estaria comparecendo às sessões, principalmente diante de tantos acontecimentos. Ela soubera pelo pai que Lucas passara um mal bocado entre a descoberta do sequestro e sua recuperação, e ela sequer tinha conversado com ele sobre isso.
Na verdade, ela praticamente não conversava com ele sobre nada, e nem entendia muito bem por quê. Às vezes ela pensava que estava envergonhada pelo próprio comportamento, por ter saído da casa sendo que ele insistira que ela ficasse lá, mas no geral, ela apenas estava triste mesmo.
– Eu fiquei pensando... Por que Lucas ainda não veio? – ela ainda achava a voz estranha aos próprios ouvidos. Ruidosa e grave, parecia de outra pessoa.
De certa forma, ela se sentia uma outra pessoa. Ela só não sabia ainda quem era essa pessoa.
– Ele não ligou para você? – Helena pareceu surpresa.
– Ligar...? Por que ele ligaria? Ele não vem?
– Acho que ele está um pouco... Ocupado com o trabalho. Talvez seja isso.
– Mas... Ok, tudo bem, talvez seja isso.
– Ana... Como você está em relação a tudo? Ao Lucas, ao bebê? Não precisa falar comigo se não quiser, mas eu estou um pouco curiosa a respeito, e não posso negar que estou ansiosa também.
Ana percebeu a cautela na voz da matriarca, e a forma carinhosa com a qual ela fez a pergunta moveu Ana a responder, ainda que não quisesse.
– Eu não sei. Eu não sei como me sinto. Tudo está confuso na minha cabeça. Quando fecho os olhos, volto ao barco, e isso rouba as outras coisas, as boas, sabe? Como o fato de eu estar viva, de o bebê estar vivo, de Lucas ter me encontrado... Você sabe que foi ele quem me encontrou, não é? Quando acordei, vi Lucas e soube que ele era tudo o que eu precisava, só que depois... Veio o vazio, e eu não sei o que há de errado comigo.
Ana chegou a se cansar, porque foi a primeira vez que ela falou tanto desde que acordou.
– Deve ser normal se sentir assim depois de um trauma. Acredito que, com o tempo e com um bom punhado de conversas, as coisas se ajeitarão. O importante é falar o que sente.
– Nunca fui boa nisso.
– Você se parece tanto com ele...
– Com... Lucas?
– Sim. Ele é igual a você, de um modo diferente, mas é igual. Ele não é muito bom em confessar as coisas, como medos e incertezas. Ele não gosta de pisar em ovos e, quando sente que está indo por esse caminho, ele recua. Talvez seja por isso que ele não esteja aqui, porque acha que você não o quer aqui.
– Isso não é verdade! É lógico que eu o quero aqui... Eu só não... – ela soltou um suspiro desanimado – Eu não sei.
– Ele deve estar se sentindo culpado pelo que você passou. E ele vai se sentir assim por um bom tempo, quer você queira, quer não. Ele não vai soltar a responsabilidade, não vai transferir a culpa, ele vai abraçá-la como um casaco de pele em pleno verão, e vai sustentar isso até quando puder soltar, não importa o que você diga a ele.
– E o que eu faço, então? Eu não o culpo! Se eu não tivesse me metido na história, usado aquele micro SD, confiado na pessoa errada e saído da casa... Lucas fez de tudo para me manter afastada, mas eu fui teimosa e não o levei a sério porque ele ficava tão irado que... – ela sentiu os olhos molhados e o coração dolorido.
– Ana, isso não vem ao caso. Ninguém é culpado nessa história a não ser os verdadeiros culpados, os criminosos, e para eles, já existe punição. Eu penso que você só precisa deixar ele enxergar isso em você, que você entende e que não há o que temer, e tudo vai ficar bem.
– Eu não sei se vai...
– É claro que vai, Ana! Você é uma sobrevivente, tem um bebê vivo aí dentro, e você ama o Lucas, isso é tão claro quanto a luz do dia.
– Tem tanta bagagem nisso tudo, sabe? Tenho medo de trazer isso pra dentro e não conseguir mais me livrar. Eu tenho medo de ele não me olhar do mesmo jeito daqui pra frente.
– Ana... Lucas continua o mesmo, você continua a mesma, ambos com um pouco mais de bagagem, de experiências, e só. Dê tempo ao tempo, ok? Tudo vai se encaixar, eu tenho fé em vocês, não tem como isso não dar certo.
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